segunda-feira, 30 de setembro de 2013

As armas nucleares de Israel

Estadão, 30 de Setembro, 2013

 
O recente acordo entre Estados Unidos e Rússia envolvendo as armas químicas da Síria deixou claro o que há muito tempo deve ser um fato óbvio: os esforços do presidente Barack Obama para fazer valer as normas internacionais que proíbem armas de destruição em massa no Oriente Médio envolverão Washington numa confusão diplomática e estratégica muito maior do que a discussão sobre o arsenal químico sírio.

O presidente Bashar Assad insiste que a finalidade do seu arsenal químico sempre foi para fazer frente às armas nucleares de Israel. Se a Síria de fato destruí-lo, o que será do arsenal de Egito e de Israel? Os Estados Unidos se calam estranhamente sobre o estoque de armas químicas do Egito. O Cairo aponta para Israel. Que, naturalmente, afirma ter suas próprias armas químicas para dissuadir Síria e Egito e não pretende se desfazer delas.

Uma manchete do diário israelense Haaretz, há alguns dias, dizia: "Israel inflexível quanto a não ratificar o tratado de armas químicas diante de vizinhos hostis".

Esses três países também não aderiram à Convenção sobre Armas Biológicas e Israel não assinou o Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), embora mantenha um arsenal nuclear formidável, que, em breve, deverá se tornar tema central neste drama - os Estados Unidos gostem ou não.

Poder nuclear.
 
Um obstáculo que os próprios americanos criaram tem impedido amplas negociações sobre armas de destruição em massa no Oriente Médio. Enquanto o mundo continua sua discussão eterna sobre a capacidade nuclear do Irã e a possibilidade de o país criar um arsenal atômico, dificilmente alguém nos Estados Unidos menciona o poderio nuclear de Israel.

Obama, como seus predecessores, finge que não tem conhecimento do fato. O tabu tem impedido discussões a respeito, tanto em Washington quanto no plano internacional, e desencoraja os EUA a pressionarem Egito e Síria para retificarem as convenções sobre armas biológicas e químicas.

Porque, se insistir, imediatamente, serão levantadas objeções quanto à aceitação americana do arsenal nuclear de Israel.

O que sustenta essa atitude dissimulada é o mito de que os Estados Unidos se obrigam a esconder o fato de Israel possuir armas atômicas em razão de um acordo firmado em 1969 entre o presidente, Richard Nixon, e a primeira-ministra israelense, Golda Meir.

O objetivo de Nixon era conseguir o apoio israelense na Guerra Fria. Ele e Golda Meir viram a necessidade de desencorajar os soviéticos a fornecerem armas nucleares para seus aliados árabes. Se o arsenal nuclear israelense fosse revelado, haveria pressão por parte de Moscou. No entanto, as razões para os Estados Unidos continuarem calados não existem mais.

Todos sabem que os israelenses possuem bombas atômicas. Hoje, como principal efeito dessa ambiguidade, negociações regionais sérias sobre o controle de armas ficam muito mais complicadas.

Todos os outros países da região aderiram ao TNP, mas há questões que ainda não foram solucionadas. Em 2007, descobriu-se que a Síria estava construindo um reator nuclear ilícito, que Israel rapidamente bombardeou.

Assad não permitiu até hoje que inspetores da ONU realizem uma plena investigação do local do reator destruído. E o Irã, aliado da Síria, é suspeito de desenvolver seu próprio programa nuclear para desafiar o monopólio israelense na área. Na verdade, muitos analistas acreditaram que a decisão de Obama de estabelecer uma "linha vermelha" proibindo o uso de armas químicas na Síria foi motivada pela necessidade de mostrar sua disposição a usar a força contra o Irã se o país avançasse com seus planos de fabricar armamento nuclear.

Mudança.
 
O imbróglio explosivo deveria ser objeto de uma conferência internacional, decidida em 2010 por votação unânime dos membros do TNP, incluindo os Estados Unidos. No entanto, tal conferência jamais foi realizada, em parte por causa da ambivalência da Casa Branca sobre como ela poderia afetar Israel.

Em abril, o secretário adjunto de Estado encarregado dos assuntos de não proliferação e segurança internacional. Thomas Countryman, disse esperar que a conferência seja realizada ainda este ano. No início do mês, o chanceler russo, Sergei Lavrov, insistiu para que fosse determinada uma data para a conferência "o mais rápido possível". Ele acrescentou que da reunião deveriam tomar parte Israel e Irã. A Rússia tentou inserir o encontro no acordo da semana passada, mas o secretário de Estado, John Kerry, resistiu.

Se Washington deseja que as negociações sobre armas de destruição em massa no Oriente Médio avancem - ou simplesmente para que os EUA não caiam no ridículo -, Obama deve começar a ser mais franco. O presidente não pode esperar que os países que participarem da conferência levem Washington a sério se a Casa Branca continuar fingindo não saber que Israel possui armas nucleares, ou que Egito e Israel possuem armas biológicas e químicas.

Se a política de Israel neste campo é tão inflexível que é impossível mudar, Obama e o governo dos Estados Unidos precisam ser honestos quanto ao arsenal israelense e agir com base neste fato, para o bem dos EUA e de Israel.

domingo, 29 de setembro de 2013

[SGM] Graf Spee, o navio fantasma da marinha de Hitler

José Francisco Botelho & Ricardo Lacerda, 10/05/2013

 


A 7 km da costa do Uruguai, no Rio da Prata, jaz o esqueleto do encouraçado Graf Spee - um dos orgulhos da marinha de Hitler, afundado não por torpedos inimigos, mas por ordem de seu capitão. Antes de encontrar seu destino nas profundezas, a embarcação protagonizou a última batalha naval à moda antiga da história: um duelo entre navios, baseado na habilidade e astúcia de seus comandantes, sem o uso de força aérea, submarinos ou radares. Isso aconteceu nos últimos meses de 1939. A Batalha do Rio da Prata foi o único combate da Segunda Guerra na América do Sul. A odisseia do Graf Spee encerrou uma era na história das guerras marítimas - meses mais tarde, novas tecnologias revolucionariam as batalhas navais, pondo fim aos duelos entre marujos.

O protagonista dessa história era um sujeito que parece saído das páginas de um romance de aventuras: o capitão Hans Langsdorff. Ele conduziu o Graf Spee em uma jornada secreta por dois oceanos. Descrito até por seus inimigos como um cavalheiro, era bem diferente da ideia que se tem de um oficial nazista: em vez de trucidar prisioneiros, preferia lhes oferecer charutos, bebidas e banhos de sol. Antes de afundar um navio, Langsdorff preferia apertar a mão do capitão adversário - e pedir desculpas, com a mais extrema e meticulosa cortesia. Seu navio foi ao mar dias antes do início da Segunda Guerra. Em 20 de agosto, o Graf Spee partiu de Wilhelmshaven, na Alemanha, com 1,2 mil homens, encarregado de uma missão secreta. O objetivo era estrangular as linhas de comércio da Inglaterra no Atlântico Sul. Para isso, devia afundar navios mercantes nos mares do Brasil, Uruguai e Argentina -evitando entrar em conflito com armadas inimigas. Ou seja: devia agir como um navio fantasma, aparecendo do nada e sumindo com idêntica rapidez - para ressurgir a várias milhas de distância.

O Graf Spee foi considerado o navio ideal para a tarefa. Segundo a propaganda alemã, era "mais forte que o mais veloz, mais veloz que o mais forte". O Bismarck, maior navio da armada de Hitler, tinha 250 m de comprimento. Com 185 m, o Graf Spee era o mais avançado e bem-equipado dos "encouraçados de bolso" (o apelido era referência a seu tamanho e agilidade). "Um navio assim podia alcançar uma velocidade de 28 nós (55 km/h), enquanto outros encouraçados não passavam dos 23 nós", escreveu o historiador uruguaio Federico Leicht em Graf Spee: de Wilhelmshaven al Río de la Plata (sem tradução). "Os encouraçados de bolso foram os primeiros a usar diesel como combustível e navegavam mais de 8 mil milhas marítimas sem abastecer - três vezes mais do que um encouraçado comum."

O maior trunfo, porém, eram as táticas de pirataria de seu capitão. Carregado com latas de tinta, para pintar e repintar o casco, o navio trocava de cor ou de nome - em alto-mar. As torres com canhões eram cobertas por lonas - e Langsdorff mandou instalar, nos mastros, sinalizadores utilizados por navios mercantes. Isso permitia que o Graf Spee se aproximasse dos inimigos quase incógnito - mostrando as garras quando a armadilha já estava fechada.

Nas sombras, o navio fantasma alemão navegou do mar do Norte ao sul do Atlântico - até fazer sua primeira vítima um mês após o início da viagem, a pouco mais de 50 milhas do litoral de Pernambuco. Em 31 de setembro, o navio brasileiro Itatinga encontrou botes lotados de marinheiros ingleses - tripulantes do Clement, que viajava entre Nova York e Rio de Janeiro e fora afundado na véspera pelos alemães. Sem desfraldar a bandeira nazista, pintado de verde-escuro, ele se passara por navio mercante até o último segundo. Durante os três meses seguintes, sob camuflagens variadas, voltaria a aparecer e sumir diversas vezes no sul do Atlântico: afundou mais oito barcos mercantes sem matar um único inimigo.


Ao serem resgatados, os ingleses relataram o método cavalheiresco utilizado por Langsdorff. Com seus canhões apontados para o Clement, o capitão enviou um bote para trazer o comandante inglês a bordo do Graf Spee. O britânico foi recebido com um caloroso aperto de mãos. "Peço que me desculpe", disse-lhe Langsdorff, em inglês impecável. "Sinto muito, realmente, mas vou ter de afundar o seu navio".

Nascido em 1894, em Düsseldorf, Langsdorff havia servido como tenente na armada imperial do kaiser Guilherme II. Na Primeira Guerra, foi condecorado com a Cruz de Ferro. "De todas as forças armadas alemãs, a marinha era a mais tradicional e possuía, em enormes quantidades, oficiais que não eram ligados ao nazismo. Langsdorff não era filiado ao partido", diz o historiador militar Carlos Roberto Daróz, da Universidade do Sul de Santa Catarina. A bordo do Graf Spee, os prisioneiros ficavam soltos - desde que jurassem não tentar escapar nem sabotar os equipamentos. E costumavam ser desembarcados em segurança em algum porto neutro.
 
Entre setembro e dezembro de 1939, o Alto Comando britânico empreendeu uma caça desesperada à embarcação alemã. Três encouraçados e 14 cruzadores foram enviados ao sul do Atlântico, em grupos separados, em busca do Graf Spee. Por três meses, o Graf Spee despistou os perseguidores, mas no dia 13 de dezembro, a 500 km da cidade uruguaia de Punta del Este, na boca do Rio da Prata, foi encurralado. Por volta das 6 horas, três cruzadores o cercaram. O navio foi alvejado 19 vezes e Langsdorff sofreu uma concussão craniana, ao ser atingido por estilhaços. Apesar dos danos, o capitão conseguiu conduzi-lo para dentro do Rio da Prata - e rumou para Montevidéu.

O Uruguai era uma nação neutra, mas seu governo não simpatizava com o Terceiro Reich. Quando o navio ancorou, milhares de pessoas acorreram às avenidas à beira-rio para avistá-lo - o Graf Spee ainda tinha munição suficiente para bombardear Montevidéu. Apesar do receio, o governo do Uruguai anunciou que concederia apenas 72 horas para que os alemães consertassem os danos no casco e enterrassem os 37 mortos na batalha contra os ingleses. Depois disso, o barco teria de zarpar. Circulavam boatos de que a Inglaterra enviara uma grande frota para vigiar a foz do Prata. Para Langsdorff, o estuário havia se transformado em um beco sem saída.

Langsdorff, além de ferido, estava exausto. Havia indícios de que começava a se desiludir com Hitler: no funeral dos marinheiros, foi a única autoridade que não fez a saudação nazista. No dia 18 de dezembro, o navio zarpou pela última vez. A 7 km da costa, o capitão ordenou que a tripulação abandonasse a embarcação. Depois, instalou cargas explosivas. Faltavam 10 minutos para as 21 horas quando uma labareda gigantesca lançou uma coluna de fumaça negra para o céu. Mais três explosões se seguiram. Em Montevidéu, jornalistas começaram a tagarelar afoitos para suas respectivas estações de rádio, enquanto o Graf Spee, destroçado por seu próprio capitão, desaparecia sob as águas do Prata.


Após esse desfecho digno de uma ópera de Wagner, a tripulação alemã buscou refúgio em Buenos Aires - alguns voltaram à Europa para continuar a guerra. Dois dias após afundar o Graf Spee, Langsdorff vestiu o uniforme e deitou em sua cama, no City Hotel, em Buenos Aires. Enrolou-se em uma bandeira - não a suástica nazista, mas a cruz negra, insígnia da antiga Frota de Alto-Mar da Alemanha Imperial. Então, deu um tiro na cabeça com sua pistola Mauser 7.65.

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

[SGM] Os Alemães na Normandia

Resenha do livro The Germans in Normandy, Richard Hargreaves, Stackpole Books, 2008.

 

Hargreaves afirma que a estória da Normandia de 1944 tem sido registrada “quase que exclusivamente” do ponto de vista Aliado. Pessoalmente, acho isso de certa forma exagerado; relatos como os de Seis Exércitos na Normandia, de Max Hastings, e Invasão: Eles estão Chegando!, de Paul Carell, incluem testemunhos dos alemães, e, é claro, temos também os tipos de David Irving cujos trabalhos, independentemente do que pensamos sobre sua confiabilidade no plano político, inclui um caminhão de entrevistas com os comandantes alemães, por exemplo, seu livro sobre Rommel. Mesmo assim, Hargreaves afirma ter trabalhado por 15 anos em seu livro, analisando não somente as histórias, mas também diários e cartas.

Os Alemães na Normandia se propõe a focar no combatente comum alemão ao invés de ser uma história da campanha, uma afirmação que é de fato impossível de se alcançar, já que qualquer exame do assunto deve incluir o contexto da própria campanha. Não obstante, há uma impressionante lista de vozes representadas no livro, dos bem conhecidos (Rommel, Von Rundstedt, Kurt Meyer e Michael Wittman) até os postos mais baixos da Wehrmacht. Extraordinariamente, Hargreaves também inclui o pessoal da Luftwaffe e da Kriegsmarine, apesar dos poucos relatos, já que o número de equipamentos aeronáuticos e navais disponíveis para os alemães não era grande, mesmo após o reforço na força aérea.

O livro começa com um olhar nas atitudes dos alemães em relação à iminente invasão da França pelos Aliados em 1944, que era um “segredo aberto”. Uma das principais surpresas do livro e pontos de interesse é que muitos alemães, de Hitler até os defensores na praia, estavam impacientes com a chegada dos Aliados, de modo que para o soldado comum a apreensão pela espera terminaria e para Hitler havia a possibilidade de destruir os exércitos ocidentais e voltar ao combate na Frente Oriental com força máxima. Esta atitude de antecipação ansiosa era aparentemente comum também na Alemanha (o livro discute as atitudes variadas da população, como mostrada nas pesquisas de opinião do SD durante a campanha). Apesar de a Kriegsmarine e a Luftwaffe (a última comandada no Ocidente pelo indolente Sperrle) não poderem dar muita contribuição, Dönitz exortou às tripulações dos U-boats a darem o seu máximo, mesmo que enviando U-boats que não haviam ainda sido convertidos ao mecanismo Schorkel* contra os navios Aliados fosse equivalente ao suicídio. O Exército, por outro lado, acreditava firmemente em sua paridade, senão superioridade, em relação à qualidade de seus homens e armamentos – e isto era certamente verdade que tanques como o Tiger e o Panther eram superiores a qualquer coisa do arsenal Aliado.

Qualquer superioridade tática que os alemães pudessem ter, pelo menos com seus equipamentos e unidades de primeira linha tais como as divisões panzer e as tropas aerotransportadas, era infelizmente para eles anulada pelo quadro estratégico. Aniquiladas na frente oriental, as forças armadas ainda estavam lutando para recuperar suas perdas em homens e materiais, resultando no emprego de homens que normalmente teriam sido rejeitados para o serviço militar pesado, tais como georgianos, poloneses e russos recrutados dos campos de prisioneiros, ou homens idosos e sem forma física nas fracas divisões de defesa costeira. Apesar de sua impressionante organização no papel, as unidades novas ou reformadas como a 116ª. e a 21ª. Panzer ainda aguardavam por blindados ou se viravam com veículos obsoletos. Mais sério ainda, o bombardeio Aliado das áreas de desembarque francesas e da Alemanha levaram prontamente a uma escassez de materiais e dificuldades de transporte de qualquer coisa que estivesse disponível na frente de batalha. As supostas fortificações pesadas da Muralha do Atlântico, como apresentadas nas fotografias de propaganda alemãs mostrando artilharia pesada protegida, eram na realidade poucas e longe entre si: apesar da fúria de Rommel no trabalho nos primeiros meses de 1944, as defesas ainda não haviam sido concluídas em 6 de junho. Finalmente, a inteligência alemã falhou em discernir precisamente tanto as intenções dos Aliados quanto suas formações, e a estrutura de comando estranha e contraditória criada por Hitler, efetivamente deixando os principais comandantes às escuras entre si e tornando-o o juiz supremo, destruíram a capacidade de tomada de decisões.

Esta confusão no comando alemão ficou evidenciada nas primeiras 24 horas da invasão, quando mesmo o pouso de paraquedistas não convenceu o comando nazista de que mais do que uma simulação estava acontecendo, e quando um comandante de alto posto não conseguiu liberar os blindados porque Hitler estava dormindo. Não obstante, o desembarque em Omaha, como ele é conhecido, foi um verdadeiro banho de sangue para as tropas americanas pois elas encontraram a 352ª. Divisão de Infantaria razoavelmente em boas condições e o desembarque quase fracassou. Juno também ofereceu uma resistência dura até os tanques chegarem. Em Utah e nas praias britânicas a estória foi diferente, contudo, já que elas estavam com as defesas incompletas, com poucos canhões antitanque e pouca barreira. Um comandante de reconhecimento alemão relatou ver milhares de tropas aliadas desembarcando na praia. Portanto, em face à pesada artilharia naval e superioridade aérea aliadas, seria impossível interromper o avanço aliado. A confiança inicial alemã de que seus blindados pudessem empurrar o inimigo de volta para o mar evaporou-se rapidamente à medida que a realidade do ataque aéreo constante tornou-se aparente, um tema que percorre o texto inteiro como uma sinfonia completa.

Contrariamente à impressão geral algumas vezes dada, a Luftwaffe e a Kriegsmarine tentaram intervir contra os desembarques. Entretanto, a imensa rede protetora criada pelos caças aliados à frente dos exércitos americanos e britânicos tornou praticamente impossível à Luftwaffe atacar alvos terrestres, pelo menos durante o dia, e de modo similar a atualmente desenvolvida tática de cobertura aeronaval e de superfície tornou Brest, a base dos U-boats, uma viagem ao inferno. Nenhum avião aliado foi perdido em 6 de junho no enfrentamento com a Luftwaffe, e à noite 175.000 soldados aliados já estavam a salvo em solo francês. Além disso, apesar de sua confiança inicial, parece que alguns alemães sentiam que a batalha balançava numa corda, senão já totalmente perdida, somente pela superioridade esmagadora de materiais pelos Aliados. O que segue no resto do livro é a tragédia homérica das vidas dos homens sendo desperdiçadas numa causa perdida e odiosa, a derrota estratégica se aproximando cada vez mais apesar dos sucessos táticos em Bocage, na Montanha 112 (próximo a Caen) e contra as Operações Epsom e Goodwood.

Em seu uso de testemunhos de combatentes individuais, Hargreaves não despreza a política da situação, baseando-se também nos diários de Goebbels e declarações de comandantes de alta patente. Dos últimos, parece que somente Rommel estava ciente das restrições práticas que seriam impostas pela superioridade aérea e material dos Aliados, mas seus colegas e sucessores logo compartilhariam esse pensamento. De fato, outro tema interessante ao longo do livro é a transformação do otimismo em pessimismo por parte de homens como Kluge e Model que seguiram após Rommel na linha de frente com Hitler pressionando-os por resultados. Na verdade, somente Model, um favorito de Hitler, foi capaz de finalmente convencer o ditador que a França à oeste do Sena deveria ser abandonada. Hitler, é claro, é mostrado como vivendo fora da realidade, mas mesmo assim sua estranha habilidade em influenciar pessoas é mencionada em sua conferência com Rommel e Von Rundstedt, que deixou o último temporariamente mais otimista apesar de seus medos terem se tornado realidade. A bomba voadora V-1, que esperava-se matar britânicos em número suficiente para derrotar a Grã-Bretanha ou pelo menos levá-la à mesa de negociações, inicialmente elevou o moral alemão mas após o fiasco delas como armas de destruição em massa, ele despencou no front e no país. Um elemento interessante e satisfatório são os obstáculos que as publicações de propaganda nazista tiveram que superar para retratar a situação sob um ponto de vista positivo, mesmo quando cidades como Cherbourg e Paris caíram. À medida que a campanha avançava, homens como Rommel e Von Rundstedt foram obrigados a se submeter à verdade em relação à Frente Ocidental, e finalmente sugerir que era tempo para a política entrar em jogo – uma sugestão de Rommel que foi bruscamente rejeitada por Hitler. Ao invés disso, a falha da tentativa de assassinato de Hitler em 20 de julho levou ao fim da independência do Exército, ao suicídio de Von Kluge (que estava em cima do muro em relação ao plano) e ao Rommel mais tarde e a rigidez da Alemanha não seria quebrada até a morte do Führer. É digno lembrar, contudo, que muitos soldados e civis alemães da época ficaram indignados contra os conspiradores e ainda colocavam fé nos poderes de Hitler e das novas armas.

Os capítulos finais do livro registram a esperança e o desespero alternados dos combatentes alemães, muitos dos quais foram feitos prisioneiros ou mortos em ação. Juntamente à esperança com as novas armas estava o desespero do desmoronamento do front, a falta de reposição de tropas e o aparente poder ilimitado dos Aliados. Em Falaise, milhares de alemães foram cercados e mortos ou capturados em uma carnificina terrível que impressionou e trouxe compaixão mesmo em seus inimigos; formações sobreviventes atravessaram o Sena onde era possível, uma sombra do que já haviam sido, com apenas um punhado de tanques e poucas centenas de homens cada uma. Assim, o maior desejo era atravessar a fronteira e voltar à Alemanha. Como Rommel mencionou em um de seus últimos escritos, “O céu sobre a Alemanha tornou-se cinzento.”

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Nota:

* Um snorkel (Schnorkel) submarino é um dispositivo que permite a um submergível operar sob a água enquanto capta ar acima da superfície. Pessoal da Marinha geralmente se refere a ele como snort. Até o advento da energia nuclear, os submarinos eram projetados para operar na superfície a maior parte do tempo e submergir somente para evasão ou ataque diurno. Em 1940, à noite, um U-boat estava à salvo mais na superfície  do que debaixo d´agua porque o sonar ASDIC podia detectar embarcações submersas, mas era quase inútil contra um navio de superfície. Entretanto, com o melhoramento contínuo nos métodos de radar à medida que a guerra avançava, os U-boats foram forçados a gastar mais tempo sob a água utilizando motores elétricos que davam velocidades de apenas alguns poucos nós e com pouca capacidade de duração.

A Kriegsmarine olhou o snorkel primeiramente como um meio de jogar ar fresco dentro dos submarinos, mas não viu necessidade de desenvolver motores diesel para aplicações submarinas. Entretanto, em 1943 mais U-boats foram perdidos, de modo que o snorkel foi adaptado às classes VIIC e IXC e projetado para os novos tipos XXI e XXIII.

O primeiro submarino da Kriegsmarine a ser readaptado com um snorkel foi o U-58, que experimentou o equipamento no Mar Báltico durante o verão de 1943. As embarcações começaram a usá-lo operacionalmente no início de 1944 e por volta de junho cerca de metade dos submarinos estacionados nas bases francesas tinham snorkels adaptados.

Nos U-botas do tipo VII, o snorkel era lançado para frente e estava armazenado em uma escotilha lateral do convés, enquanto que nos tipos IX, o encaixe estava no lado do estibordo. Os tipos XXI e XXIII tinham ambos mastros telescópicos que erguiam verticalmente da torre de observação próximos do periscópio.


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terça-feira, 24 de setembro de 2013

[SGM] O Primeiro e o Último: A Biografia de Adolf Galland


 

No início da Segunda Guerra Mundial, Adolf Galland era um tenente aviador na Luftwaffe, tendo obtido certa experiência com a legião Condor na Guerra Civil Espanhola. Ele ascendeu ao posto de Inspetor de Pilotos durante a guerra e a terminou em combate novamente como o comandante da maior (e praticamente única) unidade de caças a jato da Alemanha, lutando contra chances esmagadoras com o primeiro interceptador a jato do mundo, o lendário Messerschimidt 262.

 

O Primeiro e o Último não é, de fato, uma autobiografia – apesar de o autor descrever brevemente seus anos de juventude, o livro termina em 1945 (Galland viveu mais algumas décadas após a guerra). Nem o leitor encontrará muitos detalhes sobre a vida na Alemanha Nazista, exceto onde a política nazista influenciava as operações da Luftwaffe (uma parte significativa do livro, particularmente nos estágios finais da guerra). Este livro não é mais e nem menos o que ele afirma ser, a estória da equipe de caças da Alemanha vista pelo homem que tornou-se intimamente associado a ela.

 

A primeira parte do livro ilustra o entusiasmo como a juventude alemã abraçou o vôo, apoiado tacitamente pelo governo com seu apoio às escolas de planadores. Naqueles dias, era totalmente aceitável para os jovens construírem seus próprios planadores e entrarem neles para competições. Como muitos pilotos de caças, Galland parece ter sido um jovem altamente espirituoso, qualidade que os deixavam em boa posição se eles fossem capazes de aceitar também a disciplina. Falando sobre a Guerra Civil Espanhola, ele menciona sua alta estima em relação à habilidade dos republicanos em ocultar sua força terrestre. De forma interessante, ele também nota que pelo menos alguns alemães tinham certas reservas sobre Franco e suas reais intenções, e que a alta desigualdade na Espanha ainda parecia existir apesar da retórica de ambos os lados. Ao longo do livro, Galland não faz muitos comentários políticos, de modo que aqueles que aparecem são frequentemente interessantes.

 

De principal interesse para muitos leitores britânicos, será a visão de Galland sobre a Batalha da Inglaterra. Durante a campanha, ele comandou o JG26 sobre a costa do Canal. Olhando para este período, ele nota que é ainda difícil com retrospecto estabelecer se a Operação Leão Marinho (a invasão das ilhas britânicas) poderia ter sido bem sucedida se ela tivesse sido lançada quase imediatamente, ao invés de ter sido planejada no prazo dilatado como foi. Suas principais explicações para a primeira falha da Luftwaffe são o pequeno alcance do Me 109 na época (cobrindo um décimo do território britânico dos aeródromos franceses) e a baixa disponibilidade da força de bombardeiros, possuindo somente entre 600 e 700 bombardeiros médios. Quando consideramos que levou dois anos de 1.000 missões de bombardeio aéreo pela frota Aliada bem mais numerosa para causar estragos significativos na Alemanha, devemos necessariamente concordar com o ponto de vista de Galland. Como ele mostra, esta foi também a primeira campanha aérea estratégica independente da história e as lições ainda estavam sendo aprendidas com uma força aérea que tinha apenas quatro anos de idade. Os Aliados ocidentais aprenderam dessas experiências e as usaram contra a Luftwaffe mais tarde.

 

As partes mais interessantes do livro, contudo, são aquelas relacionadas ao declínio aéreo da Alemanha, e como Galland o relata. Apesar de que teria sido fácil (e simples) para ele juntar-se à onda do pós-guerra em repudiar Hitler e os nazistas, ele se afasta disto e, ao invés disso, procura por razões mais específicas. É difícil não ver, entretanto, que sua opinião de Göring não era particularmente boa. Desde cedo ele homenageia o papel de Göring como arquiteto da Luftwaffe (apoiado por Hitler), mas ele é muito superficial. Apesar de nunca usar apelidos, ele nota secamente que o “Gorducho” (que parece ter sido o apelido de Göering entre os comandantes) uma vez enviou caças noturnos em uma busca frenética através do Reich após ser enganado por um logro britânico. Mais tarde, a moral de Göring caiu ainda mais (de fato, no final da guerra somente o estranho senso de lealdade de Hitler para velhos camaradas parece ter garantido sua sobrevivência) e os comandantes de caça experientes o enfrentaram em 1945 com uma lista de preocupações sobre a condução da guerra aérea. Apesar de seu desejo de evitar dar nome aos bois, Göring viu isto como uma rebelião e reagiu furiosamente, exilando alguns dos melhores pilotos a postos distantes tão longe quanto a Itália e apontando Galland como o líder do grupo. Ironicamente, isto deu a Galland o que ele queria, retirando-o da Inspeção de Pilotos e indo para o comando do esquadrão de Me 262, um padrão para o qual os poucos pilotos de caça restantes da Luftwaffe buscavam nos últimos dias desesperados da guerra.  

 

O próprio Hitler não surge particularmente bem no livro. Novamente, apesar de Galland se afastar das críticas diretas e fáceis do ditador, ele deixa claro que a interferência de Hitler no assunto do Me 262 – sua exigência de converter o caça a jato em um bombardeiro – era lembrada com horror pelos profissionais. De fato, há um momento particularmente seco quando ele nota que Hitler grita “Nenhum de vocês teria pensado nisto!” e deixa o leitor sem dúvidas por que nenhum dos aviadores e estrategistas havia pensado nisto. Apesar de Alfred Price (ex-piloto da RAF e autor de livros militares) ter recentemente justificado a decisão de Hitler, o consenso de opinião é que na visão da grave situação estratégica aérea sobre a Alemanha na época, a tentativa de converter o Me 262 em um bombardeiro resultou em atrasos sérios que poderiam ter sido evitados. O Heinkel 162, o último caça a jato que fascinou os estrategistas militares por muitas décadas após a guerra, também sofre crítica severa, tanto o avião em si como o plano insano de usar membros da Juventude Hitlerista treinados com planadores como pilotos (um “massacre em massa no ar”, como Galland relembra). No frigir dos ovos, apesar de um número de aeronaves ter sido entregue, dificilmente alguém a viu em ação e o plano de usar pilotos adolescentes felizmente jamais rendeu frutos. Na visão da influência que o He 162 teve no pensamento do pós-guerra, os comentários de Galland são muito interessantes. Apesar de ser complementar em relação ao avião movido a foguete Messerschmidt 163, ele também nota que a obsessão no final da guerra com “defesa pontual” (tendo pequenos grupos de aviões defendendo alvos particulares) também era um beco sem saída. É difícil na visão do que ele diz discordar com seus comentários de que os recursos teriam sido melhor aplicados se fossem para o Me 262, um projeto aprovado com sucesso na prática.

 

O autor do livro é altamente profissional e sintético, sem aridez excessiva ou autopiedade moralizante. Apesar de Galland obviamente ver o bombardeio das cidades alemãs com ódio, ele evita se posicionar contra os Aliados neste assunto, assim como ele evita discutir a maldade do regime ao qual ele serviu. Um prefácio interessante do livro é feito pelo ás da RAF Douglas Bader, que foi atingido por Galland ou um de seus homens sobre a França (resultando na perda de suas pernas) e que encontrou-se com o ás alemão após sua captura. Bader relata o incidente em sua biografia, Em Busca dos Céus, e Galland acrescenta sua própria versão dos eventos e como Bader quase o convenceu a deixá-lo voar em um Me 109 em torno do aeródromo! Ambos os homens parecem ter tido uma admiração verdadeira entre si, e acredito que tenham mantido contato após a guerra. Bader estava ciente dos horrores do Nazismo, mas exonera Galland de envolvimento direto já que enquanto jovem não podia ser responsabilizado pelas visões e ações de Hitler e seus homens. Ao invés disso, ele encerra o livro dizendo:

 

Por qualquer critério, Galland é um bravo, e eu pessoalmente desejo encontrá-lo algum dia em qualquer lugar e em qualquer companhia.

 

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sábado, 21 de setembro de 2013

E a revolução esbarrou no Paraná

Gazeta do Povo, 21/09/2013

Tropa de Candido Dulcídio Pereira, em terras paranaenses, durante a Revolução Federalista (1893 - 1895)
 
No momento em que o então presidente marechal Floriano Peixoto convocou o veterano da Guerra do Paraguai coronel Gomes Carneiro, ele não se arrependeu. A ordem era conter o avanço da Revolução Federalista no Sul do Brasil. Em cinco dias, ele chegou à região para se tornar um dos protagonistas da História.

Era novembro de 1893 e a tropa revolucionária já avançava em direção ao Paraná.

O objetivo era chegar à capital brasileira da época, Rio de Janeiro, e derrubar o governo de Floriano. Os rebeldes também lutavam contra o governador do Rio Grande do Sul, Júlio de Castilhos. Com a revolução, que teve início há 120 anos, os três estados do Sul se tornaram palco de um derramamento de sangue que deixou cerca de 10 mil mortos. Durante as batalhas, houve muitas degolas.

Os federalistas ganharam ânimo no mesmo ano. Na capital nacional, eclodia a Revolta da Armada, sob a liderança do almirante Custódio de Melo, que também lutava contra Floriano. Depois de algumas trocas de tiros com o Exército, os revoltosos seguiram para o Sul do país. Desembarcaram na atual Florianópolis, chamada de Desterro, e proclamaram a cidade como uma nova capital do país. Os interesses fizeram com que as duas revoltas chegassem a se unir, principalmente por parte de Custódio de Melo.

“Eles juntaram forças para derrubar Floriano. Pelo mar, Custódio de Melo foi responsável pela tomada de Paranaguá, que aconteceu em janeiro de 1894”, conta o desembargador e estudioso do tema Paulo Hapner. Pela terra, Gumercindo Saraiva avançou em direção à capital do Paraná.

Cerco da Lapa

No mesmo período em que o litoral foi tomado, os maragatos, como eram chamados os soldados rebeldes, passaram por Tijucas do Sul e chegaram à Lapa – a 60 km de Curitiba.

A situação do Paraná estava um caos. Com o avanço dos rebeldes, o governador do estado, Vicente Machado, tinha fugido de Curitiba. Com apenas 639 homens, poucas armas e falta de alimentos, o coronel Carneiro tinha a missão de conter os federalistas na Lapa.

“As tropas dos maragatos fizeram um verdadeiro cerco à cidade”, relata Hapner. Durante 26 dias, Carneiro e sua tropa, chamados de pica-paus, resistiram bravamente aos ataques dos 3 mil combatentes comandados por Gumercindo Saraiva.

Pelo menos 500 pessoas morreram no Cerco da Lapa, entre elas Carneiro. Com a morte do comandante em fevereiro, a Lapa se rendeu e deixou a passagem aberta para que os revolucionários tomassem de vez Curitiba.

Apesar da derrota, a batalha em Lapa foi fundamental para que os rebeldes fracassassem. Hapner considera um erro estratégico dos maragatos. “Se eles queriam ir para o Rio de Janeiro não poderiam perder tempo em Lapa. Isso fez com que o Exército de Floriano se organizasse e derrotasse os federalistas”, afirma.

Para o historiador Dennisson de Oliveira, “trata-se de um episódio mítico que, para o poder estabelecido sob Floriano, ‘salvou’ a República.”

Libertação de Curitiba acaba em injustiça

Com a tomada de Paranaguá, Tijucas do Sul e Lapa, e a ausência de governador e força militar no Paraná, os rebeldes entraram facilmente em Curitiba. Segundo o estudioso Paulo Hapner, a evacuação das tropas legalistas provocou verdadeiro caos na cidade. Gumercindo Saraiva e Custódio de Melo não tiveram obstáculo. Chegaram a nomear um governador – coronel Teófilo Soares Gomes, que ficou somente quatro dias no poder. “Depois eles se reuniram em uma mansão que existia no bairro Alto da Glória e nomearam outro governador, o João Menezes Dória , que ficou até março”, relata Hapner.

Depois dele, foram nomeados outros dois governadores. O último governador maragato no Paraná foi Antônio José Ferreira Braga, no início de maio de 1894.

Barão do Serro Azul

Os federalistas exigiam ainda “empréstimos de guerra” para não saquear a cidade. A população estava inquieta. Foi neste período que Ildefonso Pereira Correia, o Barão do Serro Azul, exerceu papel fundamental para libertar Curitiba dos maragatos.

Ele tomou a decisão de cuidar de Curitiba por meio de uma junta governativa. Considerava desnecessário derramar mais sangue. Por isso, decidiu negociar. Em troca da paz e da inexistência de saques, o barão emprestou, com o apoio de alguns comerciantes, dinheiro a Gumercindo Saraiva, chefe dos maragatos. A negociação, entretanto, foi vista como uma traição por parte dos defensores de Floriano. “Ele foi político. Mas as pessoas não entenderam isso na época”, diz Hapner.

Dessa forma, os maragatos saíram do município e em maio Vicente Machado retornou ao poder. No entanto, Serro Azul e mais cinco companheiros foram presos sob a alegação de que deveriam ser julgados pelo Conselho Militar pela “ajuda” que teriam dado aos maragatos. Foram levados de trem, em direção a Paranaguá, sob o pretexto de que embarcariam de navio até o Rio de Janeiro onde receberiam a sentença. Mas era uma emboscada. O Barão de Serro Azul e seus amigos foram fuzilados no meio do caminho.

Contraofensiva garante vitória à República

Quando a vitória dos federalistas parecia inevitável, o presidente Floriano conseguiu organizar a ofensiva contra as tropas da Revolta da Armada e da Revolução Federalista. Adquiriu cerca de 10 navios de guerra dos Estados Unidos para iniciar os combates. Além disso, havia organizado um exército de quase seis mil homens em São Paulo. Isso fez com que os maragatos, ainda se recuperando do combate da Lapa, desistissem de invadir o estado paulista.

Não restou alternativa senão recuar e voltar ao Rio Grande do Sul. Em agosto de 1894, Gumercindo Saraiva estava passando em revista seu exército quando foi alvejado por um atirador escondido em uma mata. Após sua morte, a Revolução Federalista perdeu força.

Mas, a derrota final veio em junho de 1895, durante o combate de Campo Osório, no qual o almirante Luís Felipe Saldanha da Gama e seus 400 homens resistiram até o fim. A maioria morreu em combate e os que sobreviveram fugiram para o Uruguai. O acordo de paz foi assinado perto de Pelotas em agosto de 1895.

Privilégios

Fim das benesses aos banqueiros criou as condições para a revolta

Após a Proclamação da República, quem assumiu a presidência foi marechal Deodoro da Fonseca, que adotou uma política econômica que favorecia os banqueiros e o capital especulativo financeiro em geral.“Foi dado a bancos privados o direito de emitir papel moeda sob a forma de empréstimos ao setor privado, supostamente para promover a industrialização. Na prática, os tais bancos emissores concediam tais emprés­timos para membros das suas próprias diretorias, para empresas fantasmas, de laranjas e empresas de fachada”, revela o historiador e professor da Universidade Federal do Paraná Dennisson de Oliveira.

As articulações

O historiador explica que com o marechal Floriano Peixoto essa política foi suspensa. Os banqueiros teriam se articulado com opositores políticos e com os militares da marinha, marginalizados num regime dominado pelo Exército, levando à Revolta da Armada.

“Essas tensões se somaram à guerra civil então em curso no Rio Grande do Sul na qual os partidos políticos se digladiavam em torno de questões como a reeleição e o regime de governo a ser adotado na constituição do estado”, diz Oliveira.

Ele ressalta ainda que o Rio Grande do Sul estava dividido entre os que apoiavam a centralização do poder na capital federal, favorecendo o intervencionismo estatal, e os que defendiam um regime federalista, com maior autonomia para os estados.

Por acidente, EUA quase jogaram bomba nuclear sobre si mesmos

Folha, 21/09/2013

Um documento secreto inédito, que o "Guardian" publica depois que sua classificação de confidencialidade foi alterada, revela que a Força Aérea dos EUA chegou dramaticamente perto de detonar uma bomba atômica sobre a Carolina do Norte cuja potência teria sido 260 vezes maior que a da arma usada para devastar Hiroshima.

Obtido nos termos da Lei de Liberdade de Informação americana pelo repórter investigativo Eric Schlosser, o documento traz a primeira prova de que os EUA escaparam por muito pouco de um desastre de proporções monumentais quando duas bombas de hidrogênio do modelo Mark 39 foram lançadas acidentalmente sobre Goldsboro, Carolina do Norte, em 23 de janeiro de 1961.

 
As bombas caíram após um bombardeiro B-52 se desfazer em voo, e uma das armas se comportou do exato modo como uma arma nuclear foi projetada para funcionar em guerra: o paraquedas de arrasto se abriu, os mecanismos de detonação foram ativados e só um comutador de baixa voltagem impediu uma carnificina inimaginável.

Cada bomba tinha potência explosiva de quatro megatons --o equivalente a 4 milhões de toneladas de TNT. Se a arma tivesse explodido, uma onda fatal de radiação se espalharia sobre Washington, Baltimore e Filadélfia e chegaria a Nova York --pondo milhões de vidas em risco.

Ainda que tenham surgido especulações persistentes quanto à margem ínfima de escape do acidente em Goldsboro, o governo americano negou repetidamente em público que seu arsenal nuclear tenha colocado em risco as vidas de cidadãos do país devido a falhas de segurança.

Mas, em documento recentemente publicado, o engenheiro Parker F. Jones, dos laboratórios Sandia (ligados ao Departamento de Energia dos EUA), avaliou que as bombas que caíram sobre a Carolina do Norte três dias depois do discurso de posse do presidente John Kennedy eram inadequadas em seus controles de segurança e que o comutador final que impediu a detonação poderia facilmente ter sofrido um curto-circuito, o que causaria uma detonação nuclear. "Teria sido uma péssima notícia, a pior possível", ele escreveu.

Jones deu ao seu relatório sigiloso, escrito oito anos após o acidente, o sarcástico título "Goldsboro, ou como eu aprendi a desconfiar da bomba-H" --uma referência a "Dr. Fantástico", filme que Stanley Kubrick lançou em 1964 e trazia o subtítulo "como aprendi a não me preocupar e amar a bomba".

O acidente aconteceu quando um bombardeiro B-52 enfrentou problemas depois de decolar da base Seymour Johnson da Força Aérea para um voo de rotina sobre a Costa Leste norte-americana.

O avião entrou em parafuso, e as duas bombas de hidrogênio que ele transportava se soltaram. Uma delas caiu num campo perto de Faro, na Carolina do Norte, com o paraquedas preso aos galhos de uma árvore; a outra mergulhou em um riacho perto da Big Daddy's Road.

Jones constatou que, dos quatro mecanismos de segurança da bomba que caiu em Faro, cujo objetivo era impedir a detonação acidental, três foram desativados pela queda ou não funcionaram como planejado.

Quando a bomba atingiu o solo, um sinal de detonação foi enviado ao núcleo atômico da arma, e apenas o comutador, altamente vulnerável, impediu uma calamidade. "A bomba Mark 39 modelo 2 não conta com segurança adequada para o papel de alerta aéreo exercido pelo B-52", concluiu o engenheiro.

O documento foi localizado como parte da pesquisa para um novo livro de Schlosser sobre a corrida nuclear, "Command and Control" (comando e controle).

Schlosser descobriu que pelo menos 700 acidentes e incidentes "significativos" envolvendo 1.250 armas nucleares foram registrados de 1950 a 1968.

"O governo norte-americano vem consistentemente tentando ocultar informações do povo do país a fim de impedir que perguntas sejam feitas sobre nossa política de armas nucleares", diz ele.

"Fomos informados de que não havia possibilidade de essas armas detonarem acidentalmente, mas em pelo menos um caso a detonação quase aconteceu."

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

[SGM] O Fardo da Eterna Culpa Alemã

Paul Gottfried, 11/01/2012



O politicamente correto tem permeado a atividade do historiador de tal forma que historiadores honestos devem reinventar a roda. Ele tem infectado a história alemã em particular. A doutrina da “culpa coletiva” alemã é frequentemente mantida como uma precondição para o bom comportamento alemão. Historiadores profissionais nos EUA, Inglaterra e especificamente na Alemanha devem assumir a maldade generalizada de seu objeto de estudo desde pelo menos a unificação de 1871. O principal teórico social da República alemã, Jürgen Habermas, argumentou repetidamente que ver os alemães menos do que responsáveis por todas as principais catástrofes europeias é “pedagogicamente perigoso”.

Habermas parece ignorante do que o pai da moderna história técnica, Leopold Von Ranke, estabeleceu como a real função do historiador: descrever o passado como “ele de fato ocorreu.” Ele se sente totalmente feliz que os alemães aprendam meias-verdades e mesmo invenções descaradas, desde que estas signifiquem culpabilidade e, portanto, um anseio pela reconciliação. Tal autoaversão também tornará os alemães ansiosos em desistir de sua identidade nacional pecaminosa e tornarem-se membros da comunidade internacional (mesmo que ela realmente não exista). Certas inverdades têm um caráter aparentemente salutar e todos os principais partidos políticos alemães agora aceitam a responsabilidade única da Alemanha pelas duas guerras mundiais e o papel positivo dos exércitos de Stalin em “libertar” seu país do “fascismo”.

Essencial a esta autoflagelação é ter o servo Auschwitz, nas palavras de um antigo ministro do exterior alemão, como “o mito fundador da República Federal Alemã.” Uma pessoa deve acreditar que o Terceiro Reich não somente matou milhões de judeus, mas que os alemães de todas as classes e religiões cooperaram alegremente. A forma mais extrema desta acusação é encontrada no livro Os Carrascos Voluntários de Hitler, de Daniel J. Goldhagen (1996), lançado na Alemanha como Hitlers Willige Vollstrecker. O livro tornou-se um sucesso alemão apesar de sua evidência não provada ou inventada, uma fraude metodicamente dissecada por críticos judeus como Norman Filkenstein e Ruth Bettina Birn em Uma Nação sob Julgamento: A Tese de Goldhagen e a Verdade Histórica (1998). Mesmo assim, Goldhagen conduziu viagens literárias entre os descendentes daqueles que ele indiscriminadamente esculacha, trazendo exposições em massa de alemães pecadores arrependidos.

Nem todos os livros sobre o que os alemães supostamente sabiam sobre o Holocausto e o que eles fizeram para torná-lo possível são tão relaxados quanto o trabalho de Goldhagen. A formulação mais respeitável de sua tese é mais ou menos essa: o extermínio nazista dos judeus era um “segredo aberto”. Nenhum administrador alemão ou oficial alemão deveria saber “segredos de Estado” a menos que eles pertencessem à sua função específica. Enquanto qualquer violação desta restrição seria punida com rigor, o segredo não era tão bem guardado quanto seus conquistadores acreditavam. Os judeus não podiam ser removidos, somos informados, sem que seus vizinhos não-judeus não soubessem que eles sofreriam um destino terrível onde quer que fossem levados.

A visão atual diz que havia antissemitismo na Alemanha há séculos. Ela explica que no período entre guerras, os partidos nacionalistas que exigiam a exclusão dos cidadãos judeus receberam muitos votos. Há algo mais que os historiadores germanófobos agora enfatizam, mas que eles podem exagerar: a divisão ocasional da distinção entre os membros da Waffen SS Einsatzgruppen – que cercavam e assassinavam judeus, poloneses e russos – e os soldados da Wehrmacht que simplesmente estavam combatendo.

Agora, todo historiador anglófilo escrevendo sobre o Terceiro Reich está argumentando que o Holocausto foi em sua maior parte o trabalho de soldados alemães regulares. A afirmação de “minimizadores do Holocausto” – de que o número de prisioneiros mortos nos campos de extermínio foram inflacionados – agora parece aceitável. Mas historiadores como Tim Snyder e Richard J. Evans contra-argumentaram que não era necessário transportador os judeus para os campos de extermínio porque muitos soldados estavam executando o serviço sujo. Eles descrevem o Holocausto como um projeto de execução pública, alimentado pela simpatia pela “Solução Final” de Hitler.

Esta visão tornou-se tão comum entre os antifascistas alemães (não há outro tipo agora permitido) que em demonstrações públicas e exibições excessivas, o soldado médio da Wehrmacht foi transformado em um executor principal dos assassinos nazistas. Nestas ocasiões, jovens nos abordam para nos dizer que seus avós ou bisavós eram certamente assassinos em massa. Estes descendentes penitentes parecem desejar que sua nação ancestral logo despareça.

É contra este cenário de loucura que Alfred de Zayas, um alto funcionário aposentado da Comissão das Nações Unidas para Direitos Humanos, publicou o livro Genocídio como um Estado Secreto (Völkermord als Staatsgeheimnis, 2011). Zayas escreveu outros trabalhos controvertidos que vão contra o discurso padrão esquerdista. Entre seus primeiros estudos estão as análises extensamente documentadas dos assassinatos organizados dos europeus orientais contra os alemães étnicos depois da Segunda Guerra Mundial, assim como os acordos do pós-guerra que permitiram estes crimes. Os trabalhos de Zaya são dolorosamente documentados, e seu último estudo é baseado em trinta e cinco anos de entrevistas e uma rigorosa seleção de fontes. O autor reuniu os registros e testemunhos dos Julgamentos de Nuremberg em 1946-47 e entrevistou “criminosos de guerra” sobreviventes, incluindo Albert Speer e o almirante Karl Dönitz, os promotores de Nuremberg e antigos prisioneiros de guerra dos nazistas.

Registros do Departamento da Wehrmacht para Investigação de Violações da Lei Internacional indicam um desejo oficial de investigar crimes relatados contra civis. Não há nada que sugira que estes investigadores soubessem algo sobre a Solução Final de Hitler. Quando eles recebiam relatórios sobre fuzilamentos “injustificados” de civis em áreas ocupadas, eles processavam os acusados. Mesmo os juízes designados para a Waffen SS estavam no escuro em relação à missão dos Eisatzgruppen, e algumas vezes eles investigavam relatórios sobre assassinatos em massa acontecendo no leste. Mesmo os inimigos do regime – indo desde aristocratas antinazistas associados com a Resistência até os perseguidos social-democratas (tais como a parcialmente família judia do ex-Chanceler Helmut Schmidt), e mesmo antigos internos dos campos de concentração – não tinham nenhuma ideias da Solução Final. De acordo com a estória oficial, os judeus estavam sendo realocados e seriam empregados em divisões de trabalho fora da Alemanha. Apesar desta evacuação forçada ter causado alguma preocupação entre amigos e vizinhos, o que estava acontecendo não parecia como o início de um genocídio.

A razão mais óbvia para isto é que o segredo era estritamente obedecido. O Holocausto foi planejado por um pequeno círculo que se encontrou no subúrbio de Berlim em janeiro de 1942. Ao se dirigir a seus subordinados da SS em Posen em 1943, Himmler anunciou como seu segredo estava sendo mantido. Outros fatores trabalharam para manter o segredo sem vazamentos: os campos de extermínio, opostamente aos campos de concentração gerais, foram construídos no leste, não na Alemanha. Então, de 1943 em diante, os civis alemães foram submetidos ao bombardeio aliado e tinham que se proteger enquanto as forças inimigas caíam sobre eles. Nesta situação, era improvável que o cidadão alemão se preocuparia a respeito do vizinho judeu “realocado”.

Mesmo as fontes estrangeiras, que eram amplamente disponíveis nas transmissões de rádio, tinham pouco a dizer sobre os judeus mortos e ser pego usando estas fontes poderia significar ao acusado prisão em um campo de concentração. Os alemães que tivessem por acaso descoberto estes crimes não teriam condições de interrompê-los já que divulgar o segredo para um funcionário do governo poderia ser fatal.

Ironicamente, Zayas confirma as evidências sobre o Holocausto que vieram dos Julgamentos de Nuremberg. Apesar desses julgamentos terem sido planejados para tornar os alemães envergonhados de seu país, os juízes não consideraram todos os alemães cúmplices no Holocausto. Foi considerado que o extermínio em massa dos judeus foi um segredo cuidadosamente guardado. Muitos poucos daqueles que foram julgados foram sentenciados à morte ou prisão perpétua por planejarem a morte dos judeus. Mesmo os  promotores acreditavam no que Zaya nos diz em relação ao conhecimento da Solução Final. De fato, houve casos isolados de unidades da Wehrmacht participando no fuzilamento de judeus e outros civis, particularmente em Kharkov e outros lugares na Ucrânia. Mas estes foram tratados como casos especiais e não vistos como comportamento típico da Wehrmacht.

Fica claro que Zayas – que repete a visão do pós –guerra, do Julgamento de Nuremberg, de quem sabia o quê sobre o Holocausto – é agora lembrado em alguns círculos como um apologista alemão. Da perspectiva distorcida atual da intelectualidade alemã, a humilhação do país no pós-guerra nunca vai longe o suficiente.

Paul Edward Gottfried (1941) é um filósofo político conservador, colunista e ex-professor de Humanidades na Faculdade Elizabethtown na Pensilvânia. Atualmente, ele trabalha para o Instituto Ludwig Von Mises.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

[HOL] Meu pai achava que poderia convencer Hitler contra extermínio de judeus, diz filho de Wächter

Folha, 19/09/2013

 
O trem de Viena a Frättingsdorf balança suavemente pelos trilhos, embala o sono dos passageiros. Na manhã fria de abril, com resquícios de um inverno que passou dos limites, o aquecimento do vagão gera um torpor irresistível. Pela ampla janela, as fazendas e seus casarões de pedra se multiplicam a perder de vista. A viagem, nessa sensação de câmara lenta, dura cerca de uma hora.

Pontualmente às 9h42, Horst von Wächter estaciona seu carro em frente à estação. O castelo onde mora, na vila de Haggenberg, fica a quatro quilômetros dali, no silêncio profundo do interior da Áustria. Sem descer, ele abre a porta do passageiro e recebe a reportagem de Opera Mundi com uma pergunta incisiva: “Então você quer saber mais sobre meu pai? Por quê?”

A desconfiança é inevitável. Horst von Wächter, 74 anos, é o quarto dos seis filhos de Otto Wächter, comandante austríaco da SS nazista, o alto escalão paramilitar de Adolf Hitler. Seu pai foi governador do distrito da Cracóvia, na Polônia, e da Galícia, hoje noroeste da Ucrânia, durante a invasão alemã na Segunda Guerra Mundial. É um dos responsáveis diretos pela construção do gueto de Cracóvia e ratificou o uso de câmaras de gás para matar judeus. Fugitivo, não foi julgado no Tribunal de Nuremberg, apesar de ter sido citado diversas vezes.

Apesar do papel determinante na Segunda Guerra, há pouco ou nada sobre Otto Wächter no Arquivo Nacional da Áustria e nas pastas do Centro de Documentação de Berlim, que concentra milhões de papéis sobre o nazismo. O homem que tentou caçá-lo após a guerra, Simon Wiesenthal, considerava-o “o mais odiado entre todos os nazistas fugitivos”, mas conseguiu compilar uma única pasta apenas, hoje parte de seu arquivo, em Viena.

Diante de tão pouco às claras, Horst dispôs-se a falar abertamente sobre o pai. Sua recente abertura para tratar do tema - ele passou a estudar a história da família há poucos anos - é fato raríssimo entre filhos de nazistas proeminentes. Seu esforço, afirma, é por fazer “justiça” ao pai, “corrigir” erros em sua biografia e relativizar os crimes que ele cometeu, separando a ação da SS, responsável pelo Holocausto, da administração civil do território invadido.

À vontade em seu quarto, no Castelo Haggenberg, Horst revelou, em entrevista exclusiva, fatos inéditos da vida de seu pai, dado como morto em condições suspeitas em 1949 (leia aqui o perfil de Otto Wächter). Assim como outros nazistas do alto escalão, do porte de Adolf Eichmann, Franz Stangl e Josef Mengele, Wächter estudou uma fuga para a América do Sul e considerava o Brasil sua melhor opção. Uma carta, datada de 10 de maio de 1948, à qual Opera Mundi teve acesso (leia mais aqui), comprova a tentativa de emigrar.

A entrevista tem duas partes. Na primeira, cuja íntegra está abaixo, Horst fala sobre a carreira política de seu pai, definida pela adesão ao NSDAP (o partido nazista alemão) em 1923 e a participação direta no Putsch (golpe de Estado) na Áustria, em 1934. A segunda parte, que será publicada amanhã, trata de aspectos pessoais da vida do general da SS até ser dado como morto em Roma, escondido e sob identidade falsa, supostamente nos braços do bispo Alois Hudal, notório por acobertar e facilitar a fuga de nazistas.

Opera Mundi: O sr. disse querer “corrigir” a história de seu pai. O sr. poderia dizer o que isso significa e o que exatamente gostaria de corrigir?

Hosrt Wächter: Eu quero fazer justiça a ele. Eu quero deixar claro quem ele era, qual seu caráter e o porquê de suas ações. É para que as coisas sejam compreendidas, sabe? Esse quadro é de meu avô [aponta para um retrato de Josef Freiherr von Wächter, pai de Otto Wächter, sobre a cabeceira de sua cama], que foi um oficial bastante condecorado na Primeira Guerra Mundial, e também foi ministro da Defesa [da Áustria]. Ele foi um dos 30 oficiais mais condecorados da guerra. Essas pessoas queriam fazer o bem às outras. Eles não são o que todo mundo diz hoje do Terceiro Reich, que todos na SS eram criminosos [a SS foi banida da Alemanha em 1945 e classificada como organização criminosa no Tribunal de Nuremberg], o que não pode ser verdade. Sempre há gente que quer fazer o melhor, apenas fazer seu trabalho.

OM: Seu pai foi membro do Partido Nazista desde o início.


HW: Sim, ele foi primeiro da SA [o primeiro exército paramilitar de Hitler, em 1923]. Mas o evento mais importante da vida de meu pai foi a Primeira Guerra Mundial. Sua família era da Boêmia, onde havia uma forte oposição nacionalista entre os alemães e os checos. Ele terminou a escola em Budweis, no sul da Boêmia, onde havia um ginásio alemão, e entrou nesse conflito quando ainda era jovem. Ele estava tentando fazer algo e resolver os problemas. Então ele, claro, entrou no movimento nacionalista desde o início. Foi através do esporte. Meu pai era um esportista, foi campeão austríaco de remo na década de 1920. Ele não veio da universidade. Muitos surgiram desse lado [acadêmico], mas ele veio da área esportiva.

OM: O senhor tem detalhes sobre o que aconteceu a ele n período? Sobre suas visões políticas ou participação política?

HW: Havia um clube esportivo alemão - e tudo era para ser alemão. Nem tanto austríaco, mas tudo estava baseado no “ser alemão”. De fato, a Áustria foi forçada à independência após a Primeira Guerra, porque na verdade todos queriam se juntar à Alemanha. Esse era o grande sonho: a reunificação com a Alemanha. Por isso ele viu com bons olhos a Anschluss [anexação da Áustria, em 1938], porque era isso o que pessoas sonhavam. Elas queriam fazer parte da “grande nacionalidade alemã”, e isso aconteceu. Mas havia as ideias de Hitler sobre - especialmente - os povos eslavos, os tchecos, a quem ele tratava como Untermensch [subespécie]. Eles não estavam “à altura” dos alemães e essa foi a razão pela qual a guerra deu errado. Tenho certeza que a União Soviética teria caído 50 anos antes se os alemães tivessem compreendido a situação e buscado a independência de Ucrânia e das outras nações orientais. É o que elas esperavam, a liberação do regime comunista. Meu pai sempre defendeu que era preciso respeitar as pessoas e nunca tratá-las como animais.

OM: Seu avô e seu pai seguiram carreira na advocacia.


HW: Sim, meu avô tornou-se ministro da Defesa [da Áustria] em 1921 - desde 1890 ele era do partido Großdeutsche [Volkspartei, extinto partido nacionalista austríaco]. Foi quando eles se mudaram para Viena e ele se tornou advogado. E, claro, com sua ligação ao nacionalismo, ele começou a defender nazistas nos tribunais. Meu pai também, ele era diplomado e se tornou aquilo que se classificava como “advogado independente” [entre 1932-1934]. Em Viena ele conheceu um grupo de pessoas que trabalhava para forçar a Áustria a se tornar parte da Alemanha. [Ele foi mais tarde advogado do partido nazista e da SS.]

OM: Seu pai foi governador geral da Cracóvia. O que há para ser “corrigido” na versão corrente da história da administração dele?

HW: Hoje as pessoas não fazem mais distinções entre o governo civil e a SS. Dizem que o governo civil foi responsável por tudo o que aconteceu lá pelas mãos da SS. Isso é um grande mal-entendido. Ele viviam em disputas internas. É preciso esclarecer que existia esse dualismo, proposto e assinado por Hitler. Quando ele estabeleceu a base legal para a instituição do governo geral, ele disse que havia o governo civil e a polícia, que por sua vez não estava subordinada ao governo. Ela era independente. Por isso, havia disputas internas praticamente todos os dias. E também por isso meu pai tem essa má reputação de criminoso. Ele morreu em julho de 1949. A data de sua morte está sempre colocada errada. Em setembro de 1949 uma jornalista em Roma descobriu sobre sua morte. Os jornais, com grandes manchetes, colocaram-no como o “assassino de [Engelbert] Dollfuß [chanceler da Áustria assassinado na tentativa de golpe de 1934]”. Depois veio uma sequência de três dias de manchetes em jornais vienenses. Isso criou sua má reputação e por isso ele sempre foi tratado como criminoso.

OM: Mas seu pai também é reponsável pela decisão de usar câmaras de gás para matar judeus. Como o senhor vê isso?

HW: A principal reputação de meu pai está relacionada diretamente com Simon Wiesenthal. Porque Wiesenthal escreveu que viu meu pai no dia 15 de agosto de 1942 em Lemberg, quando ele e sua mãe foram colocados no trem. Ele escreveu também [no livro Os Assassinos entre Nós] que meu pai mandou 800 mil judeus para a câmara de gás e que era o homem que ele mais odiava entre todos os nazistas. Mas eu consigo provar que nesta data ele não estava em Lemberg. Tenho uma carta que ele escreveu para minha mãe no dia 15, em que ele estava em uma assembleia partidária na Cracóvia. Ele não estava em Lemberg. Simon Wiesenthal confundiu-o com Fritz Katzmann, que era o chefe da SS em Lemberg. Ele o confundiu porque meu pai costumava usar o uniforme da SS, porque com esse uniforme ele teria mais autoridade. Isso também é mencionado no diário de [Hans] Frank [governador geral dos territórios invadidos]. Ou seja, ele está completamente equivocado. O problema é que Simon Wiesenthal disse isso e é muito difícil contradizê-lo. 

OM: Onde o senhor estava e o que sentiu ao saber do que Wiesenthal afirmava?

HW: Eu não me ocupava disso. Eu achava que precisava ficar mais velho. Mas sempre tive uma sensação ruim sobre Simon Wiesenthal. Tenho 800 cartas trocadas entre meus pais, e cartas bastante importantes. O que quero provar que ele era totalmente contra a SS. Ele era contra, apesar de usar o uniforme da SS.

OM: Então ele tinha inimigos na SS?

HW: Havia um superior chamado [Friedrich-Wilhelm] Krüger na Cracóvia, o chefe [da SS] em todo o governo geral, que tentou eliminar meu pai.

OM: Politicamente ou fisicamente?

HW: Ele queria mandar meu pai para Waffen SS [tropa de elite de Hitler], que era como um esquadrão suicida, dado o número de mortes. Se ele tivesse entrado para a Waffen SS, certamente teria morrido. Depois disso, meu pai foi o responsável por montar divisões de ucranianos, e depois de Stalingrado [a batalha durou de agosto de 1942 a fevereiro de 1943] eles mudaram... meu pai também foi um grande amigo de [Andrey Andreyevich] Vlasov, sabe? Ele foi um dos mais fortes generais de Stálin que depois tentou montar seu próprio exército russo para lutar contra o próprio Stálin. Os alemães o aprisionaram, por cerca de 2 anos, até que [Heinrich] Himmler [comandante da SS] entendeu que eles queriam lutar contra os comunistas e poderiam ajudar os alemães. Então, claro, meu pai ficou cada vez mais importante, porque tinha conexões com grupos eslavos. Até que se tornou chefe das divisões eslavas na Reichssicherheitshauptamt [o serviço de inteligência nazista] em Berlim. Ele teria de supervisionar todos os exércitos que lutavam pelos alemães.

OM: Qual era o objetivo principal dele nesse cargo?

HW: Era construir exércitos contra Stálin. Era a ideia dele, bastante simples. Começou em 1943. Himmler estava bastante cético, mas então perceberam que havia muitos voluntários. Como meu pai estava no governo civil, que não tinha nada a ver com o exército, ele buscou uma solução política. Se ele conseguisse convencer essas pessoas a lutar contra o bolchevismo, eles teriam ganhado a guerra. Em maio de 1945, ele deixou Berlim e se juntou a essa divisão ucraniana na Áustria. Essa divisão foi a única que não foi entregue a Stálin pelo povo. Ele tinha conexões e também padres. Era a única divisão da SS que tinha seu próprio padre. Meu pai trabalhou diretamente com o arcebispo de Lemberg, que era uma personalidade venerada.

OM: Seu pai era partidário de uma ligação próxima com a Igreja Católica.

HW: Sim, sem dúvida. Por isso ele conseguiu que essa divisão não sucumbisse ao tratado de Yalta [em 1945], que ordenava que todos os soldados deveriam ser entregues a Stálin. Em Yalta, Stálin disse que queria a divisão do meu pai, já que ele a considerava a mais perigosa, com poloneses e ucranianos. Os ucranianos sempre quiseram ser independentes da Rússia, o que acabou acontecendo.

OM: Seu pai teve uma carreira proeminente no partido nazista. Consta nos arquivos que ele era bastante expansivo, proativo e tinha presença.

HW: Ele tinha bom humor, deixava uma boa impressão, tinha bons modos. Ele era bem-sucedido nessa figura do caráter alemão. Ele obteve sucesso em convencer as pessoas. Ele não era um fanático, um primitivo.

OM: Ele era classificado como “inteligente”.

HW: Mas não era um intelectual. Era um homem prático. Ele conseguiu fazer com que as pessoas trabalhassem rápido e encontrassem as melhores saídas. Ele era um funcionário do Estado muito bom. Em 1938 ele disse à minha mãe, antes de entrar no governo alemão: “Eu posso ser um bom advogado e ganhar muito dinheiro ou um bom político e tentar fazer algo para todos no país. O que faço?” Claro que minha mãe respondeu que a escolha era dele, que ele poderia fazer o que quisesse. Mas seu destino político, claro, já estava selado desde o Putsch [tentativa de golpe fracassada do partido nazista na Áustria, em 1934] e ele nunca mais poderia mudar ou deixar a vida política pela advocacia. Já me perguntaram: por que ele não largou tudo na Polônia [em virtude do Holocausto]? [Ludwig] Losacker [seu braço-direito] escreveu que eles se sentiam responsáveis pelas pessoas lá. E se deixassem o governo, a SS ficaria mais forte.

OM: Como ele tratava as minorias? Que informações o sr. tem a respeito disso?

HW: Tenho uma carta de Lemberg, onde ele tinha uma casa grande, com empregados. Havia uma cozinheira que era uma nazista fanática e xingava os funcionários poloneses. Eles avisaram que não trabalhariam mais por causa dela. Meu pai tentou explicar a ela que não pode tratar as pessoas assim e que deveria mostrar superioridade no trabalho, no comportamento e na qualidade do tratamento que oferecia aos outros.

OM: Mas ele tomou alguma medida em defesa dessas pessoas como governador?

HW: Ele tomou medidas restritivas em Cracóvia contra os judeus, para construir o gueto [em março de 1941]. Isso leva sua assinatura. Ninguém sabia como encontrar uma solução. Ninguém sabia como as coisas estavam se desenvolvendo. Meu pai sempre achou que poderia encontrar Hitler e convencê-lo de mudar suas políticas.

OM: O senhor se refere à Solução Final [extermínio de todos os judeus].

HW: Sim, com relação a judeus, poloneses e a todos os povos eslavos. Só depois ele soube que não poderia fazer nada. Mas sempre disse: “Se eu pudesse ir a Hitler e explicar que isso está errado. Que isso nos trará ainda mais inimigos. Que devemos tratar esses povos como seres humanos.” Ele tinha certeza que poderia convencer Hitler, mas nunca foi recebido.

OM: Eles nunca se encontraram?

HW: Encontraram-se apenas durante a Anexação da Áustria [em 1938]. Durante a guerra, não. Nem no bunker, nem no quartel-general.

OM: Como o senhor vê hoje a carreira do seu pai?

HW: Acho que ele não tinha escolha. Ele nasceu nesse tempo de ideias nacionalistas, confusão, fanatismo. Ele, como um homem que queria fazer algo positivo, mudar as pessoas, resolver coisas, automaticamente estava fadado a dar esses passos que deu. Ele obteve sucesso porque seus grandes inimigos no governo, como Krüger e Katzmann, foram enviados para outras regiões em 1943. Ele obteve sucesso, mas claro que a coisa toda não tinha futuro. Estava tudo fadado a desmoronar. A ideia de nacionalismo e de superioridade racial é nonsense.

OM: Como era a relação de seu pai com Heinrich Himmler, chefe da SS?

HW: Himmler ficou bastante bem impressionado com ele, com seu comportamento e como ele se apresentava. Com seu caráter. Himmler era um burocrata, um tipo Schreibtisch (escrivaninha, em alemão). Ele ficou impressionado com meu pai. Foi Himmler quem o deu o posto na SS. Himmler distribuía esses postos como presentes, para tornar a pessoa dependente dele. Ele dava presentes ao meu pai, a todos os filhos que ele teve - o objetivo era ter o maior número possível de filhos -, uma medalha. Por outro lado, meu pai não aceitava as políticas de Himmler e da SS, mas ele só conseguiu construir a divisão na Ucrânia por ter esse contato direto.

OM: Ele era um protegido de Himmler.

HW: Sim. Quando os russos conquistaram a Galícia e Krüger ordenou que meu pai entrasse no exército, Himmler disse: “Não, o Dr. Wächter será enviado à Itália.” Isso porque ele foi criado em escolas italianas, em Trieste, e falava o idioma muito bem. Ele faria parte do governo militar a partir de agosto de 1945. 


De campeão de remo ao Holocausto

 
Bei meiner division SS [Junto da minha divisão SS]”, diz a legenda da foto, guardada no sótão do Castelo Haggenberg, na Áustria. Nela aparecem juntos, lado a lado, Karl Otto Gustav Freiherr von Wächter, então governador da Galícia (hoje noroeste da Ucrânia), Heinrich Himmler, comandante-geral da SS, e Hans Frank, governador geral da Polônia invadida.

Esse retrato, com três dos principais responsáveis pelo Holocausto, simboliza o auge da carreira política de Wächter dentro do partido nazista, como comandante da SS e governador. O menino vienense, nascido no dia 8 de julho de 1901, cumpria ali funções que mais tarde o tornariam parte do grupo dos maiores criminosos do século 20, com papel crucial na Segunda Guerra Mundial.

Quando garoto, durante a Primeira Guerra Mundial, Wächter seguiu as mudanças de país de seu pai, o general austríaco Josef Freiherr von Wächter, membro do extinto partido nacionalista austríaco Großdeutsche Volkspartei, ou Partido da Grã-Alemanha. Sua infância foi construída sob o ideal de uma sólida identidade alemã.

No mesmo álbum de fotos empoeirado, e até hoje inédito, mais imagens recriam sua juventude em Trieste, na Itália, onde cursou o primário e aprendeu italiano, e em Budweis, então parte do reduto alemão na República Tcheca. Era o mais jovem de três filhos do ministro. Tinha duas irmãs.

Após chegar a Viena, embebido em um nacionalismo galopante, entrou para a “Reserva Alemã” (Deutsche Wehr). Entre 1919 e 1922, foi duas vezes campeão austríaco de remo, mas praticava também natação, escalada e esqui na neve. Entrou para o curso de direito na Universidade de Viena e, em oito semestres, tornou-se advogado.

No dia 1º de abril de 1923, aos 21 anos, Otto Gustav von Wächter, ou apenas Otto Wächter, deu um passo crucial em sua carreira. Nessa data, ele assinou sua filiação ao então proibido partido nazista da Áustria, o "Nationalsozialistische Partei Deutscheösterreiches", ou Partido Nacional Socialista da Áustria Alemã.

Cadastrado sob o número 301.093, o jovem vienense passara a fazer parte da SA, ou "Sturmabteilung", o grupo paramilitar que sustentou a ascensão de Adolf Hitler ao poder na década de 1920 até sua eleição a chanceler, em 1933. Seu destino, a partir daquele ponto, já estava selado e culminaria com a invasão da Polônia e o início da Segunda Guerra Mundial.

Personalidade e ascensão

Documentos oficiais do partido nazista, analisados por Opera Mundi no arquivo do ativista Simon Wiesenthal em Viena, descrevem com elogios a personalidade de Wächter. Ele era de um “caráter expansivo” e tinha “força de vontade” para “aplicar decisões”. Foi classificado como “muito inteligente”, “justo” e “vigoroso”. Bebia moderadamente e era não fumante.

No álbum de fotos, o recém-admitido nazista aparece atlético, frequentando clubes esportivos. Em uma de suas viagens para esquiar na neve, em 1929, quando quebrou uma perna, conheceu Charlotte Bleckmann, filha de um industrial, com quem se casaria em 1932 e teria seis filhos - dois meninos e quatro meninas.

Apenas dois anos depois, em 1934, Wächter participaria diretamente da tentativa de golpe (Putsch), que falhou, mas vitimou o então chanceler austríaco Engelbert Dollfuss, aliado de Benito Mussolini, que, com suas pretensões fascistas tornara ilegal o Partido Comunista e dissolvera o Parlamento Austríaco. A trama, apesar de não ter dado resultados imediatos, abriu caminho para o processo de anexação da Áustria, a chamada "Anschluss", em 1938.

O distanciamento da vida familiar era inevitável. Em meio à convulsão política, Wächter se refugiou em Berlim, onde cumpriria funções como advogado do partido nazista. Seus retratos seguintes seriam, em grande parte, relacionados à ascensão na hierarquia militar até ingressar na SS, ou "Schutzstaffel", o Esquadrão de Proteção a Hitler, liderado por Heinrich Himmler.

No período em que conquistou suas principais promoções na SS, e foram várias de 1935 até o final da guerra, Wächter guardou tempo para ensaios fotográficos. Orgulhoso das novas posições na carreira, posava em diversos ângulos. Nas legendas das páginas, fazia anotações sobre a escalada na hierarquia militar, como em 1938, quando se tornou SS-Standartenführer, patente máxima de um oficial de campo e equivalente a coronel.

Guerra e gueto



Naquele ano, o mesmo da entrada de Hitler na Áustria, Wächter já tinha dois filhos - teria ainda outros quatro, seguindo a ideologia nazista de ter a maior prole possível. Típico burocrata disciplinado, ganhara a confiança de Himmler e partiria para as funções mais decisivas de sua carreira em 1939, quando tornou-se governador da Cracóvia, na Polônia recém-invadida, e decretou a perseguição os judeus.

“Todos os judeus acima de 12 anos no distrito da Cracóvia devem, a partir do dia 1º de dezembro de 1939, colocar em suas casas uma marca visível...Os judeus que não o fizerem devem sofrer uma punição severa...”, ordenou ele, assim como outras medidas para obrigar poloneses ao trabalho forçado. Em 1941, decretaria também a criação do Gueto de Cracóvia.

Wächter foi questionado por seu próprio pai, em carta, sobre as políticas nazistas em relação aos judeus. O documento está guardado nos arquivos do filho, Horst, no Castelo Hagenberg. Em resposta, de 22 de abril de 1941, ele lamentou e afirmou que “as medidas eram de interesse da nação como um todo.” Meses depois, em uma reunião de governo no dia 20 de outubro de 1941, Wächter diria que a “solução radical à questão judaica é inevitável.”

Galícia e Wiesenthal*

Em janeiro de 1942, Wächter era nomeado governador do distrito da Galícia em Lemberg, hoje Lviv, na Ucrânia. Sete meses depois, ele receberia ordens da SS para a erradicação dos judeus do gueto da cidade. Suas ações no cargo o tornariam “o nazista mais odiado” pelo ativista e escritor judeu Simon Wiesenthal, que morava em Lviv durante a invasão alemã.

No dia 15 de agosto de 1942, relata Wiesenthal em seu livro, "Os Assassinos entre Nós", Wächter fiscalizou pessoalmente o transporte de quatro mil judeus para campos de extermínio - entre eles, estava sua mãe, que nunca mais foi vista. Wiesenthal também seria enviado para campos de trabalho, mas sobreviveu e dedicou sua vida a caçar nazistas no pós-guerra. “Wächter matou pelo menos 800 mil judeus”, escreveu ele. O filho de Wächter, Horst, contesta as informações.

No final de seu período à frente da adminstração da Galícia, Wächter investiu em laços com Andrey Andreyvitch Vlasov, notório opositor de Josef Stálin, e, em 1945, já no final da guerra, foi transferido para o Reichssicherheithauptamt, o departamento responsável, entre outras coisas, pela inteligência do Reich, em Berlim, onde encabeçou a criação de exércitos de voluntários para combater ao lado dos nazistas. O projeto de guerrilha não frutificou. A guerra estava já próxima do fim.

Derrota e fuga

O dia 8 de abril de 1945 deu início à fase mais atribulada e, até agora, pouco documentada da vida de Wächter. As correspondências entre ele e a mulher, Charlotte Bleckmann, reunidas no arquivo de Horst Wächter, no Castelo Hagenberg, são as únicas fontes de informações sobre o que estava por vir.

Com a guerra próxima do fim, o ex-governador da Galícia telefonou para Charlotte, que morava em Zell am See (a cerca de 400 km de Viena). Logo em seguida, ela enterrou as jóias da família e queimou arquivos referentes ao seu governo - possivelmente o Arquivo Wächter, considerado importantíssimo por Wiesenthal para esclarecer a atuação nazista na Cracóvia e na Galícia.

“Minha mãe ficou desesperada e não sabia o que fazer”, afirmou Horst a Opera Mundi. Na época, ele tinha apenas seis anos, mas lembra com clareza os primeiros passos da família no pós-guerra. O pai era fugitivo, fez visitas esporádicas e era tratado como “um tio da América do Sul”.

A partir de 1946, enquanto seu tutor, Himmler, era julgado e condenado à forca no Tribunal de Nuremberg**, Wächter adotou uma identidade falsa - circulava sob o nome de Alfredo Reinhardt - e então escapou para Roma, sob o zelo de Alois Hudal, bispo da igreja Santa Maria Dell’Anima, perto da Piazza Navona.

O templo, com laços germânicos, foi o trampolim de nazistas que, munidos de passaportes falsos oferecidos pela Cruz Vermelha, fugiram para o anonimato em diversos países e continentes. Wächter tentou, mas não conseguiu o documento antes de morrrer. Em cartas trocadas com um amigo que já vivia na Argentina, citou o Brasil como o destino mais fácil e seguro de entrar, mesmo sem passaporte.

Morte súbita

Pouco depois de obter informações sobre as rotas de fuga, em maio de 1949, Wächter foi dado como morto. A data de falecimento, que consta nos documentos da família, é o dia 15 de julho daquele ano. Alois Hudal, bispo que notoriamente ajudou nazistas, ficou encarregado de dar a extrema-unção. A causa foi uma icterícia grave, que ele teria contraído ao nadar nos canais da capital italiana.

“Eu lamento que o nacional-socialismo não tenha chegado a um entendimento com a igreja. Muitas coisas seriam diferentes na Alemanha e na Europa de hoje. O poder do bolchevismo teria sido destruído”, teria dito Wächter a Hudal, antes de morrer. O corpo seria enterrado no cemitério Verano, em Roma.

A morte do “nazista mais odiado” só chegaria aos jornais dois meses depois, em setembro de 1949, quando foi classificado como “assassino de Dolfuss”, por sua participação no Putsch de 1934. Wiesenthal nunca acreditou na versão de Hudal e buscou, até 1987, sem sucesso, informações sobre o Arquivo Wächter, que teria sido queimado por Charlotte.

Somente 22 anos depois, em 1971, seu restos mortais voltariam à Áustria sob sigilo e de forma ilegal, em uma manobra feita por sua mulher. Munida de um documento de transporte da ossada para Palermo, na Sicília, ela conseguiu levá-lo ao cemitério Pfarrkirche Fieberbrunn, no Tirol. Em 1985, Charlotte morreu e foi enterrada ao seu lado.

Desde então, a família se absteve de buscar ou divulgar informações sobre a história do patriarca, Otto Wächter. A última foto, com todos reunidos, data da primavera de 1949, meses antes de ser dado como morto. O assunto tornou-se tabu até que Horst decidiu revisar os documentos que tinha em casa. Eles contam em detalhes essa história, ainda ausente da bibliografia da Segunda Guerra Mundial.

Nota:
 
* Já foi provado que Simon Wiesenthal era um grande mentiroso. Para saber mais sobre ele, ver o artigo "Por que acho que Simon Wiesenthal é uma fraude".
 
** Himmler não foi julgado em Nuremberg, mas sim suicidou-se quando foi feito prisioneiro pelos britânicos. É nisso que dá entregar a redação de artigos históricos para jornalistas.