terça-feira, 28 de abril de 2015

[SGM] Os Desertores

Laura Collins

Dailymail, 11/06/2013


Nas semanas seguintes à libertação dos nazistas, Paris foi atingida por uma onda de crimes e violência que transformou a cidade na Nova York e a Chicago da época da Lei Seca. E a causa foi a mesma: gângsteres americanos.

Enquanto os Aliados lutavam contra as forças de Hitler na Europa, policiais lutavam contra os criminosos que ameaçavam aquela vitória. Homens que abandonaram o “bem maior” em troca do autointeresse, lucros do mercado negro e a luxúria dos cafés e bordéis de Paris: os desertores.

A existência de tais gangues é uma das muitas revelações em um novo livro constrangedor, “Os Desertores: Uma história secreta da Segunda Guerra Mundial”.

Altamente organizados, armados até os dentes e impiedosos, estes desertores usaram seus uniformes americanos como outra ferramenta de seu negócio junto com as vastas quantidades de armas roubadas, passaportes falsos e veículos roubados que eles tinham à sua disposição.

Entre junho de 1944 e abril de 1945, o Departamento de Investigação Criminal do Exército Americano (CBI) envolveu-se com 7.912 casos. Quarenta por cento envolviam apropriação indébita de material americano.

Maior ainda era a proporção de crimes de violência – estupros, assassinatos, homicídio involuntário e assalto que respondeu por 44% da força de trabalho. Os restantes 12% foram crimes tais como roubo, invasão doméstica e baderna.

Antigo correspondente-chefe da ABC News, o autor do livro, Charles Gass, havia se interessado pelo tema há muito tempo. Mas tudo começou somente quando ele teve a chance de se encontrar com Steve Weiss – combatente veterano condecorado da 36ª. Divisão de Infantaria e antigo desertor.

Glass estava dando uma entrevista para divulgar seu livro anterior, “Americanos em Paris: Vida e Morte sob a Ocupação Nazista” quando o americano começou a fazer perguntas. Ficou claro, Glass reconta, que o conhecimento do entrevistador da Resist~encia Francesa era mais profundo que o seu próprio.

Eles marcaram um café e Weiss perguntou a Glass no que ele estava trabalhando. Glass relembra: “Disse-lhe que era um livro sobre os desertores americanos e britânicos na Segunda Guerra Mundial e perguntei se ele sabia algo sobre isso. Ele respondeu: ‘Fui um desertor.’”

Este outrora garoto idealista do Brooklyn, que se alistou aos 17 anos, lutou na praia de Anzio e através da perigosa foresta das Ardennas, ele foi um dos poucos soldados regulares americanos a lutar com a Resistência em 1944. E ele desertou.

Sua história era, Glass percebeu, tanto secreta quanto emblemática de um grupo de homens, envoltos sob uma bandeira de vergonha que os classificava como covardes. Mesmo assim, a verdade era muito mais complexa.

Muitos tinham medo. Eles haviam atingido um ponto além do qual eles não poderiam voltar e decidiram pela desgraça ao invés do túmulo. Alguns relembraram acordar, como se estivessem em um sonho, para constatar que seus corpos os haviam deixados longe do campo de batalha.

Outros, como Weiss, lutaram até que sua fé em seus comandantes imediatos desapareceu. Foi uma forma de loucura ou uma lucidez repentina que os levou a desertar? Glass não afirma ser capaz de responder esta questão para a qual o próprio Weiss dedicou seus últimos anos sem nenhum sucesso.

Outros desertaram ainda para ganhar dinheiro, roubando e vendendo suprimentos militares que seus camaradas no front precisavam para sobreviver. Oportunistas e cafajestes, certamente, mas não covardes – a vida que escolheram era tão violenta e sanguinária quanto a da guerra.

50.000 soldados americanos e 100.000 britânicos desertaram durante a Segunda Guerra Mundial. Contudo, de acordo com Glass, o fato surpreendente não é que tantos homens tenham desertado, mas que tão poucos o tenham feito.

Somente um foi executado por isso, Eddie Slovik. Ele foi, até aquela época, por sua própria avaliação, o homem mais azarado vivo.

Ele nunca lutou uma batalha sequer. Ele jamais fugiu como a maioria dos desertores o fizeram. Ele simplesmente deixou claro que preferia a prisão ao campo de batalha.

Dos 49 americanos sentenciados à morte por deserção durante a Segunda Guerra Mundial, ele foi o único cujo apelo para comutação da pena foi rejeitado. Seu grande pecado, como nos conta Glass, foi o momento. Seu apelo foi feito em janeiro de 1945, justamente quando a contraofensiva alemã, a Batalha das Ardenas, estava no seu auge. As forças aliadas estavam quase em seu ponto de ruptura. Não era tempo, pensou o Comandante Supremo Aliado, general Dwight Eisenhower, para perdoar deserções.

Ele foi então enviado à remota vila francesa de Sainte-Marie-aux-Mines e a verdade foi escondida mesmo de sua esposa, Antoinette. Ela foi informada que seu marido tinha morrido no Teatro Europeu de Operações. Sua identidade foi finalmente revelada em 1954 e vinte anos depois Martin Sheen o interpretou no filme televisivo, “A Execução do Soldado Slovik”. Nele, Sheen recita as palavras que Slovik disse diante do pelotão de fuzilamento: “Eles não estão me fuzilando por ter desertado do Exército dos Estados Unidos. Eles apenas precisam de um exemplo para os outros e estou nessa porque sou um ex-preso. Costumava roubar quando era garoto, e este é o motivo pelo qual vão me fuzilar. Vão me fuzilar por causa do pão e da goma de mascar que roubei quando tinha 12 anos.”

O soldado Alfred T. Whitehead teve uma história diferente. Ele era um garoto do interior do Tennesse que se alistou para escapar de uma vida miserável e violência que sofria nas mãos de seu padrasto. Ele acabou como um gângster apavorando as ruas de Paris.

Whitehead lutou na Normandia e afirma ter enfrentado o inferno das praias nos desembarques do Dia-D. Ele considerava-se um soldado profissional “duro-na-queda” e o resto de sua piedade na infância evaporou no calor da batalha. Ele esteve em combate contínuo contra os alemães do Dia-D até 30 de dezembro de 1944. Ele foi condecorado com a Estrela de Prata, duas Estrelas de Bronze, a medalha do combate de infantaria e uma citação de distinção de sua unidade.

Quando ele foi considerado inválido para Paris por causa de uma apendicite, ele pensou que voltaria para sua unidade, a 2ª. Divisão, para se recuperar. Ao invés disso, foi enviado para o 94º. Batalhão de Reforço, um grupo de substituição em Fontainbleau. Quando um jovem oficial forneceu a Whitehead um fuzil da Primeira Guerra Mundial para montar guarda, ele disse ao oficial para pegar a “espingarda de chumbinho” e enfiá-la no rabo. Ele exigiu as armas com as quais estava acostumado – uma pistola .45, uma submetralhadora Thompson e uma faca de trincheira.

Sua deserção real foi medíocre. Whitehead procurava por uma bebida. O Clube de Serviço Americano recusou-lhe a entrada porque ele não tinha passe e, assim, ele vagou em busca de uma cama num bordel. Ele a encontrou. Pela manhã, ele foi declarado Ausente sem Licença Oficial (AWOL). No dia seguinte, uma garçonete de um café ficou com pena dele e acrescentou ovos fritos e batatas ao seu pedido de sopa e pão. Quando a Polícia Militar chegou e começou a fazer perguntas, ela deu a Whitehead a chave do seu quarto em um hotel barato e lhe disse para esperar por ela.

De soldado condecorado ele moveu-se sem problemas para uma vida de criminoso no submundo de Paris. Uma chance de encontro o levou para tomar seu lugar como membro de uma das muitas gangues de ex-soldados aterrorizando Paris.

Comandada por um ex-sargento paraquedista, os assaltos eram planejados como operações planejadas. O próprio Whitehead admitiu, “roubávamos caminhões, vendíamos o que eles carregavam, e usávamos os caminhões para roubar armazéns.” Eles usavam táticas de combate, roubando suprimentos que eram destinados às tropas da linha de frente. Seus crimes se espalharam, inclusive, na Bélgica. Eles atacavam civis e alvos militares indiscriminadamente. Suas atividades criminais deram a Whitehead “uma excitação maior que a guerra.” Citando a memória do ex-soldado, Glass reconta suas vanglórias: “Roubamos cada café de Paris, em todos os setores, exceto o nosso, enquanto os policiais ficavam loucos.”

Eles roubavam caixas de conhaque e champagne, jipes e invadiam casas cujos lençóis e rádios eram “fáceis de passar adiante”. Eles roubavam gasolina, cigarros, licor e armas. Em seis meses, Whitehead conseguiu acumular U$ 100 mil com a pilhagem.

Não é de estranhar que quando a vitória na Europa foi anunciada em 7 de maio de 1945, Whitehead admitiu que “aquele dia, todos em Paris e no resto da Europa estavam celebrando, mas eu apenas fiquei em meu apartamento pensando sobre tudo.” Isto porque a deserção do soldado Whitehead não encerrou sua guerra – era uma parte dela. Assim como era parte das muitas guerras dos soldados que há muito tempo não foram registradas.

No final, Whitehead foi capturado e julgado. Ele foi dispensado desonradamente e passou um tempo no Campo de Treinamento Disciplinar Delta no sul da França e em penitenciárias federais em Nova Jersey.

Muitos anos depois, ele teve a “dispensa desonrosa” convertida em uma geral ao invés de ser processado por falsidade ideológica.

Em tempos de paz, as aparências importavam mais a Whitehead do que a presença deles na guerra. Desde então, ele admitiu: “Jamais soube o que o future me reservava, logo tinha todo dia como se fosse o último. A guerra faz coisas estranhas às pessoas, especialmente em relação à sua moral.”

Aquelas “coisas estranhas” mais do que os extremos falsos de coragem e covardia são as verdades revelados neste relato da guerra e de seus desertores.            



sábado, 25 de abril de 2015

[SGM] Os Americanos foram tão maus quanto os Soviéticos?

Klaus Wiegrefe

Der Spiegel, 02/03/2015


Os soldados chegaram no crepúsculo. Eles forçaram a entrada na casa e tentaram arrastar as duas mulheres para cima. Mas Katherine W. e sua filha de 18 anos Charlotte conseguiram escapar.

Contudo, os soldados não desistiram da ideia tão facilmente. Eles começaram a procurar em todas as casas da área e finalmente encontraram as duas mulheres no banheiro do vizinho logo antes da meia-noite. Os homens as tiraram para fora e as jogaram em duas camas. O crime que os seis soldados cometeram aconteceu em março de 1945, logo antes do final da Segunda Guerra. A garota clamou por ajuda: “Mama. Mama.” Mas nenhuma chegou.

Centenas de milhares, talvez milhões, de mulheres alemãs experimentaram destino semelhante na época. Frequentemente, tais gangues estupradoras eram acusadas de serem soviéticas no leste da Alemanha. Mas este caso era diferente. Os estupradores eram soldados dos Estados Unidos da América e o crime aconteceu em Sprendlingen, uma vila próxima do Rio Reno no Ocidente.

No final da guerra, cerca de 1,6 milhões de soldados americanos tinham avançado em território alemão, finalmente encontrando os soviéticos no Rio Elba. Nos EUA, aqueles que libertaram a Europa da praga dos nazistas vieram a ser conhecidos como “A Grande Geração”. E os alemães também desenvolveram uma imagem positiva de seus invasores: soldados legais que ofereciam doces para as crianças e flertavam com as fräuleins alemãs com jazz e nylons.

Mas esta imagem é consistente com a realidade? A historiadora alemã Miriam Gebhardt, bem conhecida na Alemanha por seu livro sobre a líder feminista Alice Schwarzer e o movimento feminista, publicou agora um novo livro revendo a versão oficial do papel da América na história do pós-guerra alemão.

Relatórios do Arquivo Católico

O trabalho, que foi publicado em alemão na segunda-feira, toma um olhar próximo na questão do estupro de mulheres alemãs pelas quatro potências vitoriosas no final da Segunda Guerra Mundial. Em particular, contudo, suas visões sobre o comportamento dos GIs americanos possivelmente deixarão todos de queixo caído. Gebhardt acredita que os membros do corpo militar dos EUA estupraram cerca de 190.000 mulheres na antiga Alemanha Ocidental, que ganhou a soberania em 1955, com a maior parte dos assaltos acontecendo nos meses imediatamente seguintes à invasão americana da Alemanha Nazista.

A autora baseia suas afirmações em grande parte em relatórios de padres bávaros no verão de 1945. O Arcebispo de Munique solicitou ao clérigo católico que mantivesse registros sobre o avanço aliado e a Arquidiocese publicou excertos de seus arquivos há alguns anos atrás.

Michael Merxmüller, um padre na vila de Ramsau próximo a Berchtesgaden, escreveu em 20 de julho de 1945, por exemplo: “Oito garotas e mulheres estupradas, algumas delas na frente de seus pais.”

O padre Andreas Weingand, de Haag na der Amper, uma pequena vila localizada ao norte de onde o aeroporto de Munique é hoje, escreveu em 25 de julho de 1945: “O evento mais triste durante o avanço foram três estupros, um de uma mulher casada, um de uma mulher solteira e um de uma adolescente de 16 anos. Eles foram cometidos por soldados americanos altamente bêbados.”

O padre Alois Sciml, de Moosburg, escreveu em 1º. de agosto de 1945: “Por ordem do governo militar, uma lista de todos os residentes e suas idades devem ser colocadas na parta de cada casa. Os resultados desse decreto não são difíceis de imaginar... Dezessete garotas ou mulheres... foram trazidas para o hospital, tendo sido abusadas sexualmente uma ou várias vezes.”

A vítima mais nova mencionada nos relatórios foi uma menina de oito anos. A mulher mais velha, tinha 69 anos.

Fantasias Machistas

Os relatórios levaram a autora do livro Gebhardt a comparar o comportamento do exército americano com os excessos violentos perpetrados pelo Exército Vermelho na metade leste do país, onde brutalidade, estupros em massa e incidentes de pilhagem dominaram a percepção do público da ocupação soviética. Gebhardt, contudo, diz que os estupros cometidos na Bavária Superior mostram que as coisas não foram muito diferentes no oeste e sul da Alemanha.

A historiadora também acredita que motivos similares estavam em curso. Assim como suas contrapartes russas, os soldados americanos, ela acredita, estavam horrorizados pelos crimes cometidos pelos alemães, amargurados por seus esforços inúteis e mortais para defender o país até o final, e furiosos em relação ao relativamente alto grau de prosperidade do país. Além disso, propaganda na época conduzia à ideia de que as mulheres alemãs eram atraídas pelos soldados americanos, alimentando ainda mais as fantasias machistas.

As ideias de Gebhardt estão firmemente enraizadas no atual pensamento acadêmico. Na onda do escândalo da tortura em Abu Ghraib e outros crimes de guerra cometidos pelos soldados americanos no Iraque e Afeganistão, muitos historiadores estão tendo um olhar mais crítico no comportamento dos militares americanos durante os dias precedendo e seguindo o fim da Segunda Guerra Mundial na Alemanha. Estudos nos anos recentes tem lançado luz em incidentes envolvendo os GIs roubando igrejas, assassinando civis italianos, matando prisioneiros de guerra alemães e estuprando mulheres, mesmo quando eles avançavam através da França.

Apesar de tais descobertas, os americanos ainda são considerados relativamente disciplinados em comparação com o Exército Vermelho e o exército francês – sabedoria convencional que Gebhardt está esperando desafiar. Mesmo assim, todos os relatórios compilados pela Igreja Católica na Bavária somente englobam umas poucas centenas de casos. Além disso, os clérigos frequentemente elogiavam o comportamento “extremamente correto e respeitável” das tropas americanas. Seus relatórios parecem mostrar que os abusos sexuais feitos por americanos eram mais exceção do que regra.

Como, então, a historiadora chegou ao número chocante de 190.000 estupros?

Evidência suficiente?

O total não é o resultado de uma pesquisa profunda nos arquivos em todo o país. Ao invés disso, é uma extrapolação. Gebhardt faz o pressuposto de que 5% das “crianças da guerra” nascidas de mulheres não-casadas na Alemanha Ocidental e Berlim Ocidental por meados dos anos 1950 foram produtos de estupros. Isto soma um total de 1.900 crianças de pais americanos. Gebhardt pressupõe, além disso, que na media, houve 100 incidentes de estupro para cada nascimento. O resultado que ela chega com isso é assim de 190.000 vítimas.

Tal número, porém, parece ser dificilmente plausível. Fosse o número assim tão grande, é quase certo que teria havido mais relatórios sobre estupros nos arquivos de hospitais ou autoridades de saúde, ou que haveria mais relatos de testemunhas oculares. Gebhardt é incapaz de apresentar tal evidência em quantidade suficiente.

Uma outra estimativa, do professor de criminologia americano Robert Lilly, que examinou casos de estupro investigados por tribunais militares americanos, chegou a um número de 11.000 assaltos sexuais sérios cometidos em novembro de 1945 – um número nojento por si só.

Mas Gebhardt está certamente certa em um ponto: por muito tempo, a pesquisa histórica foi dominada pelo pensamento de que estupros cometidos por infantes americanos eram improváveis, pois mulheres alemãs estavam ansiosas para cair na cama com eles.

Como, entretanto, alguém pode interpretar uma reclamação feita por uma gerente de hotel em Munique em 31 de maio de 1945? Ela relata que soldados americanos tinham alugado uns poucos quartos e que quatro mulheres estavam “correndo de um lado para outro completamente nuas” e foram “trocadas muitas vezes.” Aquilo foi realmente voluntário?

Mesmo que não seja provável que os americanos tenham cometido 190.000 crimes sexuais, permanece verdadeiro que as vítimas de estupro do pós-guerra – que foi sem dúvidas um fenômeno comum no final da Segunda Guerra  Mundial, não há “nenhuma cultura da memória, nenhum reconhecimento público, muito menos um pedido de desculpas” dos perpetradores, Gebhardt nota. E hoje, 70 anos após o final da guerra, infelizmente parece que a situação não vai mudar.     



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quinta-feira, 23 de abril de 2015

Kazária: o império judeu esquecido

Nicolas Soteri

History Today, Vol. 45, Nº 4, Abril 1995


Com o esfacelamento da União Soviética e os problemas existentes nos Bálcãs está havendo muito interesse renovado na história antiga da Europa Oriental. Os problemas alimentaram as tendências nacionalistas na região e há muita conversa sobre uma divisão Ortodoxa-Católica (leste-oeste) e islâmica, que possui uma história bem documentada e que os historiadores estão revisitando. Muita atenção tem sido colocada na diferença e intolerância religiosa como a fonte do problema. Mas tal explicação é o motivo principal do problema ou é a religião apenas uma pequena parte de conflitos maiores e mais complicados? Se a religião tem um papel, quão importante ele é? São as tendências nacionalistas largamente moldadas por considerações de religião? Qual parte tem a questão racial? Os conceitos de raça são influenciados pelos conceitos de nacionalismo ou vice-versa? E quanto as ideias religiosas influenciam aquelas relacionadas à raça? O quanto a religião e a raça são indicadores claros de etnicidade? De fato, o que é “raça”? Estas questões têm intrigado a humanidade desde tempos imemoriais e tentativas de respondê-las nunca foram satisfatoriamente realizadas, mas frequentemente levaram a incompreensão. A natureza sodômica das ideias sobre nacionalismo parecem não ter fim. Não é preciso dizer que as religiões do Islã e a Cristandade Ortodoxa e Católica exerceram uma grande influência na história e formação da Europa Oriental.

Mesmo assim, uma época muito interessante da Europa Oriental tem sido subestimada, senão totalmente esquecida, pela maioria dos historiadores que é de importância para outra grande religião na área – o judaísmo. Kazária, ou a menção aos kázaros, é praticamente desconhecida para muitos. Entretanto, historiadores e medievalistas em particular devem estar cientes da existência importante deste reino poderoso que teve papel crucial na contenção do avanço árabe na Europa, assim como Charles Martel o fez em Tours por volta da mesma época (isto é, o oitavo século). Entretanto, este reino kázaro não era nem cristão nem muçulmano no auge de seu poder, mas judaico, o que torna seu estudo mais interessante, desde que coloca uma presença militar judaica poderosa entre as potências políticas do período em questão.

Eruditos nos últimos 100 a 150 anos mais ou menos têm tratado Bizâncio (berço da cristandade no leste) como uma força geradora, poderosa e criativa e uma superpotência dos seus dias, ao invés dos restos degenerados de um império romano no leste como Edward Gibbon uma vez o descreveu. As relações entre Bizâncio e o império árabe (a outra superpotência da época) e suas influências têm sido lembradas como importantes para o estudo de qualquer aspecto da história medieval. Contudo, entre estas duas superpotências existia uma terceira, senão uma superpotência pelo menos uma potência importante, estratégica, militar e economicamente – Kazária. Este reino teve considerável oscilação entre o início do sétimo e oitavo séculos, estendendo seu poder de sua terra natal no norte do Cáucaso até a Europa Oriental e além. Foi somente em 1016, quando uma aliança russo-bizantina foi lançada contra os kázaros, que o império kázaro sofreu perda irremediável e seu declínio foi selado. A maioria de nossa evid~encia da história dos kázaros vem de fontes literárias. Informação nos sítios arqueológicos é escassa, já que toda ela estava na antiga União Soviética e não são muito acessíveis; os sítios de sepultamento real não existem já que, como nossas fontes nos dizem, estes foram instalados sob córregos.    

Tanto Bizâncio quanto o império árabe viam os kázaros como um elemento fundamental no jogo da diplomacia e um fator importante em qualquer consideração de balanço de poder. Bizâncio tinha Kazária como tão importante quanto qualquer outro reino ocidental, como pode ser visto na obra De Cerimoniis, do imperador bizantino Constantino, uma tratado escrito como protocolo de estado no século X, onde cartas de correspondência para o governante (Khagan) dos kázaros recebiam um selo de ouro valendo três solidi (moeda local), enquanto que aquelas endereçadas ao Papa em Roma, ou “Imperador do Ocidente”, recebiam um selo valendo apenas dois solidi. A importância dada ao poder dos kázaros pode também ser vista na prática adotada pelo rei persa de ter três tronos de ouro permanentemente colocados no palácio real, além do seu, representando as grandes potências da época: uma para o khagan kázaro, uma para o imperador bizantino e uma para o imperador da China. Como aliados dos bizantinos, os kázaros não somente interromperam o avanço árabe na Europa (a partir do século VII) mas também ajudaram na queda do império persa ao fornecer 40.000 soldados para o imperador bizantino, Heraclius, sob a liderança de Ziebel em 627.

Contudo, quem eram esses kázaros e de onde eles vieram? Como eles chegaram a construir um poderoso império ao norte dos grandes estados civilizados da época na Europa e Oriente Médio – principalmente Bizâncio, Pérsia e mais tarde império árabe? Como eles resistiram a estes estados avançados culturalmente que buscavam influência na área estrategicamente crucial que os kázaros controlavam? Que os kázaros resistiram culturalmente, na tentativa de não permitir que qualquer uma dessas potências estrangeiras ganhassem influência em seu território, é amplamente ilustrada pela decisão da família real, em algum momento do oitavo século sob o reinado de Bulan ou Obadiah, em dar o passo incomum na conversão para o judaísmo. Deste modo, nem Bizâncio cristão ou o novo império muçulmano ao sul poderiam ganhar poder indiretamente por meio de chantagem religiosa e outros meios. Ao adotar o judaísmo, o governante kázaro engenhosamente mostrou uma impressão neutra àquelas potências envolvidas disputas cristãs-muçulmanas (e cristãs-cristãs). Assim, Kazária não somente resistiu à influência religiosa, e à influência política que a acompanhava, das potências cristã e muçulmana mas também conseguiu de algum modo desviar suas percepções de hostilidade que teriam surgido caso os kázaros tivessem se convertido a qualquer uma destas religiões.

Expansão do Império Kázaro - de 650 até o século X

A história da conversão kázara, apesar de ser altamente ficcional, contém ideias reveladoras da política imperial da época e como considerações religiosas tiveram uma parte importante. De acordo com a história do khagan, ao ouvir os vários argumentos colocados pelos missionários cristãos, muçulmanos e judaicos, perguntou a cada um deles quais outras duas religiões seriam mais aceitáveis que sua próprias. Já que o representante judeu respondeu que não haveria consequências desde que tanto o representante cristão quanto o muçulmano (temendo um ao outro) responderam que depois de sua própria fé a fé judaica seria a mais aceitável – as consequências de uma conversão kázara tanto para o cristianismo quanto para o islamismo poderia ter sido desastrosa para a parte vencida. Como ficou claro, os kázaros optaram por um caminho que atraía menos hostilidade, menos obrigação e menos influência cultural de qualquer uma das potências existentes.

Quanto à origem do reino kázaro, ela pode ser traçada de volta ao império turco ocidental – uma confederação de tribos turcas, das quais os kázaros eram apenas uma, abrangendo do Mar Negro até o Turquestão em meados dos séculos VI e VII. Em algum momento do século VII, este império começou a se dissolver e os kázaros mais tarde emergiram como dominadores na área norte do Cáucaso. Mais tarde expandindo seus domínios, até o décimo século, eles controlaram um império que abrangia das planícies da Hungria até o Mar Aral e as montanhas Urais, os kázaros controlaram toda a rota de comércio passando pelo sudeste da Europa em direção dos impérios bizantino e árabe e os numerosos povos que viviam nessa vasta área. Assim, Kazária não era apenas estrategicamente importante e uma força militar a ser respeitada, mas controlava uma importante rota comercial. Sua capital, Itil, era o cruzamento das rotas do leste-oeste assim como das do norte-sul, e os kázaros obtinham um grande lucro da taxa de impostos que passavam por seu território, não somente em direção das grandes civilizações do Islã e Bizâncio, mas também dos reinos europeus ocidentais, Europa setentrional e dos povos turcos a leste de seus domínios. Quanto aos produtos produzidos dentro do próprio reino kázaro, eles eram basicamente agrícolas – arroz, painço, mel, vinho, ovelhas e pescaria do Mar Kázaro (“Cáspio”). Entretanto, os kázaros possuíam poucos recursos naturais e nunca desenvolveram sua economia pelo comércio a qualquer nível de sofisticação. Muito da renda do Estado vinha de impostos cobrados de comerciantes que atravessavam o território imperial, e dos impostos cobrados dos povos que viviam dentro do território. Foi principalmente o poderio militar que manteve o império kázaro intacto. Uma vez este enfraquecido, através de ataques russos contínuos no final do século X e início do século XI, não havia como manter o império unido. Na época da invasão mongol de Gengis Khan, no início do século XIII, o império kázaro encolheu tanto em tamanho quanto importância para uma pequena área entre as montanhas do Cáucaso e os rios Don e Volga.

Não obstante, Kazária provou ser uma força extremamente poderosa entre os séculos VII e X. Durante este período, ela interrompeu o avanço do império árabe em sua fase mais dinâmica (de conquista) e conseguiu manter o status quo por séculos; ela se interessou nos assuntos da política bizantina, algumas vezes granjeando considerável influência; ela também conteve as persistentes migrações tribais de povos das estepes da Ásia Central e Rússia, que estavam ameaçando a Europa por séculos; e ela manteve poder considerável e influência sobre os Eslavos e outros povos emergentes da Europa Oriental. Por que, então, não há substancial quantidade de literatura em língua inglesa desse aparentemente império obscuro (como resultado) e das pessoas que tiveram tal papel importante na história inicial da Europa e especialmente do sudeste e Europa Oriental? Na época do declínio do império kázaro, que aconteceu entre os séculos X e XI em diante, parece seguir um período de formações rudimentares de Estados na Europa Oriental. Entretanto, estes reinos que mais tarde viriam a desenvolver os estados modernos da Rússia, Ucrânia, Polônia, Hungria, Romênia, as repúblicas tcheca e eslovaca, Áustria e Alemanha, até o nosso século foram lares de substanciais comunidades de povos que abraçaram a fé judaica. Que estas comunidades judaicas poderiam bem ser os descendentes dos kázaros e dos povos submetidos ao seu império levanta a questão de todos os movimentos antissemitas existentes na Europa Central e Oriental serem desprovidos de qualquer sentido (já que estas comunidades teriam ancestralidade nativa na região, assim como os povos nos quais elas se encontram inseridas, inclusive podendo ter uma presença mais antiga).

É uma crença profundamente difundida entre os historiadores que as comunidades judaicas da Europa são descendentes da diáspora da época romana e das subsequentes diásporas da Europa Ocidental. Afora o ponto que muitos não conhecem a existência importante deste reino judeu medieval, e não podem, portanto, considerar seu impacto na história subsequente, parece haver uma falácia aqui. Porque a diáspora da época romana levou a um êxodo dos judeus da Palestina para outras partes do Império Romano, o qual nunca incorporou a maioria das terras da Europa Oriental, assim estes emigrantes judeus se assentaram principalmente no oeste da Europa. As diásporas posteriores da Europa Ocidental em direção do leste não explicam o substancial número de comunidades judaicas existentes na Europa Oriental desde uma data remota, isto é, antes do século X. Acrescentando a isto, a principal língua dos judeus europeus do Centro e Leste antes deste século era o Ídiche, que é uma mistura dos dialetos hebraico, eslavo e alemão oriental. Estes judeus que migraram da Europa Ocidental não teriam incorporado um grande número de elementos das línguas ocidentais? De qualquer forma, não existem registros de um grande êxodo de povos judeus da Europa Ocidental para a Oriental. Porém, grandes movimentos populacionais ocorreram do leste para o oeste ocorreram na época das invasões mongóis e nenhum historiador o negará. Que os kázaros e seus descendentes teriam feito parte desse movimento geral é uma consequ~encia lógica.

Se este é o caso, há uma lição a ser aprendida de tal correção irônica da história. Enquanto alguém se considera russo, bósnio, sérvio, albanês, croata ou macedônio, não existe nenhum critério válido para estabelecer tais nacionalidades. Assim como os judeus da Europa central e Oriental (usando o exemplo kázaro) são mais ou menos do mesmo “estoque racial” que os povos nos quais eles se encontram inseridos, assim como são os muçulmanos dos Bálcãs, croatas, bósnios e sérvios. Quando alguém fala de bósnios croatas e sérvios, isto se torna uma contradição em termos (exemplificando a futilidade da categorização racial). Ambos são bósnios, ainda que sua religião seja diferente, isto é, Cristianismo Ortodoxo e Católico, ou sejam identificados com os nacionalismos sérvio ou croata. Para acrescentar combustível ao fogo, por que nós do ocidente nos referimos a bósnios muçulmanos? Usar religião como uma indicação de etnicidade para o último grupo, mas não para sua contraparte cristã.

Os problemas do nacionalismo na Europa Oriental são muito mais complexos do que uma simples explicação da diferença religiosa. Contudo, usando o exemplo dos kázaros e de seus descendentes, pode ser exemplificado que os movimentos nacionalistas, com suas convicções a respeito de raça, podem afetar as percepções do agressor e da vítima que, quando investigamos fundo nas ideologias defendidas, parecem ser baseadas em falsas premissas e, definitivamente, em teorias contraditórias.


sábado, 11 de abril de 2015

Feridas abertas da Guerra do Paraguai

Diego Antonelli


Cento e cinquenta anos depois, a Guerra do Paraguai ainda é uma ferida aberta de cicatrização lenta. Os rancores da batalha mais sangrenta da América do Sul, que matou cerca de 270 mil paraguaios e 100 mil aliados, persistem até hoje. Um dos conflitos não resolvidos está ligado às divergentes versões de paraguaios e brasileiros para explicar as causas do confronto. Do outro lado da trincheira, estão os embates diplomáticos sobre a não devolução dos troféus de uma guerra iniciada em 1864 e que se estendeu até 1870.

O exemplo mais simbólico dessa história é o canhão “El Cristiano” (O Cristão), que está no Museu Histórico Nacional no Rio de Janeiro. Na década de 1980, o Brasil chegou a devolver alguns objetos da guerra, como uma espada usada pelo então presidente paraguaio Solano López e documentos confiscados durante o conflito. Mas não o canhão de 12 toneladas. E isso ainda incomoda.

Como faz parte do patrimônio histórico brasileiro, o canhão teria de passar por um processo de “destombamento”. Retirado da Fortaleza de Humaitá, o armamento ganhou esse nome por ter sido construído a partir de metal fundido de sinos de igrejas de Assunção. Em contrapartida, o país vizinho ainda tem o navio brasileiro Anhabahy exposto como troféu na cidade de Vapor Cué.

“Como um pedaço de ferro pode ser maior que as relações diplomáticas entre os dois países? Uma troca fortaleceria o Mercosul. Como confiar na base da desconfiança?”, indaga o pesquisador Eduardo Nakayama, membro da Academia Paraguaia de História. O historiador Ricardo Salles, por sua vez, afirma que poucos países devolvem troféus de guerra. “Mas acho que isso deveria ser feito. É uma reivindicação justa”, afirma.

Para Nakayama, o gesto simbólico de devolver o canhão poderia intensificar as negociações políticas e econômicas entre Brasil e Paraguai, selando uma cooperação mais confiável em todo o Mercosul. Além disso, o professor da Universidad Nacional de Asunción Herib Caballero acredita que o gesto de devolver o canhão ajudaria a encerrar definitivamente o conflito, “cuja recordação é sinônimo de dor e desesperança na memória coletiva dos paraguaios”. Ainda não há uma definição se algum dos governos irá ceder a essa batalha que já avançou para o século 21. O Itamaraty afirma que não há negociação em curso sobre o assunto.

Visões


Outro “conflito” está arraigado nos livros de História. Versões antagônicas para explicar os motivos da guerra foram disseminadas ao longo de um século e meio. Basicamente, há quem acredite que tudo começou devido ao imperialismo da Inglaterra, que queria impedir que um Paraguai autossuficiente prosperasse no Cone Sul sem os produtos industrializados ingleses. Do outro, os que apontam que os atritos começaram por causa da consolidação das fronteiras nacionais e, principalmente, pela hegemonia no Rio da Prata.

Quem defende a primeira versão afirma que o Paraguai era um país em avanço econômico que colocaria em perigo as relações inglesas com os demais países da América do Sul. O historiador do Museu Militar de Assunção, Stanislau Diego Esquivel, diz que o país já tinha fundições de ferro e ferrovias. “O governo britânico queria destruir e desmantelar o Paraguai antes que virasse uma potência. Por isso financiaram os aliados. Era um interesse econômico.”

Porém, essa versão foi revisada inclusive por historiadores paraguaios contemporâneos. Para Caballero, o conflito teve muitas causas. “Havia problemas de limites e as disputas políticas internas do Uruguai. A Inglaterra não participou como Estado. O que havia eram bancos que emprestaram dinheiro ao Brasil.” Ele acrescenta que não é possível cravar que o Paraguai era uma potência regional.

O historiador Francisco Doratioto, da Universidade de Brasília, e autor de Maldita Guerra, ressalta que as razões do conflito foram distorcidas durante anos. “O Paraguai não era uma potência econômica como se propagou. Havia ferrovia, telégrafo e fundição de ferro, que no Brasil já tinha desde o século 18. A guerra está inserida em um contexto histórico regional.”

Brasil e Argentina


O Brasil estava interessado na abertura do Rio Paraguai à livre navegação e preocupado com os limites fronteiriços com a província do Mato Grosso. Havia uma disputa territorial entre o Império Brasileiro e o Paraguai nessa região, que remonta a 1856, quando fora firmado um tratado entre os dois governos estabelecendo um prazo de seis anos para se definir o limite entre os países. Passou o prazo e nada foi feito. Também havia um problema de fronteira entre o Paraguai e a Argentina, na região de Misiones e no Chaco.

Nova política


Ao assumir o poder em 1862, Solano López queria que seu país fosse protagonista na América do Sul. Para isso, ele costurou alianças com o general Urquiza, opositor do governo de Bartolomeu Mitre em Buenos Aires, e com o governo blanco do Uruguai. Segundo o historiador Francisco Doratioto, o Paraguai também buscava acesso ao mercado internacional através do Porto de Montevidéu.

Vizinhos unidos


Argentina e Brasil estavam juntos apoiando os colorados uruguaios. O presidente argentino tomou essa decisão porque os blancos simbolizavam o risco de uma oposição federalista em uma República Argentina recém-unificada.


Pretexto fraco

Doratioto conta que cerca de 40 mil brasileiros moravam no Uruguai, onde transportavam gado com o uso de escravos para o lado brasileiro. Nessa época, os uruguaios já não conviviam com a escravidão. “Antes, esses brasileiros tinham apoio dos colorados e usavam a região como se fosse extensão do Brasil. Os blancos tentaram pôr um fim a isso.” Esses estancieiros rio-grandenses foram até o Império alegar que cabeças de gado eram roubadas e brasileiros eram assassinados no Uruguai. “Mas é um pretexto que não se sustenta”, observa Doratioto. O governo imperial apoiava esses interesses privados, pois a região era estratégica para manter sua preeminência política.

Invasão


Os blancos uruguaios, apoiados pelo Paraguai, resistiram às pressões do Brasil para indenizar as supostas perdas dos brasileiros. Apoiando os colorados, as tropas imperiais invadiram o Uruguai em outubro de 1864. No dia 12 de novembro, Solano López, que já havia advertido o Brasil de que qualquer invasão ao Uruguai significaria guerra, ordenou capturar um navio brasileiro que saía de Assunção para Corumbá, levando o presidente de Mato Grosso a bordo. No dia 13 de dezembro, López declarou guerra ao Brasil e invadiu a província do Mato Grosso.

“Voluntários” de uma pátria despreparada

Ao invadir o Mato Grosso em dezembro de 1864, Solano López estava convicto de sua atitude. Bastava olhar para o exército paraguaio, com cerca de 70 mil homens prontos para a batalha. No Brasil, as tropas não chegavam à metade do contingente do adversário: 18 mil membros. A Argentina, por sua vez, tinha seis mil soldados, segundo o historiador Francisco Doratioto.

Se o império brasileiro não quisesse sair derrotado, era preciso reverter o quadro. Nessa época, não havia obrigatoriedade do serviço militar. O alistamento só passou a ser obrigatório por lei em 1908. A “solução” foi baixar o decreto 3.371 de 7 de janeiro de 1865, determinando a formação dos Voluntários da Pátria. Ou seja, civis que não tinham recebido qualquer treinamento militar durante a vida foram recrutados para uma sangrenta batalha. Era permitida a participação de todos os cidadãos maiores de 18 anos e com menos de 50.

“Os Voluntários da Pátria foram uma resposta natural buscando mobilizar a população. No começo teve uma resposta espontânea da população, mas depois muitos foram forçados a ir para a batalha”, afirma Doratioto. Todos que se apresentassem ganhariam 300 réis diários depois da guerra e mais 2,5 alqueires de terra. Eles teriam baixa depois de terminada a guerra – se assim fosse de sua vontade. As famílias dos voluntários que morressem no campo de batalha, ou em consequência de ferimentos, teriam direito a uma pensão vitalícia. Os que ficassem inutilizados por ferimentos receberiam soldo dobrado.

Além de se valer dos “voluntários”, o Brasil conseguiu aumentar para 60 mil a 70 mil homens no primeiro ano das hostilidades com o uso do efetivo da Guarda Nacional. No país, calcula-se que entre 120 mil a 150 mil homens foram mobilizados para a guerra. Alguns pesquisadores chegam a estimar que 200 mil brasileiros foram para a batalha.

O historiador Ricardo Salles, autor de Guerra do Paraguai – Escravidão e Cidadania na Formação do Exército, ressalta que as tropas dos voluntários eram pouco preparadas antes de ir para os campos de batalha. “O corpo dos voluntários foi engrossado pelo da polícia e o recrutamento de civis.”

Insuficiente


Porém, o efetivo mostrou-se insuficiente. Uma das respostas encontrada pelas forças imperiais foi arregimentar escravos de propriedade do Estado e alguns de propriedade particular (libertados em troca dos serviços na guerra). “Escravos também se apresentaram ou foram recrutados. Muitos fugiam e se alistavam como homens livres, outros eram libertados para a guerra por seus senhores, como substitutos, isto é, no lugar de outra pessoa; em troca de indenização pelo governo”, explica Salles.

Segundo ele, entre 7% e 10% dos combatentes eram formados por pessoas libertas. Salles salienta ainda que um número elevado de soldados, não menos que 50 mil (alguns estimam em até 100 mil) não voltaram. Muitos morreram em consequência de doenças, fome, variações climáticas e exaustão física.

“Desajustados” encorparam as tropas do Império


O recrutamento para encorpar as tropas de voluntários recaía, geralmente, sobre a população mais humilde. “Pobres, vadios, mendigos, ciganos, enfim, os que não estavam ajustados às normas da sociedade imperial eram os que mais sofriam”, diz o historiador Edilson Brito.

A partir de julho de 1865, o processo se intensificou de tal modo que qualquer indivíduo passou a ser passível de recrutamento. “Para o governo, o recrutamento deixou de ser uma profilaxia social usada para restringir a mobilidade dos pobres livres, ou uma forma de punição aos ‘indesejáveis’ da sociedade. Em relação à população, deixou de ser uma eventualidade para tornar-se um medo constante.”

Segundo Paulo Queiroz Duarte, o primeiro batalhão de voluntários (743 homens oriundos do Rio de Janeiro), embarcou para o Rio Grande do Sul em 5 de março de 1865, dois meses após o decreto. O Ministério da Guerra alistou 10 mil voluntários no primeiro ano.

Militares Brasileiros


Em fevereiro de 1865, os colorados conseguiram derrubar os blancos do governo uruguaio e mantiveram a aliança com Argentina e Brasil na ofensiva contra o Paraguai, formando a Tríplice Aliança. Os objetivos dessa união, assinada em 1º de maio de 1865, eram: derrubar a ditadura de López; ter livre navegação nos rios Paraguai e Paraná; anexar o território reivindicado pelo Brasil no nordeste do Paraguai e pela Argentina no leste e no oeste paraguaio.

O mito Solano López

Na visão histórica nacionalista difundida por anos pelo governo paraguaio, Solano López, morto em 1º de março de 1870, é visto como um mártir, que tentou desenvolver o Paraguai de forma autônoma. “Nessa perspectiva, ele é o que os paraguaios queriam que tivesse sido. É um herói inventado”, diz o historiador Francisco Doratioto. Segundo o também historiador Herib Caballero, da Universidad de Asunción, López divide opiniões até hoje. “Para alguns foi um tirano que foi culpado pela guerra. Para outros é o máximo de nacionalidade.” Para o especialista, é preciso interpretar López em seu tempo como um homem imbuído de ideais românticos, convencido que tem de sacrificar sua vida pela pátria. “A visão clássica é de que sua entidade é um herói. Dentro da visão antilopista, se quis culpar ele pela guerra durante muito tempo. É impossível que uma só pessoa seja responsável por uma guerra que reuniu tantos países.”

O Paraná vai à luta no maior conflito da América do Sul

As ruas de Curitiba estavam tomadas. Os moradores em estado de êxtase. Os primeiros sobreviventes paranaenses da mais terrível guerra que a América do Sul presenciou retornavam para suas casas. No dia 27 de abril de 1870 regressaram 51 Voluntários da Pátria que enfrentaram os horrores do campo de batalha da Guerra do Paraguai – chamada nos países de língua espanhola de “Guerra da Tríplice Aliança”.

Recebidos como heróis, foram homenageados com festas que se prolongaram até o dia 29 daquele mês. Fogos de artifício, música e recitais de poesia animavam o povo e os soldados do Paraná. Um cenário completamente oposto ao que haviam presenciado pouco tempo antes.

Durante a guerra, que durou de 1864 a 1870, esses soldados – muitos deles despreparados para enfrentar as barbáries do conflito – se depararam com milhares de mortos, prisões, tiros, casas incendiadas e localidades em ruínas. A maioria dos enviados da província era formada por jovens que moravam nas comarcas de Curitiba, Castro e Guarapuava.

Com o decreto 3.371, de 7 de janeiro de 1865, determinando a formação dos Voluntários da Pátria, civis sem prática militar foram recrutados para encorpar as tropas do Império Brasileiro.

Front

Segundo estimativas do historiador David Carneiro, o Paraná cedeu cerca de 2.020 pessoas, sendo quase 500 como “voluntários”. Ao todo, a Região Sul forneceu 9,7 mil homens e mais 1,5 mil escravos.

No entanto, o historiador e pesquisador Edilson Pereira Brito, autor de uma dissertação de mestrado sobre o tema pela Universidade Federal de Santa Catarina, acredita que o número é incerto. Utilizando os dados do Relatório do Ministério da Guerra de 1872, que foi uma espécie de balanço da Guerra do Paraguai, o número total seria de 1.926. Sendo 1,2 mil guardas nacionais; 230 voluntários e um substituto; além de 11 escravos libertos. “Tais dados representam 2,2% da população masculina da Província, incluindo os escravos”, afirma.
Porém, Brito ressalta que os dados de paranaenses que foram designados para a Guerra do Paraguai não são totalmente confiáveis e tendem a ser subestimados.

O relatório apresentado pelo governo da Província do Paraná em 1867, relativo ao ano de 1866, aponta que 1.513 paranaenses já teriam ido à guerra. “Se somarmos apenas os dois primeiros anos do conflito, a Província do Paraná havia enviado quase 80% do número total dos soldados computados pelo Ministério da Guerra. Ficando desta forma apenas 413 soldados para os quatros anos finais do confronto. Este número não é condizente com o contexto da guerra no período. Provavelmente, o número de recrutados foi bem superior ao indicado pelo relatório”, ressalta o pesquisador.

Voluntários fizeram a “ponte” no RJ e SC antes de ir ao front


No Paraná, o aviso do decreto de convocação dos voluntários foi dado durante a formatura de soldados da Guarda Nacional na Lapa. Nesse período, o presidente da Província era Pádua Fleury. Durante um discurso na Assembleia Provincial, em janeiro de 1865, ele declarou que “graças ao civismo dos briosos paranaenses já desembarcou na Corte a primeira companhia organizada nesta capital [Curitiba] com 75 praças e três oficiais”.

Essa primeira leva seguiu para a guerra depois de um curto estágio no Rio de Janeiro, onde se incorporou a outras forças voluntárias. A companhia paranaense foi incluída no 4.° Batalhão de Voluntários.

Já o primeiro corpo completo constituído no Paraná foi formalizado em maio de 1865. No mês seguinte, embarcaram para Santa Catarina, no vapor Dom Pedro II, para posteriormente seguirem para o front de batalha.

Além deste batalhão, seguiu uma segunda companhia isolada. David Carneiro escreve que esse grupo foi incorporado ao 25.° Batalhão de Voluntários da Pátria, também em território catarinense, e depois foram ao Paraguai. O grupo era formado por 17 oficiais, 250 praças e 22 mulheres. No início de julho, a tropa que totalizava 450 pessoas, somando com os de Santa Catarina, rumou para a guerra.

Recompensas da Guerra


Muitos paranaenses tiveram participação importante no conflito, mas não há um herói simbólico. Para o historiador Edilson Pereira Brito, quem se beneficiou durante o conflito foi a elite provincial, representada, sobretudo, pelos ervateiros do litoral e pelos proprietários rurais da região dos Campos Gerais. “Para essa elite a Guerra representou um momento de reforçar lealdades com o governo geral. Logo, tais homens que ocupavam postos importantes mobilizaram a sua clientela (empregados, agregadas e outros de forma geral) para a Guerra, obtendo certo sucesso e depois recebendo títulos do Imperador”, afirma.

O paranaense David dos Santos Pacheco, por exemplo, ofereceu cem reses de sua fazenda em Passo Fundo para manter as forças no Rio Grande do Sul, e organizou uma companhia de 85 praças de voluntários. Mais tarde, em 1880, recebeu o título de Barão dos Campos Gerais, sendo lembrado por sua atuação durante a Guerra do Paraguai.

Índios e escravos


O historiador e pesquisador Edilson Pereira Brito revela que muitos indígenas do Paraná foram utilizados e recrutados para a batalha no Paraguai. Outros eram arregimentados para fazer a segurança das cidades sem policiamento. Um desses exemplos está em uma carta do diretor geral do aldeamento indígena para o governo provincial solicitando o pagamento de 23 indígenas, que se encontravam realizando o trabalho de guarnição na Comarca de Guarapuava em 1865.

Segundo um anúncio no jornal Dezenove de Dezembro, durante a guerra um escravo fugiu de seu proprietário para se alistar no Exército. “Isso mostra como a escravidão no Brasil era perversa, já que muitos escolhiam servir na guerra do que viver sob o jugo do cativeiro”, afirma Edilson Brito.

O começo da Guerra do Paraguai foi marcado pelas ofensivas das tropas de Solano López no Mato Grosso, em dezembro de 1864, e em Corrientes, na Argentina, em abril de 1865. Em maio daquele ano, o Paraguai conseguiu atravessar Misiones e invadiu o Rio Grande do Sul.

De início, a invasão teve sucesso, mas depois foi contida pelas forças aliadas. “López foi ousado. Se não tivesse invadido a Argentina, a condução da guerra seria outra. No momento que ele invade, ele arrisca. Tinha lógica para combater as duas nações inimigas, mas as possibilidades [de dar certo] eram remotas”, diz o historiador Francisco Doratioto. Segundo o também historiador Herib Caballero, Solano acreditava que se o Brasil invadisse o Uruguai estaria colocando em risco o equilíbrio dos países no Rio da Prata. “Ele invade o Mato Grosso como resposta. A partir disso, as cartas estavam jogadas.”

Batalha do Riachuelo


Em junho, ocorreu a Batalha do Riachuelo, no Rio Paraná, o único grande confronto naval da guerra, no qual as tropas brasileiras venceram. Já em abril de 1866, as tropas aliadas invadiram o Paraguai e instalaram um quartel-general no Tuiuti, na confluência dos rios Paraná e Paraguai. Em 24 de maio, repeliram uma investida paraguaia e venceram a primeira grande batalha em terra.

Proposta rejeitada


Em setembro de 1866, Solano López chegou a propor concessões, inclusive territoriais, para terminar a guerra, desde que o Paraguai não fosse totalmente desmembrado ou ocupado em caráter permanente. A proposta foi rejeitada. No mesmo mês, em uma batalha em Curupaiti, os aliados foram massacrados. Mas em julho do ano seguinte, iniciou-se uma movimentação para cercar a fortaleza fluvial de Humaitá, que bloqueou o acesso ao Rio Paraguai e a Assunção. Mesmo assim, passou-se mais de um ano para que os aliados ocupassem Humaitá, em agosto de 1868. “A fortaleza resistiu por quase quatro anos. Ela caiu porque os soldados estavam passando fome”, afirma o pesquisador paraguaio Eduardo Nakayama. Assunção foi ocupada em 1º de janeiro de 1869.

Morte em Cerro Corá


Solano López tentou resistir por mais de um ano, mas acabou sendo morto em Cerro Corá, no nordeste do Paraguai, em 1º de março de 1870. Em 27 de julho, foi assinado um tratado de paz preliminar.

Adiós, Paraguai!

Ao invadir a capital paraguaia no dia 1.º de março de 1869, as tropas brasileiras não pensaram duas vezes e ocuparam o Palácio de los López, onde hoje é a sede do poder executivo. A bandeira brasileira chegou a ser hasteada no alto de um dos prédios mais imponentes de Assunção. Essa foi uma das primeiras ações do Império Brasileiro, que ficou no país por quase sete anos.

Ao longo desse tempo, a barbárie assombrou os sobreviventes do país vizinho. Como relata o historiador da Universidad de Asunción Herib Caballero, o cemitério municipal teve suas tumbas profanadas em busca de bens preciosos sepultados com os cadáveres e espaços comerciais foram saqueados. Ao longo deste período, a falta de comida castigou e matou os paraguaios. Aliada à miséria, mulheres eram estupradas e crianças chegaram a ser sequestradas. “As crianças eram sequestradas por soldados brasileiros e argentinos e enviados como ‘presentes’ para servirem como escravos ou ainda eram colocados preços para resgate”, conta Caballero.

Soma-se a isso a morte de pelo menos 80% da população masculina do Paraguai. “A força produtiva daquela época morreu”, afirma o membro da Academia Paraguaia de História, Eduardo Nakayama. Este fato, por si só, dificultou a recuperação econômica e social do país vizinho.

Caballero, no entanto, é cuidadoso ao responsabilizar só a guerra pelas dificuldades atuais que vive o Paraguai. “Não podemos continuar culpando a guerra pela situação atual. Era fato que o país estava se modernizando e foi interrompido pela guerra, mas os males não podem ficar restritos ao conflito.” Mesmo porque, por exemplo, quase 60 anos depois do término da batalha, o Paraguai se envolveu em um novo confronto, dessa vez contra a Bolívia, na Guerra do Chaco.

Mesmo assim, a “Guerra da Tríplice Aliança” – cuja “culpa” recai sobre os quatro países envolvidos, segundo Caballero – retorna com certa facilidade à lembrança dos paraguaios. Quando o Paraguai foi suspenso do Mercosul em 2012, por exemplo, os periódicos de Assunção fizeram analogia com a guerra iniciada há 150 anos, alegando que um bloco estaria sendo formado contra o país. “Dependendo dos momentos, a guerra está aí. É uma recordação muito recente”, salienta o historiador.

Por isso, tanto Nakayama quanto Caballero são enfáticos ao afirmar que a Guerra do Paraguai significa uma ferida aberta para os paraguaios. Ainda mais que dentro da visão histórica nacionalista costuma-se apregoar que o baixo desenvolvimento paraguaio é culpa exclusiva da guerra. “O problema foi a quantidade de mortos. Uma sociedade que perde tudo isso de população é muito golpeada e demora para se recompor. Mas é insuficiente para explicar a realidade do país”, ressalta.

Vitorioso


O historiador Ricardo Salles afirma que se Solano López ganhasse a guerra, o Paraguai ficaria com as regiões que estavam em litígio com Brasil e Argentina (parte do Mato Grosso e Misiones). “Mas ele não declarou a guerra nem invadiu a Argentina por isso, e sim para socorrer o governo uruguaio”, ressalta. A invasão paraguaia no Mato Grosso foi uma estratégia também para se apoderar do território, obter recursos e porque era uma região de fácil acesso e sem muitos riscos.

Outros países


Doratioto escreve que o Uruguai participou da guerra com cerca de 5,5 mil soldados. Ao fim do conflito morreram cerca de 3,1 mil. Já a Argentina, que contava no início com 30 mil homens, sofreu uma baixa estimada de 18 mil soldados. Dessa forma, é impossível contabilizar um número exato de mortos durante a “Guerra da Tríplice Aliança”. A mortes brasileiras são estimadas entre 50 mil e 100 mil.

Saldo negativo


Nos anos de guerra, o Império Brasileiro dedicou-se integralmente ao combate. Estima-se que foram gastos 614 mil contos de réis na luta (11 vezes o orçamento governamental para o ano de 1864). Os gastos com o Ministério da Guerra saltaram de 21,9% em 1864 para 49,6% no ano seguinte. Nos demais anos de conflito mantiveram-se porcentagens acima de 41%.