domingo, 27 de outubro de 2013

[POL] A Guerra Nazista contra o Câncer

Marc S. Micozzi, Pierre Lemieux

 


A primeira guerra contra o câncer não foi iniciada por Richard Nixon nos Estados Unidos no início dos anos 1970, mas por Adolf Hitler e Joseph Goebbels na Alemanha no início dos anos 1940. Apesar das afirmações por historiadores como Daniel Kevles que os cientistas americanos e britânicos provaram primeiro a ligação entre o tabaco e o câncer de pulmão no início dos anos 1950, Robert N. Proctor, historiador de ciência na Universidade Estadual da Pensilvânia, demonstra que essa ligação foi originalmente estabelecida na Alemanha Nazista, no início dos anos 1930. Apesar dos Estados Unidos terem se beneficiado dos avanços nazistas nos campos da aeronáutica, armamentos e farmacêuticos após a Segunda Guerra Mundial, este feito de saúde pública foi aparentemente ignorado. Em 1995, a Philip Morris criou uma propaganda na Europa intitulada “Quando eles desenharão a linha?”, que identificava os ativistas antifumo como nazistas.

Hitler era conhecido por ser um vegetariano abstêmio de álcool e tabaco e não tolerava o consumo destas substâncias em sua presença (exceto por algumas mulheres). A cultura nazista, nos diz Proctor, era “uma mistura curiosa do moderno e do romântico” – Jeffrey Herf a descreveu como “modernismo reacionário” – e havia uma visão romântica da natureza e outra holística para a saúde. Em agosto de 1933, Hermann Göring anunciou o fim da “tortura insuportável e sofrimento nos experimentos em animais” e ameaçou colocar “aqueles que ainda pensam que podem tratar os animais como propriedade inanimada” em campos de concentração – onde, irônica e tragicamente, humanos seriam logo usados em experimentos médicos.

O governo nazista era conhecido, e admirado, por implementar as políticas de saúde mais progressistas de sua época. Pesquisa estado-da-arte e regulação eram aplicadas a doenças ocupacionais, ambientais e do cotidiano. O câncer foi declarado “o inimigo número um do Estado.” A política nazista favoreceu a comida natural e se opunha à obesidade, açúcar, álcool e estilos de vida sedentários. O movimento de abstinência existente contra o álcool e o fumo tornou-se mais ativo com os nazistas, que estiveram envolvidos no que Proctor chama “criar uma utopia sanitária e segura.”

Não é surpresa que os funcionários americanos dos narcóticos da época admiravam a guerra nazista contra as drogas. Hoje, a admiração provavelmente iria na direção oposta.

O capítulo mais longo do livro de Proctor é dedicado ao tabaco, “um foco justificado,” explica o autor, “pelo fato surpreendente – apesar de desconhecido – que a Alemanha nazista tinha a campanha antifumo mais forte do mundo e a epidemiologia de doenças causadas pelo tabaco mais sofisticada do mundo”. É bem conhecido que o próprio Hitler era um fanático antifumo, mas o movimento antitabaco e as políticas públicas intervencionistas da era nazista eram muito mais do que um reflexo dos caprichos de Hitler. O fumo era atacado como uma “relíquia do estilo de vida liberal” e como uma “masturbação dos pulmões”. Foi na Alemanha nazista que pesquisadores médicos, alguns com fortes conexões nazistas, primeiro estabeleceram uma ligação estatística entre o fumo e o câncer de pulmão. Os cruzados antifumo publicavam revistas como “Em Guarda” (Auf der Wacht) e “Ar Puro” (Reine Luft). Cerca de meio século antes da Agência de Proteção Ambiental associar-se a pseudociência contra o “ambiente enfumaçado do cigarro”, o ativista antifumo Dr. Fritz Lickint cunhou o termo “fumante passivo”. (Ele também achava que o café era cancerígeno!)

Muitos controles antifumo foram realizados por decreto, incluindo restrições à publicidade e banimento do tabagismo em muitos locais de trabalho, escritórios públicos, hospitais e, mais tarde, em todos os trens urbanos e ônibus. As mulheres não podiam comprar cigarros em certos lugares. “Mulher alemã não fuma”, proclamava um cartaz nazista.

Em 1941, o Instituto para Pesquisa dos Danos do Tabaco foi criado sob a direção de Karl Astel. Um nazista dedicado que cometeu suicídio em abril de 1945, Astel achava que a oposição ao tabagismo era uma “tarefa nacional socialista”. Como presidente da Universidade de Jena, ele baniu o fumo em todos os prédios da universidade. É no Instituto de Astel que Proctor busca o trabalho científico mais inovador sobre as relações entre o tabagismo e o câncer.

Proctor fica embaraçado e angustiado pelo fato de que “as iniciativas de saúde pública foram perseguidas não apenas em virtude do fascismo, mas também em consequência dele.” Mas seu livro é fraco na análise desta questão: no capítulo final, onde ele tenta abordá-la, ele não vai mais longe do que dizer que o fascismo alemão era uma mistura complexa de bem e mal. Felizmente, a documentação extensiva existente fornecida pelo autor nos dá o significado de puxar a análise além de onde ele a deixou.

Devemos lembrar que o fascism é baseado na submissão do indivíduo ao coletivo. Como Benito Mussolini escreveu sobre o século vinte, “Se o século XIX foi o século do individualismo, pode-se esperar que este seja o século do coletivismo e, assim, o século do Estado.” (Italian Encyclopedia 1932) O ramo alemão do fascismo, o Nacional Socialismo, foi caracterizado também por crenças racistas (opostamente às crenças puramente nacionalistas). Vamos lembrar também que, em todos os lugares do Ocidente, a doutrina de saúde pública desviou-se das boas preocupações públicas, como o saneamento ou doenças contagiosas, em direção de um ataque frontal às escolhas individuais e aos estilos de vida politicamente incorretos.

A relação entre fascismo e saúde pública é provavelmente mais simbiótica do que Proctor admite. Após ler A Guerra Nazista contra o Câncer, o leitor cuidadoso estará bem posicionado para entender por que o fascismo exige políticas fortes de saúde pública. O Estado fascista precisa de “material humano valioso” – ou como diríamos hoje, “recursos humanos” saudáveis. Os lemas nazistas relatados por Proctor são mais explícitos do que os cruzados atuais ousariam empregar: “Seu corpo pertence à Nação!”, “Você tem a obrigação de ser saudável!”, “Alimentação não é um assunto particular!” Novamente antecipando os fascistas da saúde atuais, o Departamento Nacional de Estatística nazista estabeleceu os assim chamados custos do tabagismo. Erwin Liek, algumas vezes chamado o pai da medicina nazista, achava que a cura do câncer exigia mover-se do “cuidado com o indivíduo” para “prevenção do câncer em larga escala – para a população inteira”.

A mistura de saúde pública torna-se mais poderosa com o ingrediente adicional de racismo fornecido pelo ramo alemão do fascismo. As campanhas de saúde pública contribuem com a preservação não somente da população de contribuintes e recrutados, mas também do “plasma embrionário alemão.” Mas este acréscimo não era realmente necessário, como o coletivismo havia se contentado: “os médicos-führer da Alemanha,” nota Proctor, “estavam menos preocupados com a saúde dos indivíduos do que com o vigor da ‘raça’, a chamada comunidade racial.”

Proctor preocupa-se em distanciar-se dos libertários que veriam as mãos invisíveis do fascismo na repressão atual do tabagismo: “Minha intenção,” ele escreve, “não é argumentar que os esforços antifumo atuais têm raízes fascistas, ou que as medidas de saúde pública são em princípio totalitárias – como alguns libertários parecem querer nos fazer crer.” Isto é apenas lógica: se F (fascismo) implica S (saúde pública), não significa que S implica F. É claro.

Tal conexão é que tanto as políticas fascistas quanto a ideologia de saúde pública exigem um Estado poderoso. Poder de Estado é o denominador comum, e uma condição necessária, tanto do fascismo quanto dos controles fortes de saúde pública. Proctor nos lembra que as preocupações com saúde pública eram bem conhecidas no período de Weimar e que a primeira agência anticâncer mantida pelo Estado foi criada na Alemanha trinta e três anos antes dos nazistas chegarem ao poder. Mas, ele escreve, “o que era novo no período nazista foram políticas aumentadas e poderes legislativos para implantar medidas preventivas abrangentes.” Os poderes de polícia aplicados pelo fascismo permitiam à ideologia de saúde pública mostrar sua verdadeira natureza.

O aparato estatal nazista tinha um “Führer da Saúde do Reich”, cujo departamento o nome de Leonardo Conti, um ativista antifumo dedicado, permanece associado. Sob Conti, registros centrais foram criados para muitas doenças e vícios. A Alemanha nazista era uma sociedade transparente, onde os indivíduos eram prevenidos de esconder suas vidas do Estado – absurdamente ilustrado pelo banimento em 1938 da estocagem de produtos em porões. Milhares de alcoólatras “registrados” tornaram-se vítimas do programa de esterilização sob a Lei para Prevenção de Prole Geneticamente Doente. Enquanto que muitos fascistas da saúde foram processados e condenados em Nuremberg, Conti escapou da condenação enforcando-se em sua cela.

De algum modo, a intolerância social dos movimentos progressistas contemporâneos, tais como direitos dos animais, ativismo antitabagismo, esforços de abstinência e entusiasmo por comidas naturais, pode ser vista de forma semelhante aos aspectos “progressistas” da Alemanha nazista, não somente em seus objetivos, mas crescentemente e de forma alarmante em relação a alguns dos métodos usados para impor soluções coletivas a indivíduos. Por exemplo, alguns cientistas acreditam que apesar dos efeitos nocivos da fumaça de cigarro serem claros, os efeitos secundários em fumantes passivos em relação à morbidez e à mortalidade, apesar de menos claros, tem sido mais poderosos em motivar política pública contra os direitos do indivíduo. Como Proctor afirma, a apreciação dessas complexidades podem abrir nossos olhos para novos tipos de continuidade entre o passado e o presente e podem levar a uma melhor compreensão de como o fascismo triunfou temporariamente.



 
Nota:

Ver o artigo:


Basicamente, a lógica do Reductio ad Hitlerum afirma que TUDO o que vem da Alemanha Nazista não presta ou foi feita com más intenções. É o caso da pesquisa contra o câncer, que foi realizada apenas com o objetivo de criar uma raça superior, ou da campanha antifumo, que se tratava de um assalto às liberdades individuais. Tivessem sido essas pesquisas e políticas criadas nos EUA ou na Grã-Bretanha, seriam celebradas como avanços da sociedade democrática. Mas como foram criadas sob o nazismo...

[POL] O Carisma subestimado de Hitler

Der Spiegel, 11/10/2013

Entrevista com o historiador Volker Ullrich

 
Spiegel: Sr. Ullrich, o quão Hitler era normal?

Ullrich: Ele não era tão louco quanto alguns estudiosos de psicologia tem nos feito acreditar, pelo menos com suas linhas simplistas de argumentação. Ele pode mesmo ter sido mais normal do que poderíamos desejar.

Spiegel: A maioria das pessoas considera Hitler um psicopata. Muitos historiadores também acreditam que alguém capaz de cometer tais crimes não pode ser normal.

Ullrich: Hitler foi, sem dúvida, excepcional em suas ações criminosas. Mesmo assim, sob muitos aspectos, ele não foi de modo algum diferente do comum. Jamais seremos capazes de compreender as coisas terríveis que aconteceram entre 1933 e 1945 se negarmos sempre que Hitler também tinha características humanas, e se falharmos em levar em conta não somente suas energias criminosas, mas também suas qualidades simpáticas. Enquanto continuarmos a vê-lo como um monstro terrível, o fascínio que ele exerceu continuará sendo um enigma.

Spiegel: Joachim Fest publicou uma biografia abrangente de Hitler em 1973 e Ian Kershaw outra, em dois volumes, começando em 1998. Qual foi a sua motivação em produzir uma terceira grande biografia?

Ullrich: Fest analisou Hitler de uma posição de ódio e aversão. Um capítulo central de seu livro é intitulado “Visão de um ignorado”. Kershaw estava basicamente interessado nas estruturas sociais que tornaram Hitler possível, enquanto que a própria pessoa permanece de algum modo em segundo plano em sua análise. Trago o homem para o plano principal. Isto cria não somente uma nova imagem de Hitler, mas uma visão mais complexa e contraditória em relação à qual estamos acostumados.

Spiegel: “Hitler, a pessoa” é o nome de um capítulo que o Sr. descreve como chave em seu livro, que será publicado esta semana. O que foi Hitler como pessoa?

Ullrich: A coisa extraordinária sobre Hitler foi o seu talento para a hipocrisia. Suas habilidades formidáveis como ator são frequentemente subestimadas. Há somente muito poucas situações onde podemos dizer que ele era verdadeiro. Por isso é tão difícil responder à pergunta como ele era como pessoa. Ele podia ser muito agradável, mesmo com pessoas que ele detestava. Por outro lado, ele também era incrivelmente frio mesmo com pessoas próximas a ele.

Spiegel: Em um ponto do livro, o Sr. escreve de um “charme cativante”. Charme não é uma qualidade geralmente associada com o criminoso do século.

Ullrich: Um bom exemplo de sua habilidade em tornar-se agradável é a sua relação com o presidente alemão Paul Von Hindenburg, que inicialmente tinha uma resistência considerável em relação ao “cabo boêmio”, como ele chamava Hitler. Contudo, poucas semanas após ser apontado chanceler, Hitler conseguiu envolver tanto Hindenburg que este último assinaria qualquer coisa que Hitler lhe pedisse. Joseph Goebbels notou frequentemente em seus diários que o ditador não somente poderia bater papo de forma agradável com seus associados, mas sabia absolutamente como ouvi-los também.

Spiegel: Por outro lado, algumas vezes este comportamento tornava-se descontrolado. O menor descuido poderia transformar-se em fúria.

Ullrich: Minha impressão é que a maioria de seus ataques de raiva eram planejados. Ele fazia isto deliberadamente para intimidar as pessoas, quando a conversa com seus adversários políticos não resultavam naquilo que ele queria. Em poucos minutos, ele poderia estar novamente se comportando com controle absoluto e exercendo o papel de anfitrião atencioso.

Spiegel: Há pouco na vida inicial de Hitler que poderia sugerir uma carreira como genocida. Ao invés de realizar o desejo de seu pai de tornar-se um burocrata, Hitler direcionou-se para a pintura e leitura. “Livros eram seu mundo,” disse um amigo de infância.

Ullrich: Hitler era um leitor ávido, uma paixão que permaneceu com ele ao longo de toda sua carreira. Os Arquivos Federais em Berlim têm recibos, mostrando títulos e preços, da livraria de Munique onde Hitler comprava seus livros. Estes mostram a imensa quantidade que ele adquiria, especialmente sobre arquitetura, apesar de biografias e trabalhos filosóficos também lhe interessarem. Hitler lia livros de maneira incrivelmente rápida, mas também seletivamente. Ele somente lia trabalhos que se ajustassem à sua visão de mundo e que poderiam ser utilizados em sua carreira política.

Spiegel: O sr. iria longe o suficiente para chamá-lo de um intelectual das artes?

Ullrich: Seu interesse nas artes era certamente excepcional. Durante uma estadia em casa em setembro de 1918, ele gastou seu tempo não em bordéis, como seus camaradas faziam, mas no Museu Island de Berlim.

Spiegel: Em outras palavras, talvez pudéssemos dizer: O mais zeloso dos artistas na política.           

Ullrich: Esta é uma boa definição. Mas Hitler nunca foi mais do que um artista mediano. Seu grande talento era no jogo da política. É fácil subestimar as qualidades excepcionais e habilidades que ele tinha para se tornar bem sucedido neste campo. No espaço de apenas três anos, ele ascendeu de um veterano de guerra desconhecido para o rei de Munique, enchendo os salões da cidade semana após semana.

Spiegel: Hitler era um lobo solitário. Ele não fumava, não bebia e eventualmente tornou-se vegetariano. O quão a excentricidade tornou-se um atrativo para as massas?

Ullrich: Munique em torno dos anos 1920 era um ambiente ideal para um agitador de extrema direita, especialmente alguém que discursasse tão acaloradamente quanto Hitler fazia. Mas ele também era um tático talentoso, manobrando seus movimentos passo a passo. Ele cercou-se de seguidores que o adoravam devotamente. E ele garantiu o apoio de patronos influentes, especialmente os Bruckmann, um casal respeitado do mundo editorial; a família Bechstein, que fabricava pianos; e, é claro, os Wagner em Bayreuth, que logo começaram a tratá-lo com alguém da família.

Spiegel: Mesmo os relatórios preliminares de Hitler como orador notavam a troca de energia entre ele e seus ouvintes. “Tive uma sensação peculiar,” uma testemunha escreveu em junho de 1919, “como se a excitação da plateia fosse o seu trabalho e, ao mesmo tempo, isso lhe desse uma voz.”

Ullrich: Para entender o poder de Hitler como orador, devemos considerar que ele não era apenas um demagogo de boteco como sempre o representamos, mas, de fato, ele elaborava seus discursos deliberadamente. Ele começava muito calmamente, na base da tentativa, quase que como sentindo o passo adiante e tentando sentir a que grau ele poderia conduzir sua plateia. Não até ele estivesse certo de sua aprovação, ele então aumentaria sua seleção de palavras e gestos, tornando-se mais agressivo. Ele continuava isto por duas ou três horas até atingir o clímax, um pico inebriante que levava lágrimas a muitos ouvintes. Quando assistimos aos vídeos de seus discursos hoje, geralmente estamos vendo somente a conclusão.

Spiegel: O escritor Klaus Mann, que observou Hitler comendo uma torta de morango na cafeteria Carlton de Munique em 1932, escreveu mais tarde, “Você quer ser ditador com este nariz? Não me faça rir.” Isto significa que deveria existir uma certa disposição para ser fascinado por Hitler?

Ullrich: Klaus Mann tinha uma repulsão motivada, instintiva e estética desde o início. Mas também há relatos de pessoas que tinham uma visão negativa de Hitler no início, mas que se converteram assim que tiveram contato com ele. Entre os pertences de Rudolf Hess, que serviu como secretário privado de Hitler a partir de 1925, encontrei cartas nas quais ele descreve para sua noiva as viagens agitadas através da Alemanha. Em uma das cartas, ele fala de uma reunião de líderes empresariais na cidade de Essen em abril de 1927. Quando Hitler entrou na sala, ele encontrou um silêncio indiferente, uma rejeição completa. Após duas horas, houve aplausos ensurdecedores. “Um ambiente como o Circo Krone (Munique),” escreveu Hess.

Spiegel: O fervor escravo dos discursos das reuniões do partido de Hitler ainda hoje chega aos nossos ouvidos. O quão era diferente sua voz na vida privada daquele que ele utilizava em público?

Ullrich: Muito poucas gravações existem na qual Hitler pode ser ouvido falando normalmente. Mas naquelas que existem, é evidente que ele possuía uma voz totalmente calma e morna. É um tom completamente diferente daquilo que ele costumava usar em suas aparições públicas*.

Spiegel: Fest foi uma vez perguntado em uma entrevista, “Hitler era antissemita?”

Ullrich: Sem dúvida. O antissemitismo – em sua forma mais radical, de fato – era o núcleo de sua personalidade. É impossível entender Hitler sem ele. Saul Friedländer o descreveu como “antissemitismo redentor”, que se encaixa muito bem. Hitler via os judeus como a personificação de tudo o que era mau, a raiz da maldade no mundo.

Spiegel: Mas este não foi o caso no início.

Ullrich: Em seu manifesto Mein Kampf, Hitler deixou claro que ele tornou-se um antissemita fanático ainda em Viena. Mas não existem provas de que ele tenha feito qualquer comentário difamatório sobre os judeus antes de se mudar para Munique. Pelo contrário, na pensão masculina onde ele viveu por três anos em Viena, ele manteve contatos amigáveis com judeus. Os negociantes que compararam suas aquarelas por um preço decente eram também judeus.

Spiegel: Ele experimentou algo como uma conversão ao antissemitismo?

Ullrich: Sabemos que Hitler tornou-se um antissemita radical durante a revolução de Munique em 1918-19, que ele presenciou e que alternou da extrema esquerda à extrema direita. A República Soviética de Munique que existiu por breve período incluía muitos judeus nas posições de liderança – Ernst Toller, Eugen Leviné e Erich Mühsam. Isto levou a um antissemitismo que se espalhou na cidade como uma epidemia**.

Spiegel: O Sr. se refere a uma carta previamente desconhecida de agosto de 1920, na qual um estudante de direito de Munique registrou as visões de Hitler após um encontro com ele. Quando o assunto era os judeus, Hitler disse, que ele acreditava que o vírus deve ser erradicado e que a existência do povo alemão estava em jogo. O quão sério Hitler era em tais afirmações naquela época?

Ullrich: O projeto político que nasceu de sua visão de mundo não consistia ainda de extermínio em massa. Apesar de toda sua retórica de destruição, “livrar-se dos judeus” nesta época significava expulsá-los da Alemanha. A chamada “Solução Final”, significando o assassinato sistemático dos judeus europeus, não fez partes dos planos até o início da Segunda Guerra Mundial.

Spiegel: Na época dos pogroms da Kristallnacht em 9 de novembro de 1938, o mais tardar, estava claro que todos aqueles que o regime considerava seus inimigos estavam agora sem direitos ou proteção. O Sr. escreve, de forma correta, que a Alemanha deixou o mundo das nações civilizadas neste ponto. Mas mesmo isso falhou em destruir a popularidade de Hitler.

Ullrich: Não é fácil dizer qual era a visão da população geral em relação aos pogroms. Baseado em fontes como os relatórios da Gestapo sobre o ambiente geral no país, tendo a compartilhar da visão de que a maioria do povo não aprovava esta violência. Curiosamente, a “Kristallnacht” não estava associada a Hitler. Ele conseguiu manter-se nos bastidores, apesar de estar mexendo os pauzinhos, com outros líderes nazistas assumindo a responsabilidade. Esta exoneração é vista nos comentários das pessoas, “se o Führer tivesse sabido disso...”.

Spiegel: Que Hitler deu considerável importância à sua imagem pode também ser vista no modo como ele tratou da questão do dinheiro. Ao mesmo tempo em que ele se apresentava como um líder humilde, em segredo ele sonegava impostos, como o Sr. escreve em seu livro.

Ullrich: Um funcionário exemplar da Receita escreveu em outubro de 1934 que Hitler devia 405.000 marcos em impostos. Qualquer obrigação em pagar estes impostos atrasados foi imediatamente abandonada, declarando Hitler isento a partir daquele momento, e o funcionário que encontrou o problema levou uma advertência.

Spiegel: Começando em 1937, havia mesmo selos mostrando sua imagem, da qual Hitler recebia direitos de imagem.

Ullrich: Hitler sempre gostou da riqueza. Não é coincidência que mesmo nos anos iniciais, ele dirigia os modelos mais novos e caros da Mercedez. Nem o seu apartamento de nove cômodos na Prinzregentenstrasse de Munique exatamente se encaixava na imagem de homem simples do povo, trabalhando até os ossos para o benefício da Alemanha. Também encontrei contas de hotéis onde Hitler ficou com sua equipe antes de 1933. Ele gastou 800 marcos por quatro dias no Kaiserhof de Berlim, por exemplo. Isto é equivalente hoje a €3,500.

Spiegel: O Sr. também dedicou um capítulo inteiro à relação de Hitler com as mulheres. O Sr. não acha isso muito insignificante, perguntando sobre a vida privada do ditador?

Ullrich: Acredito que este é um aspecto que não deveria ser omitido de uma biografia. No caso de Hitler, há também o fato de que ele não manteve uma divisão estrita entre suas esferas privada e pública, mas ao invés disso misturou estas áreas de uma forma muito estranha. Isto foi especialmente evidente em Berghof, onde os espaços privados e de trabalho eram interligados.

Spiegel: O que o Sr. acha da teoria de que Hitler era atraído sexualmente por homens?

Ullrich: Ele também supostamente tinha apenas um testículo, o que o deixava relutante em se despir na frente das mulheres. Mas você pode esquecer tudo isso. Aqui, também, Hitler não revelou muita coisa e pouco sabemos exatamente. Mas estou convencido de ele tinha uma relação muito mais íntima com sua última namorada, a assistente de fotógrafo Eva Braun, do que previamente se sabia***.

Spiegel: Kershaw expressa a teoria de Hitler encontrava seu prazer no êxtase das massas.

Ullrich: Não acredito nisso. Hitler sempre se retratou como um homem que renunciou a toda felicidade pessoal em serviço de seu povo. Não há evidência conclusiva disso, mas acredito que atrás da discrição enevoada, Hitler teve uma relação amorosa normal com Eva Braun.

Spiegel: Sem Hitler não teria havido Nacional Socialismo, mas sem as energias que o impulsionaram adiante não teria havido Hitler. Onde estas forças destrutivas teriam se reunido se esta figura chave não tivesse existido?

Ullrich: Elas teriam encontrado outra saída. Uma possibilidade teria sido um governo autoritário dirigido basicamente pelos militares. Pessoas como os chanceleres Schleicher e Papen mostraram do que seriam capazes após o golpe de 1932 na Prússia, demitindo servidores públicos republicanos e expurgando o governo. Leis antissemitas presumivelmente não teriam sido implementadas sem Hitler.

Spiegel: Sr. Ullrich, obrigado pela entrevista.    


      
Notas:

* Hitler explica a invasão da URSS com suas próprias palavras


** Qual o motivo do ódio de Hitler aos judeus?


*** Hitler e as mulheres


 
Tópicos Relacionados:

Hitler: Além da Maldade e da Tirania


A Formação do Pensamento Político de Adolf Hitler


A Biblioteca esquecida de Hitler

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

[SGM] Partida de Futebol da SGM sobrevive ao tempo

The New York Times, 23/06/2012

 
Há poucas coisas impressionantes sobre o Start Stadium exceto suas ruínas. Arquibancadas de madeira no setor da torcida, como dentes mal cuidados, estão em sua maioria faltando ou quebradas. Atrás da pequena área das cadeiras, porém, uma coluna robusta ascende e apóia a estátua. Ela mostra um homem nu, musculoso, heroicamente chutando uma bola no bico de uma águia derrubada.

Setenta anos atrás, em 9 de agosto de 1942, o stadium tornou-se o local de um dos jogos de futebol mais infames e disputados, o chamado “Jogo da Morte”. Com Kiev sob ocupação nazista durante a Segunda Guerra Mundial, um grupo de jogadores ucranianos derrotou um time militar de alemães formados possivelmente por pessoal da artilharia, talvez de unidades da Luftwaffe.

De acordo com a lenda, os alemães alertaram o time local de antemão ou na véspera do jogo que seria melhor perder a partida, e quando os ucranianos ignoraram a ameaça e venceram, os principais jogadores do time foram fuzilados.

O placar final foi 5 a 3. Isto parece todo mundo concordar. E quatro dos cinco jogadores ucranianos morreram nos próximos seis meses após o jogo, de acordo com vários relatos. Eles foram mortos porque ganharam o jogo? Acredita-se que todos os participantes estejam mortos. A verdade permanece elusiva. Um jogador que popularizou a lenda parece ter contado tantas versões da estória quanto foram os gols da partida, tanto dando um brilho no mito quanto desacreditando-o.

Aquele jogo antigo está ganhando atenção renovada à medida que a Ucrânia serve como co-participante da Euro Copa 2012. A partida cresceu além de uma disputa esportiva em direção de um mito e folclore, imortalizado em monumentos nos arredores de Kiev e em artigos, livros, documentários e filmes, mesmo uma versão estrelada por Sylvester Stallone. O último filme, chamado Partida e produzido pelos russos, estreou antes da Copa e recebeu críticas por retratar os ucranianos como simpatizantes nazistas.

Alguns acreditam que o jogo de 1942 foi, ou deve ter sido, um jogo fatal. Muitos pesquisadores e jornalistas descartam a lenda como propaganda da era soviética e tem resistido a refutá-la. Outros ainda parecem despreocupados com a verdade. Eles abraçam o mito como um símbolo duradouro do patriotismo e desafio ucranianos em um país onde entre 8 e 10 milhões de cidadãos morreram durante a guerra, um país onde rações mínimas incluíam cascas de árvores e estrume de vaca, um país cujo museu nacional da Segunda Guerra Mundial mostra uma máquina usada pelos nazistas para transformar ossos humanos em fertilizante.

“Os fatos dizem que a partida realmente aconteceu, mas não foi um jogo da morte,” diz Marina Shevchenko, uma historiadora que trabalha no Museu Nacional de História da Grande Guerra Patriótica em Kiev, como a Segunda Guerra Mundial era conhecida na antiga União Soviética. “As pessoas querem suas lendas, como Robin Hood.”

Se o jogo e sua lenda não existiram, disse Alexander Doyzhenko, um diretor cinematográfico da primeira metade do século XX, “Então teríamos que inventá-lo.”

Sob Ocupação

Em 19 de setembro de 1941, os nazistas ocuparam Kiev. Dias depois, mais de 33.000 judeus foram mortos em Babi Yar, uma planície nas redondezas da dilacerada capital. Como resultado da invasão alemã, a temporada de futebol ucraniana foi cancelada. Mas em junho de 1942, um tipo de torneio de futebol foi aparentemente organizado, recebendo dois times ucranianos e representantes da Alemanha, Hungria e Romênia.

O melhor time, F.C. Start, estava invicto. Ele era composto de padeiros, a maioria dos quais haviam jogado ou deveriam jogar pelo poderoso clube de Kiev Dynamo, que mais tarde venceria 13 campeonatos da liga soviética. Como diz a estória, o proprietário da padaria, também descrita como uma fábrica de pães, era um grande fã do Dynamo. Ele pensou na idéia de formar um time amador, fornecendo rações extras de comida aos jogadores e tempo para treinar.

Em 6 de agosto de 1942, o Start é dito ter vencido um time alemão Flakelf por 5 a 1. Flankelf traduzido para Flak 11 sugere que o time alemão era composto principalmente por aqueles que estavam envolvidos com canhões antiaéreos ao redor de Kiev. Uma revanche contra um time alemão reforçado foi realizada no final da tarde três dias depois. Uma cópia do pôster anunciando o jogo de 9 de agosto está exposto no museu da Segunda Guerra Mundial.

Cerca de 2.000 espectadores, pagando cinco rublos pelo bilhete, estiveram presentes na revanche no Start Stadium, então conhecido como Estádio Zênite. Segundo alguns relatos, o estádio estava repleto de soldados, oficiais da SS e cães policiais, apesar de outros relatos dispensarem isto. Makar Gomcharenko, uma estrela do Start, disse em 1985 num relato oral que algumas pessoas desconhecidas alertaram que poderia ser arriscado jogar contra e derrotar os alemães em uma revanche.

“Todos nos disseram: ‘O que vocês estão fazendo? É um perigo real,’” disse Goncharenko, registrado pelos funcionários do museu, que também traduziu a entrevista do russo para este artigo.

Os jogadores do Start escutaram, mas decidiram finalmente continuar com o jogo.

“Esporte é esporte,” disse Goncharenko. “Não queríamos perder.”

Ele também disse que um oficial da Gestapo visitou o time antes da partida, apresentando-se como árbitro e disse aos jogadores que eles deveriam estender seus braços direitos e fazer a saudação nazista no campo antes do jogo. Os jogadores concordaram sem a intenção de cumprir, disse Goncharenko. No final, eles recusaram a ordem, ele disse, e ao invés disso deram um popular grito esportivo, “Preparação, cultura, hurra!”

De acordo com este relato de 1985, o jogo começou brutalmente e o artilheiro do Start, Nikolai Trusevich, foi derrubado. Água foi jogada sobre ele para reacordá-lo, mas enquanto ele continuou desmaiado, os alemães fizeram três gols. Durante o intervalo, o Start decidiu jogar por um empate, acreditando que o árbitro nunca permitiria os ucranianos vencerem. Mas os instintos competitivos venceram. E após o jogo ficar empatado em 3 a 3, Goncharenko disse que ele marcou os dois gols finais para dar a vitória ao Start por 5 a 3.

Em uma entrevista de 1992 a uma estação de rádio de Kiev, Goncharenko deu outra versão da partida, que é o relato mais romantizado. Nesta versão, o Start obteve inspiração de seu artilheiro atingido na cabeça e ficou abobado, ganhando por um placar de 3 a 1 até o intervalo. É neste ponto que o oficial da SS entrou no vestiário e cumprimentou a qualidade dos jogadores. Mas, de uma forma polida e resoluta, ele também disse que eles deveriam saber das conseqüências da vitória, dando a entender que eles deveriam entregar o jogo para o time Flakelf.

Tal alerta parece plausível, diz Andy Dougan, um professor no Conservatório Real da Escócia, uma universidade de artes em Glasgow, e autor de um livro sobre o jogo, Dynamo: Triunfo e Tragédia na Kiev ocupada pelos Nazistas.

Os alemães naquela altura devem ter se arrependido da revanche, diz Dougan.

“Tornou-se um pesadelo porque eles deram ao povo algo para se reunir,” disse Dougan. “Estou muito certo que haveria um alerta, que eles tinham tido sua diversão.”

Mesmo assim, o Start não sucumbiu. O relato de uma testemunha no livro de Dougan disse que um jogador ucraniano, Alex Klimenko, driblou os alemães no final, então na cara do gol chutou a bola para fora como um ato final de humilhação aos ocupantes.

O mito mais extremo diz que os jogadores do Start foram fuzilados imediatamente após a partida, alinhados no campo ou colocados contra uma parede. Isto certamente não é verdade. Goncharenko disse em 1985 que os jogadores do Start estavam “um pouco nervosos,” mas tomaram banho e foram para casa.

De acordo com uma fotografia altamente divulgada, os jogadores de ambos os times ficaram juntos para uma foto do pós-jogo, alguns deles sorrindo. (Apesar de, como muito deste conto, mesmo a fotografia ser questionada; alguns acreditam que ela foi feita antes do jogo ou em outra partida no mês anterior.)

 
Também não é verdade que os jogadores do Start fugiram em massa, como mostrado no filme Vitória de 1981, refilmado na Alemanha e França com prisioneiros de guerra aliados e estrelando Stallone, Michael Caine, Pelé e uma trupe de jogadores profissionais.

“Hollywood,” disse rindo Sergey Mikhaylenko, presidente do fã Clube do Dynamo, “Final feliz.”

Conseqüências

O que de fato aconteceu após a partida permanece tão obscuro em muitos aspectos quano o que aconteceu durante ela.

Segundo muitos relatos, o F.C. Start jogou novamente em 16 de agosto, vencendo outro time ucraniano, o Rukh, por 8 a 0. Mas em sua história oral de 1985, Goncharenko disse que os jogadores do Start foram presos pela Gestapo na padaria que eles trabalhavam em 10 de agosto, no dia seguinte à revanche contra o time Flakelf. Os agentes da Gestapo carregavam um pôster ou folheto com os nomes  de outros jogadores do Dynamo – o time pré-ocupação para muitos atletas do Start – e queriam saber onde eles estavam, disse Goncharenko.

Ele não mencionou, mas o Dynamo era mantido pela polícia. Talvez a Gestapo suspeitasse que os jogadores eram membros do NKVD, a polícia secreta precursora da KGB. Os jogadores foram separados e torturados por mais de três semanas, disse Goncharenko, antes de serem levados para o campo de concentração de Syrets, no limite de Kiev e próximo à planície de Babi Yar.

Outros relatos dizem que os jogadores do Start foram presos em 18 de agosto, logo após a partida contra o Rukh. Há várias razões possíveis para sua prisão: eles podem ter irritado o novo regime de ocupação em Kiev e destruído a ideia da superioridade alemã vencendo todas as partidas. Eles podem ter sido traídos por Georgi Shvetsov, o dono do Rukh, que teria dito a algumas pessoas estar ciumento do sucesso do Start. Eles podem ter sido suspeitos de ter ligações com o NKVD. Um jogador, Mykola Korotkikh, é dito ter sido morto várias semanas após a partida por ser suspeito de servir na força de segurança de Stalin. Alguns relatos dizem que uma fotografia dele vestindo um uniforme do NKVD foi encontrada e ele foi dedurado sob coação de sua irmã.

Seis meses e meio após o jogo, em 24 de fevereiro de 1943, três jogadores do Start foram fuzilados, conforme relato: Trusevich, Klimenko e Ivan Kuzmenko. Em 23 de fevereiro, uma fábrica onde os alemães faziam a manutenção de lagartas motorizadas é dita ter sido sabotada em um incêndio provocado por partisans.  Na mesma época, uma brigada de trabalhadores do campo de Syrets também foi acusada de estar tentando contrabandear salsichas; um dos trabalhadores deve ter tentado atacar o comandante do campo ou seu pastor alemão no momento da prisão. Em retaliação, os alemães fuzilaram os três prisioneiros da brigada.

Dougan, o autor escocês disse acreditar que os jogadores do Start foram mortos deliberadamente. “Pode bem ter sido uma chance real, mas estes caras não eram apenas três jogadores, mas três dos melhores,” ele disse. “Acho que as chances são muito grandes.”

Promotores em Hamburgo, Alemanha, investigaram o episódio. Mas eles encerraram o caso em 2005, dizendo que não encontraram nenhuma prova de que os jogadores do Start foram assassinados por derrotar o time do Flakelf naquele final de tarde em 1942.

Uma Lenda Distorcida

Este fato dificilmente foi mantido sem ser embrulhado com lenda. No final de 1943 e no início de 1944, uma vez Kiev libertada pelos soviéticos, artigos de jornal começaram a aparecer descrevendo detalhes que se encaixariam num mito contraditório conhecido como Jogo da Morte.

Inicialmente, as autoridades soviéticas estavam hesitantes em promover a lenda, preocupadas de que os jogadores fossem colaboracionistas nazistas por terem participado de uma série de jogos em 1942, de acordo com Tetiana Bykova, uma historiadora da Academia de Ciências da Ucrânia que estudou o chamado Jogo da Morte.

Mas artigos foram publicados e “o gênio foi liberado da garrafa,” diz Bykova. “Se você não pode apagar a estória, então você deve contá-la de modo que lhe traga a maior vantagem política possível.”

A solução soviética foi eliminar os outros jogos e embelezar a ideia da partida mortal, diz Bykova. Começando no início dos anos 1950, com a publicação de um artigo de jornal de Kiev e um livro chamado O Duelo Final e filmes subsequentes produzidos pela União Soviética e Hungria, a partida serviu tanto como uma fonte do orgulho ucraniano quanto como propaganda soviética.

“É como O Homem que matou o facínora*,” diz Dougan. “Quando a lenda é melhor do que a verdade, publique a lenda.”

Inicialmente, os jogadores do Start estavam relutantes em discutir o jogo. Uma boa razão para isso era o medo, como disseram Dougan e outros. Medo de serem vistos como colaboradores nazistas. Medo de estarem ressentidos por ter vivido sob condições menos duras do que os outros e por terem escapado do serviço militar. Medo de contradizer um conto de heroísmo soviético contra as atrocidades nazistas.

Isto ajuda a explicar por que Goncharenko deu versões conflitantes ao longo dos anos. E por que, em seu relato de 1985, ele ter dito que antes de Trusevich, o goleiro, ter sido fuzilado após seis meses da partida, suas palavras finais foram, “Vida longa a Stalin, vida longa ao esporte soviético!” De acordo com Dougan, Goncharenko “estava muito assustado.”

Quando a União Soviética caiu, relatos mais prosaicos da partida foram dados. Georgi Kuzmin, um jornalista ucraniano que cobriu o futebol por mais de 40 anos, disse que Goncharenko lhe contou em 1991 que ninguém pediu para os jogadores do Start não jogarem e que Goncharenko não acreditava que os jogadores foram deliberadamente assassinados por terem ganho a partida. Goncharenko deu um relato semelhante a um jornal ucraniano em 1996, dizendo que foi um jogo normal. Ele faleceu naquele ano.

Quando os antigos jogadores do Start receberam medalhas cerca de duas décadas após a partida, um deles, Mikhail Putisin, recusou a sua, dizendo mais tarde que ele não participaria de uma mentira, diz Kuzmin.

Bykova, a historiadora, disse que a evidência é que os alemães jogaram limpo e não machucaram o goleiro, pelo menos não propositalmente. Foram os ucranianos que se tornaram mais agressivos enquanto o jogo corria, ela disse. Ela também acredita que um relato mais honesto do jogo poderia ter se tornado mais poderoso do que o mito.

Hoje, o Start Stadium promove os jogos de verão para equipes amadoras e semiprofissionais, cujos jogadores nem sempre esperam até o apito final para fortalecer seu corpo com cerveja e cigarros. As crianças andam de bicicleta e patins em uma pista asfaltada em torno do campo bem aparado. E a estátua atrás das arquibancadas mal cuidadas perpetua a lenda do Jogo da Morte.

“Era propaganda,” disse Kuzmin, cuja história do futebol ucraniano, O que aconteceu e o que não aconteceu, foi publicada em 2010. “Os soviéticos poderiam mostrar que as pessoas poderiam morrer pelo bem da ideologia soviética. E as pessoas de Kiev gostavam da estória. É um bom conto de fadas. Mas todos devem saber a verdade.”

Para alguns, a verdade não é tudo.

No estádio do Dynamo em Kiev, há um monumento honrando os quatro jogadores do Start que morreram nas semanas e meses seguintes à partida de 1942. Os jogadores estão nus, segurando as mãos, fisicamente fortes. Viagens de turismo ao estádio e ao monumento não são incomodadas pelo debate. Ambos são celebrações, não investigações.

“Nenhum documento pode provar qualquer destas coisas,” disse Kirill Boyko, chefe do fã clube do Dynamo. “Somos patriotas pelo nosso país e time. Acreditamos na lenda.”


Nota:

* "The Man Who Shot Liberty Valance" (título original), 1962. Um senador que tornou-se famoso por matar um fora-da-lei conhecido retorna à cidade para o funeral de um velho amigo e conta a verdade sobre o que aconteceu.

Mais de um cérebro por trás de E = mc2

Spacedaily, 28/01/2013


Dois físicos americanos ressaltaram o papel desempenhado pelo físico austríaco Friedrich Hasenohrl em estabelecer a proporcionalidade entre energia (E) e a quantidade de matéria com sua massa (m) em um orifício cheio de radiação.

Em um artigo a ser publicado na EPJ H (European Physical Journal Historical Perspectives http://epjh.epj.org/), Stephen Boughn da Faculdade Haveford na Pensilvânia e Tony Rothman da Universidade Princeton em Nova Jersey argumentam como o trabalho de Hasenohrl, pelo qual ele agora recebe pouco crédito, pode ter contribuído para a famosa equação E = mc2

 Friedrich Hasenohrl

De acordo com o filósofo da ciência Thomas Kuhn, a natureza do progresso científico ocorre através de desvios de paradigma, que depende das circunstâncias culturais e históricas de grupos de cientistas. Contribuindo com esta idéia, os autores acreditam que a noção de que a massa e a energia deveriam estar relacionadas não se originou somente com Hasenohrl.

Nem ela surgiu repentinamente em 1905, quando Einstein publicou seu artigo, como a mitologia popular apresenta. Dada a falta de reconhecimento pela contribuição de Hasenohrl, os autores examinaram o trabalho original do físico austríaco sobre radiação do corpo negro em um orifício com paredes perfeitamente reflexivas.

Este estudo busca identificar a razão pela qual o físico austríaco chegou a uma relação energia/massa com o fator errado, precisamente a equação E = (3/8) mc2.

O erro de Hasenohrl, eles acreditam, foi em falhar em considerar a massa perdida pelo corpo negro enquanto emite a radiação.

Antes que Hasenohrl focasse na radiação de cavidade, outros físicos, incluindo o matemático francês Henri Poincare e o físico alemão Max Abraham mostraram a existência de uma massa inercial associada com energia eletromagnética.

Em 1905, Einstein deu a correta relação entre massa inercial e energia eletromagnética, E = mc2. Mesmo assim, não foi somente até 1911 que o físico alemão Max Von Laue generalizou-a para incluir todas as formas de energia.  


Biografia detalhada de Friedrich Hasenöhrl


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[SGM] Ativistas Ucranianos chamam a atenção para tragédia pouco conhecida

Radio Free Europe, 23/08/2013

Em 1941, à medida que as tropas alemãs atravessavam a Ucrânia da era soviética, a polícia secreta de Josef Stalin explodiu uma usina hidroelétrica na cidade meridional de Zaporizhzhya no sentido de deter o avanço nazista.

A explosão inundou as vilas ao longo das margens do Rio Dniper, matando milhares de civis.

Quando a Europa registra seu Dia da Lembrança pelas Vítimas do Stalinismo e Nazismo em 23 de agosto, um grupo de cidadãos de Zaporizhzhya está lutando pelo reconhecimento da tragédia pouco conhecida da guerra.

O dia, que também é conhecido como Dia da Banda Preta fora da Europa, coincide com o aniversário do Pacto Molotov-Ribbentrop de 1939 de não-agressão entre a Alemanha Nazista e a União Soviética.

A Ucrânia sofreu perdas pesadas durante a Segunda Guerra Mundial e sob o domínio de Stalin.

Os eventos de Zaporizhzhya aconteceram em agosto de 1941. Enquanto as tropas nazistas se aproximavam da cidade, Moscou enviou agentes do NKVD, o predecessor da KGB, para explodir a planta hidroelétrica DniproHES da cidade.

A equipe conduziu sua missão de maneira bem sucedida – que os historiadores afirmam ter sido ordenada pelo próprio Stalin – provocando um buraco na estrutura e temporariamente isolando parte da cidade dos invasores.

Mas a explosão também inundou vilas e assentamentos ao longo do Rio Dniper.

O grande vazamento matou milhares de civis inocentes, assim como soldados do Exército Vermelho que estavam atravessando o rio.


Já que nenhuma estatística de mortes foi liberada ma época, o número estimado de vítimas varia enormemente. A maioria dos historiadores estima entre 20.000 e 100.000, baseados no número de pessoas então vivendo nas áreas afetadas.
   
“As pessoas gritavam”

O sobrevivente Oleksiy Dotsenko diz que o Dniper tornou-se vermelho aquele dia.

Seu relato, registrado quatro anos atrás pelo canal de TV 1+1, é um dos últimos testemunhos remanescentes da tragédia.

“As pessoas gritavam por ajuda. O gado mugia, os porcos gritavam. As pessoas subiam nas árvores,” ele lembra.

Muitos cidadãos de Zaporizhzhya, contudo, não conhecem o desastre.

Historiadores locais e ativistas dos direitos civis acusam as autoridades municipais de perpetuar os esforços da era soviética de encobrir a verdade ao se recusar em homenagear as vítimas.

Funcionários reconhecem que civis inocentes morreram, mas defendem que a destruição da usina foi necessária para salvar vidas incontáveis.

“Não havia ninguém na época para defender Zaporizhzhya,” diz Oleksiy Baburin, chefe da sede local do Partido Comunista Ucraniano. “Tínhamos poucos soldados. Não havia quase tropas do NKVD ou regimentos militares que pudessem ter parado os alemães. Por isso é que explodir a DniproHES permitiu que a evacuação continuasse.”

Mas uma parte dos historiadores rejeita tais afirmações, insistindo que a operação foi porcamente conduzida e as tropas nazistas não tinham planos imediatos de tomar a cidade.

Nenhum reconhecimento oficial

O historiador Vladsyslav Moroko diz que os homens encarregados da missão, Boris Epov e Aleksandr Petrovsky, apressaram a explosão da usina por temer Stalin.

“Na realidade, Epov e seus subordinados estavam menos preocupados com a possível invasão alemã de Zaporizhzhya do que com o fato de que eles não pudessem ser capazes de conduzir as ordens de Stalin,” diz Moroko. “Eles temiam que DniproHES fosse capturada e que eles não seriam capazes de cumprir a ordem de Stalin.”

Um monumento próximo da hidroelétrica, que ainda existe, presta homenagem às tropas que defenderam a instalação durante a Segunda Guerra Mundial.

Um grupo de residentes locais este ano instalou uma cruz de madeira em Zaporizhzhya em 18 de agosto, o aniversário da tragédia de DniproHES.

Mas ainda não existe nenhum monumento oficial ou placa na cidade para homenagear suas vítimas.

Moroko e outros escreveram uma carta aberta exigindo às autoridades municipais para corrigir este erro. A carta ainda não foi respondida.

“Esta petição era pública. As organizações civis e cidadãos responderam a ela e expressaram seu apoio,” diz Moroko. “Mas o governo está agindo como se nada tivesse ocorrido.”


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