sexta-feira, 10 de julho de 2015

A Conquista do Oeste

Marcelo Sales

Aventuras na História, 24/02/2014


Carruagens fugindo de bandidos. A cavalaria combatendo índios, cowboys solitários laçando cavalos e bois. Manadas de bisões que faziam a terra tremer quando estouravam por imensas planícies. Agricultores e suas famílias tirando o sustento de terras hostis com tenacidade. Tiros para todo lado. Estradas de ferro.

Os relatos de escritores e jornalistas, as pinturas de Frederic Remington e o cinema fixaram na mente das pessoas histórias e tipos míticos como cowboys e xerifes em cidades poeirentas. Ficção à parte, a conquista do Far West teve contornos lendários, mas envolveu política, trabalho duro e rotineiro e muita violência.

Quando os britânicos depuseram armas, em 1781, os habitantes das 13 colônias que fundaram os EUA tinham como fronteira ocidental a Cordilheira dos Apalaches, uma área do tamanho de Minas Gerais e São Paulo. Em 1803, a Louisiana foi comprada dos franceses. Em 1819, foi a vez da Flórida, adquirida dos espanhóis. A partir de 1846, uma guerra de dois anos custaria ao México metade de seu território. No mesmo ano, o Tratado do Oregon (1846) garantiu a porção noroeste, definindo a fronteira com o Canadá. “Em 1848, os EUA já haviam alcançado o Pacífico, numa conquista vertiginosa e violenta”, afirma a historiadora Mary Junqueira, da USP.

Para garantir a posse de tanta terra, era preciso povoá-la. “A região foi ocupada por gente de vários perfis atraída pela chance de adquirir terra e direitos políticos”, diz Mary. Além do incentivo à imigração e da legislação conhecida como Land Ordinance (1785), que regulava a formação de estados no Oeste, dois eventos atraíram multidões para a “Corrida do Oeste”: a descoberta de ouro na Califórnia e o Homestead Act, que doava lotes de 160 acres (65 hectares) de terras federais, assinada em 1862 por Abraham Lincoln. Parte das terras foi obtida por especuladores, prejudicando o pequeno agricultor, segundo Claude Fohlen, em O Faroeste.

Os personagens

A Conquista do Oeste tem personagens emblemáticos. Os primeiros a se embrenharem na terra desconhecida foram os caçadores de peles, que não se fixaram na região. Seguiu-se um grande fluxo de mineiros, seduzidos pela promessa nunca concretizada de um Eldorado. O auge da exploração se deu na Califórnia, entre 1848 e 1855. Houve ciclos posteriores em estados próximos, com resultados parecidos.

Já o cowboy, a figura mítica da região, na essência é um perito em manejar gado e cavalos. Os espanhóis trouxeram bovinos ao Golfo do México no século 17. Com as guerras e o fechamento das missões, no século 19, os rebanhos voltaram ao estado selvagem. Os americanos, atraídos pelo cultivo de algodão, viram a oportunidade de domesticar e explorar os long horns, ou chifres longos, como faziam os vaqueros. Havia também mustangs: cavalos em estado selvagem pouco maiores que um pônei, mais resistentes que as raças europeias e com instinto apurado para conter o gado.

Mas levar rebanhos do Texas até os consumidores do Leste exigia cruzar territórios indígenas – o que era ilegal – ou florestas cheias de ladrões e soldados desertores. As viagens irritavam também os colonos, porque o gado danificava plantações e transmitia doenças. O comerciante Joseph G. McCoy foi um dos que pensaram na solução para o problema. Em 1867, ergueu galpões de madeira para abrigar os rebanhos e um saloon, transformando Abilene, no Kansas, em entreposto comercial ao lado de uma ferrovia. Faltava levar o gado até o que viria a ser chamado de cowtown. A travessia rendeu grande fama aos cowboys, um contingente de 40 mil homens, pelos cálculos de Fohlen.

Um capataz comandava até dez cowboys, dependendo do tamanho do rebanho. Eram homens entre 20 e 30 anos, com boa saúde e vigor físico para caminhadas de até 25 km para domar reses. À noite, cantavam para acalmar os bois e se revezavam na vigília para proteger os acampamentos de saqueadores, lobos, coiotes e colonos. Tinham dieta simples: carne fresca era raridade. Nada de steaks, uma criação do século 20. Para beber, café, água e uísque de milho.

Outro grande evento eram os round-ups, quando os rebanhos de vários criadores eram marcados a ferro quente. Tais eventos atraíam muitos cowboys e são a mais provável origem dos rodeios. Nessa época, empresários perceberam o potencial da industrialização da carne de gado no Oeste. Adotaram criações sedentárias e cruzaram raças para melhorar a qualidade do produto. Os cowboys passaram a se ocupar mais da rotina dos ranchos.

O historiador Walter Webb, em seu trabalho The Great Plains (“As grandes planícies”), cita a descrição de um habitante da época sobre um deles: “Vive montado em seu cavalo, combate como os cavaleiros da Idade Média, anda armado, jura como um soldado, bebe como um peixe, veste-se como um ator e luta como o diabo. É amável com as mulheres, reservado com os estranhos, generoso com os amigos e brutal com os inimigos”.

Agricultura

A área cultivável nos EUA ia da Costa Leste ao vale dos rios Mississippi e Missouri, além de uma faixa de terra do litoral até a Serra Nevada, no Oeste. Entre essas duas regiões, com a cadeia das Montanhas Rochosas no meio, existiam as grandes planícies, terra difícil de cultivar sem irrigação.

Cenário hostil a que chegaram os colonos atraídos pelo Homestead Act. Quanto mais fazendeiros, mais graves eram os conflitos com os criadores de gado. Cercar as plantações era difícil, pela escassez de madeira e pedras. Até que Joseph Glidden patenteou o arame farpado, em 1873. Produzido em série, tinha preço acessível. Em menos de uma década, espalhou-se pelo Oeste. Segundo Walter Webb, o arame farpado foi decisivo para o avanço dos colonos. “Só então foi possível plantar com certo grau de economia e alguma certeza de não ter as colheitas comidas pelo gado solto no campo.”


Os índios

Ao lado dos mexicanos, os índios foram os grandes prejudicados pela marcha para o Oeste, de acordo com Mary Junqueira. No início do século 19, tribos do Leste e Meio-Oeste, como os sioux, foram empurradas para as planícies. Outras, como os cherokees e seminoles, foram realocadas em uma reserva onde é hoje o estado do Oklahoma. Apaches e navajos, que habitavam o sudoeste, tiveram de lutar muito para ficar por lá.

Os índios se adaptaram à vida nas planícies caçando bisões, abundantes no Oeste. Tinham destreza com cavalos e aprenderam a manejar com habilidade armas de fogo. Finda a Guerra de Secessão, o Exército Federal foi encarregado de garantir a segurança de colonos e cowboys, além de proteger a construção das ferrovias. Fortes militares foram erguidos e vários originaram cidades. Como mineiros, colonos, cowboys e os trens cruzavam áreas indígenas sem cerimônia, os índios atacavam ou roubavam bois e cavalos. A resposta dos militares foi violenta.

A ampliação das ferrovias e o povo “branco” praticamente extinguiram o bisão nos EUA, tirando o principal meio de subsistência dos índios, confinados em reservas cada vez menores. “Touro Sentado, chefe dos sioux, e Gerônimo, líder apache, são símbolos da resistência. Ambos perderam a queda de braço com o homem branco”, diz Mary Junqueira.

O transporte

A marcha rumo ao interior e depois ao Oeste utilizou ao longo do tempo quatro meios de transporte. O primeiro foram os steamboats, barcos a vapor, de casco quase reto, sem quilha – para escapar dos bancos de areia do Rio Mississipi. Sua característica mais marcante eram grandes rodas hidráulicas na popa. As viagens eram lentas e as caldeiras, barulhentas.

Longe dos rios, as diligências: carroças puxadas por parelhas de cavalos. Durante a Corrida do Ouro, ir do Missouri à Califórnia podia levar mais de quatro meses. “Era mais rápido ir de navio, contornando o Cabo Horn, na América do Sul”, afirma Mary Junqueira. Com a abertura de trilhas e a criação de serviços regulares, o tempo caiu para até 20 dias.

Os trajetos eram percorridos em comboios, para as carroças não se perderem e ficarem menos expostas a ataques. O custo da viagem era alto e a comida, precária. Os passageiros sofriam com os solavancos e a travessia de riachos e vaus.

Os navios só perderam a primazia com a chegada do trem ao Oeste. Em 1855, o Exército levou ao Congresso um plano detalhado com rotas possíveis para formar a malha ferroviária do país. Várias empresas entraram no negócio, entre elas a Central Pacific e a Union Pacific. A primeira partiu de Sacramento (Califórnia) e a segunda de Omaha (Nebraska). Mais eficiente e com emprego de mão de obra chinesa em larga escala, a Central cumpriu a meta e foi adiante. Em 10 de maio de 1869, o encontro das locomotivas das duas equipes em Promontory Point, Utah, foi um acontecimento nacional. Houve orações no local e o Sino da Liberdade soou na Filadélfia. Os trilhos iam agora de costa a costa.

Segundo o historiador Dee Brown, autor de Enterrem meu Coração na Curva do Rio, o século 19 no Oeste foi uma época de incrível violência e veneração da liberdade individual. E nesse quadro “se criaram os grandes mitos do Oeste americano – histórias de caçadores, pioneiros, pilotos de vapores, jogadores, pistoleiros, soldados da cavalaria, mineiros, cowboys, prostitutas, missionários, professores e colonizadores.” Para Mary Junqueira, um aspecto marcante da Conquista do Oeste é seu forte tom romanceado. “Apesar de visto assim por muitos nos séculos 19 e 20, tal processo não pode ser considerado uma aventura”, afirma a historiadora. “Claro que tipos como fazendeiros e cowboys existiram, mas o encontro do homem civilizado, mesmo que rústico, com o meio selvagem (natureza e indígenas) resultou numa versão que minimiza a violência que foi de fato empregada.”

Da Terrinha ao Oeste Selvagem

Sem a fama dos cowboys nem um contingente grande como o dos chineses, foi com tenacidade que os portugueses contribuíram na conquista do Oeste. Segundo o livro Land as Far as the Eye Can See – Portuguese in the Old West, de Donald Warrin e Geoffrey Gomes, grande parte dos imigrantes lusitanos saía das ilhas de Açores, Madeira e Cabo Verde para pescar baleias. Só depois de anos na atividade vinham à terra. No Oeste, atuaram no comércio de peles, na mineração, construção de estradas de ferro, criação de ovelhas e agricultura. O açoriano Frank Frates chegou a superintendente de um trecho da Central Pacific Railroad e comandou as obras do túnel da Southern Pacific que ligava Los Angeles ao norte do estado. Manuel Brazil estabeleceu-se no Novo México como criador de gado. Brazil colaborou para a captura de Billy the Kid, informando a localização dele ao xerife Pat Garrett e depois transportando o bando capturado até Las Vegas. Segundo Sandra Wolforth, em Portuguese in America, os portugueses não adquiriram valores que os fizeram ser assimilados pela sociedade local. Ao contrário, “trouxeram com eles habilidades e qualidades de que o cenário americano necessitava”.

Esparta moldou os maiores guerreiros antiguidade

Fabio Marton

Aventuras na História, 22/08/2014



Os meninos eram apartados de casa quando faziam 7 anos. O Estado se encarregava de treiná-los como guerreiros. Não qualquer guerreiro. Eles seriam soldados espartanos, o militar mais capacitado, temido, odiado e perfeito da Antiguidade. Para quem assistiu à primeira parte de 300, ou a sequência que chegou aos cinemas este ano, 300 – A Ascensão do Império, os feitos dos esparciatas são bem conhecidos (ainda que com visual de história em quadrinhos). Mas qual era o segredo da cidade para forjar militares tão formidáveis? A origem da tradição talvez resida nas Leis de Licurgo, legislador provavelmente mitológico do século 8 a.C. que deixou um código não escrito determinando praticamente tudo na vida de um espartano.

Antes disso, a cidade era algo bem diferente da que conhecemos. Esparta é central na Ilíada, que narra a Guerra de Troia, por volta de 1200 a.C. Da cidade veio Helena, a esposa do rei Menelau que, ao ser raptada pelo príncipe troiano Páris, deu início ao confronto. “Achados arqueológicos atestam o amor pelo luxo, humor e mesmo frivolidade no período arcaico, que dificilmente relembram os sisudos e militaristas espartanos da imaginação antiga e contemporânea”, diz o historiador Nigel M. Kennell, do Centro de Estudos Helênicos e Mediterrâneos, em Atenas.

Por volta do ano 1000 a.C., a cidade foi conquistada pelos dóricos, que se consideravam descendentes do semideus Héracles (o Hércules romano). Eles estabeleceram uma monarquia dual, com reis de diferentes dinastias. “A dualidade levava a conselhos divididos, rivalidades dinásticas, ansiedades de sucessão, luta faccional”, diz Paul Cartledge, da Universidade de Cambridge. Os reis podiam não se bicar, mas não tinham muito poder. As decisões mais importantes eram tomadas por cinco éforos eleitos e pela gerúsia, formada por 28 cidadãos com mais de 60 anos – sempre com base nas Leis de Licurgo. E o principal tópico da legislação era que o cidadão de Esparta não trabalhava na terra, não praticava o comércio nem ganhava a vida como artesão. A única atividade nobre para um homem era a guerra. E eles passavam a vida treinando para ela.

Eles eram legendários porque, enquanto em outras cidades gregas as pessoas dividiam o tempo entre o treinamento militar e os afazeres cotidianos, a vida do espartano era focada no combate. O estado estava tão impregnado na vida privada que cabia à gerúsia decidir quais bebês deveriam viver (nas outras cidades, que também praticavam o infanticídio, a decisão cabia ao pai, não ao governo). Esparta era tão superior que a cidade não tinha muralhas. Não havia o que temer.

Missão suicida

O primeiro encontro militar entre espartanos e persas se deu na celebrada Batalha das Termópilas, entre 8 e 10 de setembro de 480 a.C., durante a segunda incursão persa à Grécia – a primeira foi repelida pelos atenienses, dez anos antes. Celebrizada, estilizada e romantizada no filme e nos quadrinhos 300, muito do que vem a partir daqui deve ser familiar para quem os viu, menos isto: os 300 espartanos lideravam 7 mil soldados. Somados à tropa de elite do rei Leônidas, havia mais 700 periecos, homens livres, mas sem direitos políticos, e 900 hilotas, escravos espartanos, que atuavam como arqueiros ou armados de fundas. Além de milhares de aliados de cidades como Tebas e Corinto. Periecos e hilotas eram os moradores encarregados das atividades que não cabiam aos esparciatas.

Era uma missão suicida e eles sabiam. Os 300 foram selecionados apenas entre os que já tinham filhos homens para passar seu legado. Do outro lado, havia no mínimo 70 mil persas, talvez até 250 mil, de acordo com estimativas modernas. O historiador mais influente do século 5 a.C., Heródoto, disse que eram 1,7 milhão.

Para frustração dos persas, a superioridade numérica não bastava. Termópilas era uma garganta com meros 100 m de largura. Por mais tropas que houvesse, elas eram forçadas a lutar com uma unidade de cada vez. Atirar flechas, sua tática favorita, era inútil: os espartanos levantavam os escudos, que tinham uma extensão de tecido para desviar flechas, e esperavam a chuva passar. Dienekes, um dos 300, foi informado que as flechas eram suficientes para tapar o sol. Saiu-se com uma das maiores tiradas do humor lacônico: “Melhor assim, combateremos à sombra”.

Homem por homem, os persas não tinham chance contra os espartanos, donos de melhores armaduras, lanças mais longas e escudos que protegiam melhor. Além de tudo, lutavam como ninguém. “Os espartanos usaram o tipo de tática que só um exército treinado e disciplinado poderia contemplar – falsas retiradas seguidas por uma súbita meia-volta e o massacre de seus perseguidores”, diz Carledge. Em três dias, os persas perderam 20 mil soldados, contra 2 mil no lado grego. Os números seriam muito maiores se um traidor grego, Efialtes, não tivesse indicado um caminho pelas montanhas. Num ataque em duas direções, os 300 e outros 1 200 aliados foram, enfim, massacrados.

Comportamento

Em tese uma derrota, a Batalha das Termópilas inspirou os vizinhos a resistir. “O fator moral no comportamento dos espartanos explica o sucesso final dos gregos”, diz Cartledge. O comportamento de um espartano era bastante curioso. Até os 30 anos, ele não tinha uma casa para chamar de sua. Morava com a tropa, em geral em barracos, na periferia da cidade ou em tendas de campanha – arqueólogos nunca encontraram nada parecido com um “quartel-general”, algo esperado para quem nasceu para guerrear. Segundo o historiador Scott Rusch, autor de Sparta at War (sem tradução), a razão é que eles eram apenas jovens cidadãos, ainda que focados no combate. Como não eram soldados, não fazia sentido viver em quartéis.

Em uma Esparta com poucas mulheres, submetidas a humilhações até na hora do casamento e que passavam boa parte do tempo longe dos filhos e dos maridos, a condição feminina era bem distinta se comparada a outras cidades gregas. Elas faziam exercícios ao ar livre, usavam pouca roupa e tinham senso de humor. Um ateniense perguntou a Gero, mulher do general Leônidas, por que as espartanas mandavam nos homens. “Por que somos as únicas que podem gerar homens”, respondeu. Elas podiam ter até casamentos poliândricos, se os maridos concordassem – como a geração de novos guerreiros era a prioridade, casamentos múltiplos tornaram-se um jeito de resolver o problema.


 Guerra fria

A guerra contra os persas uniu as cidades gregas, mas, com o invasor derrotado, restou saber o que fazer da Grécia após a vitória na Batalha de Plateias, em agosto de 479 a.C. A aliança entre Atenas e Esparta era precária. Durante o século 5 a.C., a Grécia se dividiu em dois campos. Ao lado de Atenas, ficaram as cidades democráticas da Liga de Delos. Com Esparta, as oligarquias da Liga do Peloponeso. Sem um inimigo externo, os modos de vida opostos entraram em confronto. Esparta era uma sociedade rigidamente oligárquica e tradicional, que rejeitava o comércio. Atenas era uma vibrante e democrática metrópole de comerciantes. Os espartanos haviam ajudado, por acidente, a instalar a democracia ateniense em 510 a.C., ao removerem o tirano Hípias do poder da cidade. Três anos depois, o novo regime foi instaurado, uma experiência radical e profundamente perturbadora para uma sociedade petreamente ligada à ordem, como Esparta.

As tensões começaram logo depois da guerra, quando os espartanos sugeriram que os atenienses seguissem seu exemplo e não reconstruíssem seus muros. Eles viram isso como uma tentativa de criar uma ameaça constante de forma a dominar a cidade, mantendo-a sob ameaça dos hoplitas espartanos. Sua recusa foi tomada como uma afronta. Em 465 a.C., um grande terremoto atingiu a Lacônia. Sentindo a fraqueza dos seus mestres, os hilotas iniciaram uma grande revolta. Atenas se dispôs a enviar um contingente de 4 mil hoplitas para ajudar seus ainda formalmente aliados. Então ocorreu o primeiro conflito ideológico direto.
“Devem ter sido intensos o choque e a surpresa dos atenienses ao descobrir que os ‘escravos’ hilotas não eram bárbaros, mas gregos com orgulhosas tradições”, afirma Paul Cartledge. Notando a relutância, os espartanos dispensaram seus aliados, o que gelou as relações entre as duas cidades.

Com uma série de episódios de hostilidade entre Atenas e os aliados de Esparta, em 431, um congresso da Liga do Peloponeso foi convocado para decidir pela guerra. De forma atípica, o rei Arquídamo II fez um discurso pedindo por paciência. O éforo Estelenides usou o estilo espartano típico: “Os atenienses são culpados de quebrar a paz, então vamos para a guerra!” A decisão ficou empatada. Estelenides propôs separar os votantes em duas alas. Sendo quem eram, nenhum espartano quis ser visto no lado da paz, e o “sim” ganhou por larga margem. Era o início da Guerra do Peloponeso.

No verão do mesmo ano, os espartanos estavam em frente aos muros que tanto odiavam. Esparta podia ser ainda a melhor força terrestre do mundo, mas não entendia nada de navios. Atenas era uma das maiores potências navais da época. O plano era simplesmente cercar a cidade até os atenienses morrerem de fome ou saírem para enfrentá-los. Nada disso aconteceu: com sua frota livre para fazer comércio, os atenienses simplesmente importaram alimentos.

A Guerra do Peloponeso se estenderia, com períodos de paz precária, por 35 anos, até o espartano Lisandro fazer uma espécie de pacto com o diabo. Buscando auxílio entre os persas, conseguiu que eles providenciassem uma frota naval para Esparta. Ainda que não conseguissem aniquilar os atenienses no mar, os espartanos fizeram um bloqueio naval. Com a fome ameaçando acabar com a cidade, em 404 a.C. Atenas se rendeu. Ao som de flautas tocadas por moças espartanas, os muros foram destruídos, assim como a democracia. No lugar foram colocados 30 tiranos, ditadores que respondiam à cidade vizinha.

O fim de uma era

A hegemonia espartana não duraria muito tempo. Um ano depois, os tiranos foram depostos e a democracia foi restaurada em Atenas. Em 395 a.C., eles estariam de volta ao combate contra Esparta na Guerra de Corinto, que terminou em empate. Mediando a paz, estava ninguém menos que o rei da Pérsia. A forma de guerrear estava mudando, e Esparta já não era mais tudo isso. “O Estado reacionário espartano estava menos pronto que as cidades-estados da época para adotar um número adequado de auxiliares e cavalaria, em grande parte porque sua infantaria era superior”, afirma o historiador militar Victor Davis Hanson, da Universidade Stanford. Mas essa superioridade estava em risco. O terremoto, as revoltas e as guerras haviam cobrado seu preço à população.

Havia apenas 400 esparciatas durante a Batalha de Leuctra, em 371 a.C., um dos muitos conflitos locais que se seguiram à Guerra de Corinto. Espartanos ainda podiam ser fortes, mas eram previsíveis. E o general Epaminondas, líder de Tebas, faria uso disso. Hoplitas colocavam suas melhores forças sempre à direita. Epaminondas formou uma coluna de 50 linhas com suas tropas mais capazes, e posicionou-as à esquerda, de forma a enfrentarem a elite espartana primeiro. Mil soldados morreram só nessa parte do combate. “No período da vida adulta de um homem, a cidade passou de líder indisputável dos gregos para um pequeno jogador na cena local”, diz o historiador Nigel Kennel. Pela primeira vez, os espartanos viram exércitos inimigos em suas fronteiras.

Além disso, um grande personagem entrava em campo. Os macedônios, sob Felipe II (382-336 a.C.), criariam um novo tipo de exército, baseado no uso combinado de infantaria e cavalaria. Esparta acabou deixada de lado por Felipe e seu filho, Alexandre, o Grande. Mas a Liga do Peloponeso foi extinta em 338 a.C., e todos os antigos aliados juntaram-se aos exércitos macedônicos, quando conquistaram a Pérsia.

Com Esparta isolada e acumulando derrotas no século 3 a.C., o rei Cleômenes III, que ascendeu ao trono em 236 a.C., estabeleceu reformas radicais, confiscando e dividindo as terras igualmente, transformando periecos em cidadãos e adotando um exército ao estilo macedônico. Confiante na modernização, começou a conquistar o entorno, a partir da cidade-estado de Argos, a única cidade da região a não se unir à Liga do Peloponeso. A Liga Aqueia, que reunia os ex-aliados de Esparta, reagiu unindo-se à Macedônia. Cleômenes foi derrotado na Batalha de Selásia, em 222 a.C.

Seguiram-se dez anos de vácuo no poder, até que, em 207 a.C., o tirano Nabis executou os membros das duas famílias reais, exilou ou matou os nobres resistentes e libertou os hilotas. De forma ainda mais subversiva, construiu muros em Esparta. Uma guerra internacional foi convocada contra ele, trazendo como aliada a nova potência internacional, Roma.

Em 189 a.C., a Liga Aqueia decidiu pôr fim à independência de Esparta. A cidade foi capturada no ano seguinte e as Leis de Licurgo, revogadas. Incorporada a Roma em 146 a.C., a cidade se tornaria atração turística para romanos ricos que queriam ver os hábitos bárbaros de seus habitantes. Triste fim para os melhores guerreiros da História.

O HOPLITA ESPARTANO - O segredo da vitória

Hoplitas eram soldados armados com lanças de 3 m, chamadas dory, e xiphos, espadas curtas para combate próximo. Eram munidos de um escudo, o hóplon, e uma armadura de bronze, a panóplia. Atuavam em colunas largas, com oito a 12 linhas de soldados, com os mais experientes à direita. A razão disso era que os homens se moviam instintivamente em direção ao escudo de seu parceiro, e os veteranos evitavam que a tropa toda se desviasse. As lanças podiam ser seguradas por baixo ou por cima, permitindo que um soldado das linhas de trás atacasse sobre os ombros dos companheiros. A combinação de armadura e escudo e a coesão da tropa os tornavam quase invulneráveis a um ataque frontal, fosse por flechas, espadas ou lanças.


Todas as cidades-estados gregas usavam hoplitas. O que tornava os espartanos especiais era o fato de serem soldados profissionais e exclusivos, com um espírito de ferocidade e companheirismo militar incutido desde a mais tenra idade, enquanto os outros eram comerciantes e artesãos que ocasionalmente pegavam em armas. Espartanos ou não, hoplitas pagavam pelas próprias armas e armaduras – quem não tivesse dinheiro ficava de fora. No caso de Esparta, era uma desgraça total: significava perder a cidadania e juntar-se aos periecos.

IMPÉRIO DA MODÉSTIA - Esparta não impressionava. As ruínas são exíguas

Os espartanos preferiam se referir às suas terras pelo nome da região, Lacônia ou Lacedemônia. Daí vinha a letra lambda – λ – em seus escudos. De acordo com as lendas gregas, Lacedemon era um filho de Zeus com a ninfa Taigete, que fundou um reino na Península do Peloponeso, uma vasta região que é ligada ao continente por um istmo de 6,3 km de largura. Ele batizou seu país em sua própria homenagem, e a capital, em honra à esposa, Esparta.

A cidade era formada por quatro vilas com uma acrópole central, onde havia o templo de Ártemis Órtia e o dedicado a Atena Calcieco. As ruínas são exíguas. “Não há sinais de edificações de nenhuma natureza, exceto os templos. O que faz muitos suporem que as construções eram de madeira”, diz a historiadora Maria Aparecida de Oliveira Silva, da USP. Até o reinado do tirano Nabis, não havia muros, uma manifestação da confiança que depositavam na ponta de suas lanças. O general ateniense Tucídides (460-395 a.C.) visitou a cidade e escreveu, profeticamente: “Suponha, por exemplo, que a cidade de Esparta se tornasse deserta e que apenas os templos e as fundações dos prédios sobrevivessem. As gerações do futuro achariam difícil acreditar que o lugar foi tão poderoso como representado”.



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quinta-feira, 9 de julho de 2015

[SGM] A Última Batalha da Europa

Larry Hannant

History Today, 07/07/2015


Por cinco anos, era tão idílica quanto a guerra poderia ser. Mas nas últimas seis semanas – estendendo-se além do término oficial da Segunda Guerra Mundial – tornou-se uma carnificina sangrenta. Aqueles que outrora foram camaradas no uniforme de repente massacraram-se entre si em um conflito que pode ser chamado de “A Última Batalha da Europa”.

Fotografias de soldados alemães, que na Segunda Guerra Mundial estavam estacionados na ilha pastoral de Texel (pronuncia-se “tessel”), a maior das ilhas friesianas ocidentais, mostram-nos sorridentes como se estivessem escrevendo para casa. Texel era como uma vista de cartão postal, uma gema de praias exuberantes ilimitadas cercando campos agrícolas produtivos de grãos, batatas e pastos para ovelhas felizes. Em abril de 1945, no que todos sabiam ser os últimos dias de um conflito apavorante, os 1.200 soldados da Wehrmacht em Textel tinham um bom motivo para esperar que eles pudessem ver o fim da guerra sem disparar um único tiro.

Mas na manhã de 6 de abril, a tranquilidade transformou-se em terror quando soldados da Wehrmacht mataram soldados da Wehrmacht, usando tudo, de baionetas até artilharia. Amigo e inimigo eram diferenciados por um pequeno detalhe em seus uniformes: cerca de 800 dos homens usavam um pequeno emblema os identificando como georgianos, enquanto que 400 oficiais e suboficiais eram alemães.

Os georgianos começaram a guerra não em uniformes alemães, mas soviéticos. Em 1941, quando a URSS montou uma resistência desesperada contra o maciço exército de invasão de Hitler, os soviéticos pressionaram todos os cidadãos ao serviço militar. Vindos da terra natal de Stalin, os cidadãos georgianos receberam cores soviéticas e armas e foram jogados em campo para a defesa da Pátria.

Os georgianos, capturados inicialmente na frente oriental, receberam uma proposta difícil. Eles poderiam aceitar receber a condição de prisioneiros de guerra, com um futuro incerto de fome, abuso e possivelmente morte, ou poderiam se alistar na Wehrmacht. A escolha de cerca de 30.000 georgianos para vestir um uniforme alemão foi compreensível, mas isso os tornou traidores.

À medida que o fim da guerra se aproximava, o futuro dos georgianos em Texel tornou-se sombrio – o retorno à retaliação e punição na URSS. Temendo este destino, os membros do 822º. Batalhão, tendo já substituído os uniformes soviéticos pelos alemães, mudaram sua aliança novamente, agora para o lado aliado.

Dentro de suas barracas, logo após a meia-noite de 5-6 de abril de 1945, os georgianos voltaram-se contra seus camaradas alemães, matando muitos deles com baionetas e facas em ataques coordenados. Mas alguns, incluindo o comandante, major Klaus Breitner, que passou a noite com sua amante na vila de Den Burg, sobreviveu. Breitner e os poucos sobreviventes alemães foram capazes de escapar para o continente.

Em 6 de abril, Breitner lançou um contrataque, tendo mobilizado uma força de 2.000 marinheiros e membros da temida SS. O que parecia ter sido uma completa vitória georgiana foi rapidamente revertido. Uma caçada casa por casa pelos georgianos varreu Texel.

Os georgianos capturados, incluindo 57 que finalmente entregaram o controle do farol onde haviam se entrincheirado, foram forçados a tirar a roupa – seu motim acabou desgraçando seus uniformes – e cavar suas próprias sepulturas. Cerca de 130 deles foram executados desta forma horrível.

Texel tornou-se um cenário de carnificina que não poupou ninguém, incluindo os habitantes civis holandeses. Forças de resistência e cidadãos comuns que protegeram e ajudaram os georgianos foram executados e as vilas de Den Burg e Ejerland presenciaram danos sérios em casas e prédios à medida que os alemães se vingavam. “Texel está sob o reino do terror,” escreveu um tessiano.

Mesmo a rendição das forças alemãs nos Países Baixos em 5 de maio e o fim oficial da guerra em 8 de maio não trouxeram o fim do massacre, já que a campanha de execução alemã continuou por mais duas semanas. O resultado final de baixas da batalha de seis semanas foi 812 alemães, 586 georgianos e 120 holandeses.

Ao longo do pesadelo, Texel não recebeu nenhuma ajuda aliada. Somente em 20 de maio foi que uma pequena unidade do Primeiro Exército Canadense chegou à ilha para negociar o fim do conflito.

O comandante canadense no local ficou tão impressionado pela resistência georgiana que ele se recusou a classificar os 228 sobreviventes como inimigos. O general de divisão Charles Foulkes escreveu para o Alto Comando Soviético pedindo clemência para os georgianos. Isto teria sido uma grande recomendação segundo as regras acordadas pelos Três Grandes líderes na Conferência de Yalta, isto é, de que todos os nacionais retornariam para seus países de origem com o fim das hostilidades.

Boatos circularam que os 228  georgianos sobreviventes não deveriam retornar à URSS. Mas, se a promessa foi feita, ela foi revogada ao longo das próximas semanas e os sobreviventes foram enviados de volta para seu país.

Contrariamente às expectativas de retribuição, em 1946 o diário soviético Pravda louvou os georgianos de Texel como “patriotas soviéticos” e descreveu-lhes como prisioneiros de guerra rebeldes. Oficiais soviéticos também visitaram a ilha regularmente após a Segunda Guerra Mundial para prestar homenagem à resistência antialemã dos georgianos.

Hoje, poucos param no túmulo coletivo dos 475 georgianos mortos em combate ou executados sumariamente, sendo seu local de repouso marcado por 12 colunas de rosas vermelhas e um monte de pedras. A última batalha da Europa está silenciosa, lembrando os antagonismos nacionalistas assassinos liberados mesmo quando o resultado da Segunda Guerra já estava decidido.
      

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quarta-feira, 8 de julho de 2015

[SGM] Anthony Beevor: Hollywood falsifica a Segunda Guerra Mundial

Juan Fernández

El Periódico, 21/06/2015


Em desespero, como alguém que coloca um desafio final para o destino que o aguarda, Hitler lançou um ataque feroz no final de 1944 sobre as florestas nevadas das Ardenas, na Bélgica, para tentar virar a maré da guerra. Essa batalha, finalmente ganha pelos aliados, provocou níveis de violência jamais vistos na Frente Ocidental. O historiador britânico Antony Beevor, considerado um dos maiores especialistas em Segunda Guerra Mundial, conta agora em detalhes as histórias desta pequena tragédia gigante que matou mais de 160.000 pessoas e colocou em cena os piores instintos desumanos em ambos os lados. Em Ardennes 1944 (crítica), existem bons e maus em todos os lugares.

O senhor escreveu sobre Stalingrado, o desembarque na Normandia, a queda de Berlim... Por que considerou a batalha das Ardenas digna de um livro?

Este combate foi o equivalente no Ocidente ao cerco de Stalingrado. Ambas são as batalhas mais brutais que aconteceram na guerra. Pelas condições meteorológicas nas quais se desenvolveram, no inverno mais cruel, e pelo grau de atrocidades que se cometeram. As Ardenas trouxe ao Ocidente a crueldade que havia existido no Leste Europeu. De fato, a Waffen SS colocou em prática as técnicas de terror que havia experimentado em solo soviético.

A que se deve tal loucura?

Diante da superioridade aérea aliada, Hitler pensou que sua única cartada seria usar o terror como arma de guerra para espalhar o pânico entre os soldados e desmoralizar o inimigo. Joachim Peiper, o coronel que dirigiu a primeira divisão Panzer que avançou sobre a Bélgica, se dedicou a fuzilar civis desde o primeiro minuto. Antes, na frente oriental, havia comandado o Batalhão Lança-Chamas, conhecido porque ateava fogo nas vilas pelas quais passava. Esse espírito sanguinário nunca havíamos visto na frente ocidental.

Surtiu efeito?

Não, porque Hitler voltou a cometer um de seus tradicionais erros de cálculo. Desta vez, subestimou os soldados norte-americanos. Ainda que muitos tenham fugido, outros resistiram em seus postos e bloquearam o avanço alemão, permitindo a Eisenhower trazer reforços e começar a reconquista. Hitler acreditava que o pânico causado pela crueldade extrema poderia derrubar o inimigo, mas às vezes o terror tem o efeito contrário e estimula a resistência.

Estrategicamente, a jogada de Hitler tinha sentido?

Nenhum. De fato, seus generais se posicionaram contra. O ataque das Ardenas foi uma fantasia construída sobre um mapa. O problema de Hitler foi que nunca esteve na frente de batalha. Dirigia a guerra movendo peças sobre um tabuleiro em seu bunker, como se fosse um jogo. Do ponto de vista militar, suas decisões eram desastrosas e isto o sabiam os Aliados. Por isso, cancelaram a Operação Foxley, destinada a assassiná-lo [1]. Pensaram que ganhariam a guerra mais rápido tendo Hitler à frente do exército alemão.

Sua investigação põe em foco um aspecto que se fala pouco: nas Ardenas se cometeram crimes em ambos os lados.

Durante a reconquista, os americanos conduziram fuzilamentos de prisioneiros e crimes comuns que logo foram deixados de lado. Respondiam à crueldade usada pelos alemães, mas não tinham justificativa. Se matava gente por vingança e outras vezes por conveniência, para não ter que transportar feridos. Nunca saberemos quem efetuou mais fuzilamentos indiscriminados, se os alemães ou os americanos, mas isto ocorreu em ambos os lados.

Por que os EUA nunca reconheceram esses crimes?

Nesse país se cultivou o mito de uma participação limpa e bondosa na Segunda Guerra Mundial. Teve a ver com o impacto que causou a experiência do Vietnã, que foi reconhecida como uma guerra moralmente suja. Isto potencializou a mentalidade americana no desejo de ver a Europa como uma guerra boa. Mas, por que uma guerra boa? Não creio que elas existam.

Não é porque ela foi libertada pelos Aliados?

Seu objetivo era louvável, sem dúvida. Tratava-se de libertar a Europa da ocupação nazista e, neste sentido, foi uma boa missão. Mas para alcançá-la, seus soldados cometeram uma variedade de atos abomináveis que não se deseja reconhecer, nem se quer investigar. É uma pena que os historiadores americanos sejam guiados por esse mito e não tenham se atrevido a se aventurar nas zonas mais sombrias da participação de seu exército na guerra, que não era.

Menos ainda o tem feito as produções de guerra de Hollywood.

Os filmes de Hollywood e a realidade da guerra são completamente incompatíveis. O cinema americano somente busca contar histórias a partir de arquétipos sem matizes. O herói, o covarde, o mau, o bom... Mas seu respeito à verdade dos fato é nulo.

É impossível encontrar um filme de guerra que siga rigorosamente os fatos em termos históricos?

Poderia numerar alguns títulos aceitáveis: A Batalha da Argélia, produção ítalo-argelina de 1966, e Cartas de Iwo Jima, de Clint Eastwood. Mas Hollywood nunca este interessada em fazer filmes sobre a Segunda Guerra Mundial que fossem fieis à realidade. O curioso é essa indústria detectou há tempos uma demanda do público para ser entretido e educado e, para atendê-lo, dedicou-se a vender seus filmes como se estivessem baseados em fatos reais, quando na verdade não é bem assim. Hollywood falsifica a história descaradamente.

Mas o público os toma como verdadeiros.

Vivemos numa era pós-literária. Agora, a imagem em movimento é a que reina e o conhecimento sobre nosso passado é adquirido, majoritariamente, através do cinema e TV. Hollywood emprega o argumento falso de que com estes filmes faz um trabalho didático, mas não está certo. O terível é a capacidade das pessoas em acreditar em qualquer coisa. Quando saiu O Código da Vinci, uma agência de pesquisas fez um trabalho na Grã-Bretanha e descobriu que metade do país acreditava firmemente que a história do livro era real.

Imagine quando saiu o filme...

Nunca esquecerei o que ouvi em filmes. Minha mulher e eu resistimos a ver a adaptação cinematográfica do livro, mas finalmente aceitamos acompanhar nossa filha. Recordo que do nosso lado havia um casal e, ao acabar o filme, o rapaz se levantou e disse para sua acompanhante: “A verdade é que te faz pensar.” Eu queria gritar. Como historiador, tudo isso é muito deprimente.

Seus livros tentam combinar o relato dos acontecimentos com a narrativa de testemunhas humanas. É a melhor maneira de contar história?

Creio que sim, cobrindo todos os aspectos. Em meu caso, tendo sido romancista antes de ser historiador me influenciou na hora de construir meus livros. Fico satisfeito que os relatos sejam visuais, que o leitor possa imaginar os cenários. Somente assim pode se tornar compreensível às gerações mais jovens, nascidas na era pós-militar, os horrores de uma guerra que teve lugar aqui mesmo, há apenas 70 anos.

Alguns detalhes são especialmente sangrentos e duros. Onde é a linha do que pode ser contado e o que é melhor ser mantido em segredo?

É muito difícil. No meu livro sobre a queda de Berlim levou muito em conta esse detalhe porque houve crueldades que gostaria de contar, como suicídios de crianças e mulheres e estupros selvagens que podiam ser considerados pornografia pura. Por isso, procuro contar com a opinião de outras pessoas. Minha principal conselheira é minha esposa, que lê primeiro o texto que escrevo.

A Batalha das Ardenas contém alguma reflexão útil para a atualidade?

Na Europa existe a tendência a crer que somente a interação na União Europeia pode nos livrar de outra guerra. Creio que não está certo. O único meio que nos previne de outra guerra é a democracia, porque um regime democrático nunca lutará contra outro igual. Mas forçar a integração pode ter o efeito contrário. O renascimento do nacionalismo verificado ultimamente em países como França, Finlândia ou Hungria o demonstra claramente. De qualquer forma, a Europa de 1944 e a de agora, felizmente, não tem nada a ver uma com a outra.

Nota:

[1] Operação Foxley foi um plano de assassinato de Adolf Hitler idealizado em 1944 pelo SOE (Special Operations Executive) britânico mas nunca levado adiante. Historiadores acreditam que o atentado seria realizado entre 13-14 de julho de 1944, durante uma das visitas de Hitler à Berghof, sua residência e quartel-general em Obersalzberg,Berchtesgaden, nos Alpes Bávaros, sul da Alemanha.



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