quarta-feira, 19 de agosto de 2015

O Julgamento de Jesus: O Enigma da Primeira Sexta-Feira da Paixão

S.G.F. Brandon

History Today, Vol. 16, Nº 4, abril de 1966



Por uma estranha ironia da história, a coisa mais certamente conhecida sobre Jesus de Nazaré é que Ele foi executado pelos romanos por sublevação contra seu governo na Judéia. As circunstâncias do nascimento de Jesus, a extensão de seu ministério público e o conteúdo exato de Seus ensinamentos são todas questões de incerteza, mas a causa de Sua morte está além de qualquer dúvida.

Pelo fato de Jesus ter sido crucificado como um rebelde contra as ordens de Pôncio Pilatos, o procurador romano da Judéia está atestado pelos quatro Evangelhos, e é brevemente mencionado pelo historiador romano Tacitus, escrevendo no início do século II.

O testemunho dos Evangelhos é especialmente significativo, pelo fato da execução de Jesus sob tal acusação ser muito embaraçosa para os primeiros cristãos. Eles obviamente jamais a teriam inventado; de fato, eles provavelmente não a teriam registrado, se o fato não fosse bem conhecido.

Que os escritores do Evangelho descrevem a crucificação de Jesus, e os eventos que conduziram a isso, em extensão considerável, é, de fato, a causa real do mistério que torna o evento trágico. Seus relatos, sob análise, parecem ser inspirados por um forte motivo apologético – de fato, eles são tentativas de explicar o fato embaraçoso de que Jesus foi, na verdade, executado como um criminoso político. Por causa desta intenção apologética, qualquer tentativa de elucidar o problema da condenação romana de Jesus deve começar com uma avaliação da evidência do Evangelho.

O documento central é o Evangelho de Marcos, pelo fato de ser o primeiro dos Evangelhos e sua estrutura narrativa foi seguida de maneira próxima pelos autores dos Evangelhos de Mateus e Lucas. O Evangelho de João, que é posterior em data, geralmente reproduz a apresentação marquiana do Julgamento e Crucificação de Jesus, apesar de evidentemente estar mais preocupado com o significado teológico destes eventos.

O Evangelho de Marcos representa uma inovação no pensamento e prática cristãos. Ninguém até aquele ponto pensou em escrever um relato narrativo da vida de Jesus. A razão para isto residia indubitavelmente no fato de que os primeiros cristãos acreditavam tão firmemente que Jesus logo voltaria do Céu, com poder sobrenatural, para conduzir a Ordem Mundial existente a um fim. Em outras palavras, nas três ou quatro décadas após a Crucificação nenhuma necessidade foi sentida em registrar a vida terrena de Jesus para a posteridade – porque não haveria posteridade!

O que, então, provocou a mudança que produziu o Evangelho de Marcos? Claramente, devemos olhar para a causa adequada; a mudança implica uma alteração verdadeiramente profunda na primitiva perspectiva cristã. Para responder a questão, precisamos saber a data do Evangelho. Estudiosos concordam em data-lo do período 65 a 75 d.C.

Agora, durante esta década ocorreu a revolta judaica contra Roma. Ela já estava acontecendo há algum tempo, devido à má administração romana e convicção judaica, tão fervorosamente mantida, que o Povo Eleito de Israel não pagaria lealdade a nenhum outro deus exceto Yahweh, o Deus de Israel. A revolta estourou no ano 66, e pelos próximos quatro anos, a vida da nação judaica foi perturbada pela guerra, até a catástrofe final acontecida em 70, quando Jerusalém foi capturada e destruída, e seu famoso Templo destruído pelo fogo.

O efeito da guerra judaica sobre a nascente igreja cristã foi profundo. Até então, o movimento cristão tinha sido dirigido e controlado de Jerusalém, onde a comunidade original de apóstolos e discípulos foi estabelecida. Esta comunidade, a Igreja Mãe da Cristandade, desapareceu na catástrofe de 70 d.C. A situação resultante ficou carregada de perigo e perplexidade para os cristãos em todos os lugares.

Não somente eles tinham perdido a fonte original de autoridade e tradição de sua fé, mas eles enfrentaram o perigo real e imediato de serem lembrados pelo governo romano como “companheiros simpatizantes” do nacionalismo judaico. Em nenhum outro lugar este perigo era maior do que em Roma, a capital do Império que foi altamente testada pela revolta judaica. Foi para a comunidade cristã em Roma que o Evangelho de Marcos foi originalmente escrito.

Este fato da origem romana do Evangelho de Marcos é de supremo significado para determinar a data de sua composição. A questão que agora enfrentamos, à luz das considerações precedentes, é: quando, durante o período 65 – 75 d.C., surgiu a necessidade para os cristãos de Roma de um registro escrito da vida de Jesus, haja visto que esta necessidade não havia sido sentida antes? A evidência aponta irresistivelmente para uma única resposta: a necessidade surgiu em virtude da situação provocada pela guerra judaica contra Roma.

A probabilidade a priori que isto foi assim encontra confirmação singular quando examinamos o próprio Evangelho. Mas primeiro precisamos notar outro fato de grande importância nesta conexão. No ano 71, o imperador Vespasiano, junto com seus filhos Tito e Domiciano, celebrou um triunfo esplêndido em Roma para comemorar sua vitória sobre a Judéia rebelde. A ocasião foi de grande significado tanto para o povo romano quanto para a nova dinastia imperial dos Flavios.

Desde a morte de Nero em 68, o Estado romano sofreu uma série de desastres sérios. Ela entrou em guerra civil logo após os judeus terem se revoltado. A própria guerra judaica começou com a derrota humilhante de um exército romano pelos rebeldes. As consequências foram provavelmente sentidas longe, já que a Judéia ocupava um lugar importante na posição estratégica romana no Oriente Próximo.

O país situa-se transversalmente às principais rotas conectando o Egito com a Síria; também havia uma grande população judaica na Mesopotâmia, propensos a comprar briga com seus irmãos da Judéia contra Roma, uma situação que os partos[1], por sua vez, poderiam ter explorado ao invadir províncias romanas. Os romanos tinham sido, convenientemente, aterrorizados pela guerra judaica, e eles eram profundamente gratos a Vespasiano, que tinha tanto posto um fim à guerra civil quanto esmagado os rebeldes judeus.

A ocasião era importante para Vespasiano e seus filhos, já que eles estavam criando uma nova dinastia imperial. Seria obviamente sua vantagem usar a vitória para impressionar o povo de Roma com suas realizações. Moedas foram emitidas comemorando a conquista da Judéia; mas foi o triunfo que forneceu a melhor oportunidade para levar ao lar do povo romano a magnitude de sua vitória. Tivemos sorte em ter um relato detalhado de Josefus, o historiador judeu, que na verdade serviu como general no lado rebelde.

Pelas ruas de Roma, no dia em causa, as legiões vitoriosas desfilaram, com os troféus de sua vitória e diversidade de prisioneiros judeus. Os tesouros do Templo foram dispostos em processão triunfal, o grande Menorah, ou o candelabro de sete braços, o altar da proposição, os trompetes de prata e as cortinas púrpuras que cobriam o Santo dos Santos – uma representação em escultura da cena ainda adorna o Arco de Tito no Fórum.

A procissão também incluía uma pintura mostrando cenas da Guerra que, Josefus nos diz, impressionou as pessoas pela sua apresentação realista. O triunfo culminou com a execução de Simon ben Gioras, um dos líderes principais judeus, enquanto Vespasiano oferecia um sacrifício de ação de graças a Júpiter no grande templo da capital.

Este triunfo deve ter tornado a revolta judaica muito real para o povo de Roma; já que ele foi criado para apresentar-lhes vivamente a gravidade do perigo do qual o novo imperador e seu filho enfrentaram. Entre os espectadores aquele dia havia, sem dúvida, muitos cristãos, que assim viram o espetáculo da ruína de Israel. Mas a visão teria dado a eles outros pensamentos que aqueles que moviam seus vizinhos pagãos. Esta evidência da insubordinação judaica deve ter sido um lembrete perturbador do fato que Jesus, o fundador da fé, também foi executado por insubordinação a Roma.

Eles teriam ficado embaraçosamente alertas que muitos de seus cidadãos camaradas deveriam ver a Cristandade como Tacitus o fez quando escrever: “Cristo, o fundador da seita, foi condenado à pena capital no reino de Tibério, por sentença do procurador Pôncio Pilatos e a superstição perniciosa foi contida por um momento, somente para estourar uma vez mais, não somente na Judéia, o lar da doença, mas na própria capital (isto é, Roma), onde todas as coisas horríveis ou vergonhosas no mundo coletam e encontram discípulos.”

O Evangelho de Marcos reflete a situação dos cristãos romanos nesta época com uma fidelidade surpreendente. O espaço nos permite selecionar apenas uma passagem que, sob análise, indiscutivelmente indica o tempo e o objetivo da composição do Evangelho. No capítulo XII, 13-17, Jesus é representado como sendo questionado a respeito do dever dos judeus pagarem tributos a Roma. Desde que este assunto poderia não ter qualquer significado espiritual para os cristãos de Roma, podemos razoavelmente perguntar por que o autor do Evangelho devotou espaço para ele?

A resposta somente pode ser que o assunto era politicamente importante para os cristãos romanos. A conclusão, por sua vez, levanta a questão óbvia: quando os cristãos em Roma poderiam estar interessados na atitude de Jesus em relação à obrigação dos judeus em pagar tributos? A resposta é igualmente óbvia; quando o assunto tornou-se tão perturbador aos cristãos romanos pelo triunfo flaviano em 71 d.C., como pudemos ver.

Nesta passagem sobre o Dinheiro do Tributo, os líderes judeus são descritos como tentando fazer Jesus a comprometer-se em um assunto que era uma questão dolorosa para os judeus nacionalistas – o não-pagamento do tributo foi uma das causas da revolta em 66. O autor do Evangelho marquiano representa Jesus como endossando a obrigação judaica de pagar tributo a César; mas há motivos para duvidar que esta era realmente a opinião de Jesus. A apresentação marquiana, contudo, era necessária em Roma nesta época; pois isto garantia aos cristãos lá, e quaisquer outros que poderiam ler o Evangelho, que Jesus era leal a Roma e oponente do nacionalismo judaico.

Esta discussão sobre as origens do Evangelho de Marcos foi necessária, no sentido de avaliar o relato do Julgamento de Jesus. Na investigação, este Evangelho é tido como um relato de Jesus, escrito por um membro da comunidade cristã em Roma para encontrar as necessidades de seus companheiros cristãos, em perigo e perplexidade devido à guerra judaica e à publicidade dada a ela pelo triunfo flaviano em Roma.

Este objetivo apologético é evidente em muitos outros modos do que vimos anteriormente. Mas o ponto essencial de preocupação para o autor era a execução romana de Jesus. Mesmo que ele representasse Jesus leal a Roma na questão tributária, continuou o fato inegável que Pôncio Pilatos crucificou Jesus como rebelde. Como este fato desastrado e perturbador deveria ser explicado?

O autor de Marcos enfrenta esta dificuldade transferindo a responsabilidade pela Crucificação do governador romano para os líderes judeus. Ele se prepara para isto ao mostrar que os líderes judeus, variadamente descritos como “os escribas e fariseus” e os “altos sacerdotes”, planejando destruir Jesus desde o início de seu ministério. Assim, somos informados que, após Jesus ter curado no domingo um homem com a mão atrofiada, “os fariseus saíram e imediatamente reuniram-se com os herodianos contra Ele, como destruí-Lo.” (III, 6)

Este tema da intenção maliciosa das autoridades judaicas é gradualmente desenvolvido, enquanto a narrativa continua. Como sua intenção seria implantada é contada em detalhes em uma profecia atribuída ao próprio Jesus: “Preparem-se, iremos a Jerusalém; e o Filho do Homem será entregue aos sacerdotes e escribas, e eles O condenaram à morte, e O entregaram aos gentis; e eles vão zombar Dele, cuspir Nele e O açoitarão, e O matarão; e após três dias Ele ressuscitará.” (X, 33-34)

Após descrever encontros posteriores com Jesus durante os últimos dias em Jerusalém, Marcos relata como os líderes judeus finalmente conseguiram prendê-Lo, graças à traição de um dos discípulos. O fato é significativo; já que ele indica que Jesus era também apoiado fortemente pela multidão para as autoridades judaicas prendê-Lo publicamente. Marcos não diz por qual motivo específico eles então capturaram Jesus; temos apenas suas afirmações iniciais e generalizadas que eles estavam determinados a destruí-Lo desde o início de seu ministério.

Marcos admite que as autoridades judaicas enviaram um grupo altamente armado para capturar Jesus, e que houve alguma resistência armada à sua prisão em Getsêmani. Ele minimiza esta resistência como “um dos que ali estavam, puxando da espada, feriu o servo do sumo sacerdote e cortou-lhe a orelha.” (XIV, 47) Ele não revela, como os evangelistas tardios fizeram, que os discípulos estavam armados e que um deles deu o golpe.

Após sua prisão, de acordo com Marcos, Jesus foi levado, parecendo ser ainda à noite, diante do Sinédrio, o mais alto tribunal judeu. O julgamento que segue é descrito de um modo que levanta um monte de problemas, tanto em relação ao procedimento quanto ao que realmente aconteceu. A afirmação de abertura de Marcos reitera seu tema da intenção má dos líderes judeus: “Agora, os sumo-sacerdotes e o conselho inteiro buscaram testemunho contra Jesus para condená-lo à morte; mas eles não encontraram nenhum. Muitos deram testemunho contra Ele, e nenhum de seus testemunhos concordava entre si.” (XIV, 55-6)

A impressão é a de que as afirmações de Marcos são evidentemente feitas para transmitir que as autoridades judaicas, determinadas a destruir Jesus, usaram o julgamento como um pretexto legal para atingir seu objetivo. O que é dito sobre os “falsos testemunhos”, contudo, indica uma situação totalmente diferente. Assim, se eles tivessem subornado pessoas para dar falsa evidência contra Jesus, os líderes judeus seriam estranhamente meticulosos em rejeitar a evidência quando ela não fosse mutuamente corroborada - certamente eles teriam arranjado as coisas de melhor forma, ou terem sido menos escrupulosos sobre as regras de prova, se tivessem manipulado” o julgamento.

Mas Marcos estava obviamente mais preocupado em estabelecer a responsabilidade dos líderes judeus pela Crucificação do que apresentar uma narrativa logicamente coerente. Isto também parece ser a explicação de sua próxima afirmação. De acordo com ele, a única acusação específica feita contra Jesus foi quando “alguns permaneceram de pé e deram falso testemunho contra Ele, dizendo, ‘Escutamos Ele dizer, destruirei este templo que é feito por mãos e, em três dias, construirei outro, não feito por mãos.’ No entanto, nem mesmo assim seus testemunhos concordaram.” (XIV, 57-9)

Marcos descreve esta acusação como “falso testemunho”, sugerindo assim que não era verdadeira; e esta sugestão é confirmada pela afirmação que a evidência destas testemunhas não concordava entre si. Entretanto, como João II, 9 e Os Atos dos Apóstolos VI, 14 indicam, parece ter sido uma tradição na comunidade cristã primitiva na Judéia que Jesus fizesse algumas elocuções contra o Templo; e o próprio Marcos parece afirmar isso em XIII, 1-2.

Certas sugestões podem ser oferecidas para elucidar o problema aqui. Em primeiro lugar, é improvável que Jesus tenha de fato ameaçado que Ele destruiria o Templo, já que sabemos que Seus discípulos continuaram a orar lá e lembravam dele como a moradia de Deus – esta devoção seria difícil de explicar se Jesus tivesse se pronunciado contra o Templo. Além disso, a acusação é rejeitada por Marcos como falso testemunho. O que parece ser a solução mais provável é que a acusação no julgamento do Sinédrio nasceu do ataque que Jesus fez alguns dias antes contra o sistema de comércio do Templo. (XI, 15-18)

Este sistema era necessário para a realização eficiente do culto do Templo. Os judeus fazendo oferendas com o dinheiro prescrito ao Templo tiveram que mudar a moeda romana, que era ofensiva à Lei sagrada para uma moeda do Templo mais apropriada. Aqueles que vinham oferecer sacrifícios precisavam comprar os animais lá. Estas instalações eram autorizadas pelo sumo-sacerdote. Tais transações, assim como as instalações bancárias oferecidas pelo Templo, forneceram uma renda lucrativa para a aristocracia sacerdotal que administrava o Templo.
Esta aristocracia sacerdotal, além disso, controlava “assuntos locais”, sob o domínio dos romanos: o sumo-sacerdote era apontado pelo procurador. Esta aristocracia pró-romana era naturalmente odiada por judeus patriotas; e, ao atacar sua organização de comércio no Templo, Jesus estava, de fato, atacando seu controle sobre o povo e a religião de Israel. Há pouca dúvida que a ação de Jesus no Templo foi muito mais séria do que é representada em Marcos e outros evangelistas. E há toda a razão para acreditar que isso teria sido uma das principais acusações colocadas contra Ele.

As autoridades judaicas indubitavelmente estavam preocupadas em descobrir qual era a intenção de Jesus ao fazer tal ataque. O relato curioso de Marcos da acusação e do conflito de evidência sugere que as autoridades judaicas eram incapazes de conseguir uma afirmação clara do que Jesus disse sobre Seus objetivos durante a ação no Templo.

De acordo com o relato marquiano do julgamento no Sinédrio, após falhar em conseguir evidência suficiente em relação ao assunto do Templo, o sumo-sacerdote então perguntou a Jesus diretamente se ele afirmava ser o Messias de Israel: “Você é o Cristo (isto é, Messias), o Filho do Bem-Aventurado?” Ao fazer tal pergunta, seguindo-se à acusação do templo, claramente mostra que o sumo-sacerdote ligou a ação revolucionária com Aquele que afirmava ser o Messias. Na crença atual judaica, o Messias conduziria a Ordem Mundial existente a um fim.

Marcos relata Jesus afirmando que Ele era o Messias em termos da atual expectativa apocalíptica: “Eu Sou; e você verá o Filho do Homem assentado à direita do Poder, e vindo sobre as nuvens do céu.” (XIV, 62) O sumo-sacerdote toma esta resposta como blasfêmia e, com a concordância do Sinédrio, condena Jesus à morte.

Agora encontramos um dos grandes problemas do relato marquiano. Em primeiro lugar, apesar de Josefus nos dizer da existência de muitos pretendentes messiânicos durante o período 6 a 70 d.C., não existem registros de qualquer um deles ter sido condenado à morte pelo Sinédrio por fazer tal afirmação. Em segundo lugar, de acordo com a Lei Judaica, a penalidade por blasfêmia era a morte por apedrejamento – a morte de Estevão fornece um exemplo contemporâneo disso (Atos VI).

Mas o Sinédrio não procede em arranjar a execução desta sentença no caso de Jesus. Ao invés disso, Marcos continua a relatar, sem uma palavra de explicação, que pela manhã as autoridades judaicas levaram Jesus diante de Pôncio Pilatos. A acusação escolhida por eles não é mencionada, mas foi obviamente política; assim, Pilatos imediatamente pergunta a Jesus, “Você é o Rei dos Judeus?” (XV, 1-2)

Esta ação dos líderes judeus, e a mudança da acusação, causaram muito debate entre os estudiosos. Parece haver evidência que nesta época o Sinédrio poderia condenar sobre uma acusação capital; mas a sentença tinha que ser confirmada pelo governador romano. Presumivelmente, se o Sinédrio tivesse condenado Jesus à morte por blasfêmia, eles teriam apresentado para Pilatos para confirmação. Se isso tivesse acontecido, Jesus teria sido executado por apedrejamento.

Não foi assim, e que Jesus foi entregue a Pilatos acusado de sedição, indica que as autoridades judaicas estavam preocupadas com o significado político, e não religioso, de Jesus. Esta preocupação é compreensível. O sumo-sacerdote e o Sinédrio eram responsáveis diante do governador romano pelos assuntos judaicos. A entrada triunfal de Jesus em Jerusalém e a ação no Templo haviam claramente perturbado a paz e a ordem do Estado judaico, além de desafiar sua própria posição.

Que os romanos os tornariam responsáveis pela continuação da ameaça que Jesus constituía é atestado por João XI, 48 onde Caifás, o sumo-sacerdote, é relatado afirmando ao Sinédrio: “O que devemos fazer? Este homem dá muitos sinais. Se O deixarmos continuar, então, todos acreditarão Nele, e os romanos virão e destruirão tanto nosso local sagrado quanto nossa nação.”   

Consequentemente, a ação tomada pelos líderes judeus estava de acordo com suas responsabilidades, e ela antecipou a ação romana. Tendo aprisionado Jesus, eles O examinaram sobre Seus objetivos e seguidores, preparatório para conduzi-Lo a Pilatos. A acusação era essencialmente política, apesar de que deve ser lembrado que política e religião estavam inextricavelmente ligados na Judéia nesta época. Lucas dá o relato mais explícito das acusações proferidas contra Jesus pelos líderes judeus: “Acusamos este homem de perverter nossa nação e proibir-nos de pagar tributo a Cesar, e dizer que ele próprio é o Cristo e um Rei.” (XXIII, 2)

Devemos retornar ao relato marquiano, lembrando que ele é a versão mais antiga. Marcos apresenta Pilatos como convencido da inocência de Jesus; “então ele percebeu que era por inveja que os sacerdotes O entregaram a ele.” (XV, 10) Agora, se esta era realmente a opinião de Pilatos, o curso aberto a ele era óbvio. Ele tinha a autoridade e o poder de encerrar o caso. Conhecemos muito a respeito do caráter de Pilatos de Filo de Alexandria e Josefus.

Estes escritores judeus concordam em mostrar Pilatos como um homem linha dura, pronto para usar a força, e não alguém que pudesse ser intimidado pelos líderes judeus e o povo. Consequentemente, se ele estivesse convencido de que Jesus era inocente, ele provavelmente não teria hesitado em frustrar a intenção dos líderes judeus. O que Marcos nos diz de sua conduta subsequente no Julgamento é, portanto, difícil de reconciliar com seu caráter, assim como com a lógica, como podemos ver.

Ao invés de ignorar o caso, Pilatos é descrito com tentando salvar Jesus valendo-se de um costume de outra maneira desconhecido. De acordo com Marcos, era o costume na Páscoa o governador romano libertar um prisioneiro escolhido pela multidão. Não há nenhuma outra evidência de tal costume. Este testemunho negativo é importante, pois Josefus é cuidadoso em registrar todos os privilégios garantidos aos judeus pelos romanos.

Mas isso não é tudo. Tal costume é inerentemente impossível. A Judéia estava fervilhando com uma revolta; seu governo teria sido anualmente frustrado ao ter libertado um prisioneiro notável – de acordo com Marcos, nesta ocasião um rebelde perigoso, provavelmente um zelote[2], foi libertado.

Porém, mesmo que deixemos passar a improbabilidade de tal costume existir, o que Marcos diz do uso de Pilatos dele fica além da crença. Ele descreve este procurador romano linha dura, que estava garantido por uma forte força militar, recorrendo a este costume para salvar um homem que ele julgava inocente. Ao fazer isso, ele convida o populacho de Jerusalém para escolher entre Jesus e um líder rebelde, Barrabás, que assassinou romanos em uma insurreição recente.

Ao dar à multidão tal poder de escolha teria sido o cúmulo da loucura, se Pilatos tivesse pensado nisso como uma forma de salvar Jesus. A decisão do povo era uma decisão antecipada. Liderados pelos altos sacerdotes, eles naturalmente escolheram Barrabás, para eles um herói patriota. Frustrado, Pilatos é representado como hesitantemente perguntando à multidão: “o que devo fazer com o homem que vocês chamam Rei dos Judeus?” (XV, 12)

A imagem de um governador romano consultando uma multidão de judeus sobre o que ele deveria fazer com um homem inocente é ridícula ao extremo. Mas para este extremo o autor do Evangelho de Marcos estava preparado evidentemente para ir, para explicar o problema da execução romana de Jesus. Assim, ele completa sua imagem da responsabilidade judaica pela Crucificação. Os líderes judeus, que estavam determinados a destruir Jesus desde o início de seu ministério, finalmente conseguiram seu intento ao forçar o relutante Pilatos a fazer o seu desejo.

Para concluir esta apresentação da culpa Judaica, Marcos descreve os líderes judeus, em Golgota, zombando o Jesus agonizante, enquanto o centurião romano reconhece Sua divindade quando Ele morre: “Realmente, este homem era o Filho de Deus!” A morte de Jesus é marcada pelo rasgar do véu do Templo, assim simbolizando a obsolescência da religião judaica. (XV, 37-9)
O relato da vida de Jesus e as circunstâncias de sua Crucificação teriam sido bem recebidas pelos cristãos romanos. O embaraço da execução de Jesus por sedição contra Roma foi aliviada pela explicação da responsabilidade judaica. Longe de condenar Jesus à morte, os cristãos romanos agora sabiam que Pilatos na verdade reconheceu Sua inocência e tentou salvá-Lo.

Jesus tinha, além disso, dado prova de sua lealdade a Roma na questão do tributo, e o centurião romano foi o primeiro a perceber Sua divindade. Os líderes judeus que planejaram Sua morte, e o povo judeus que a exigiu, conduziu sua nação à terrível catástrofe de 70 d.C., que foi tão graficamente comemorada nas ruas de Roma em 71 d.C.

A explicação de Marcos da execução de Jesus, motivada pelas necessidades da comunidade cristã em Roma em 71 d.C., exerceram uma influência formativa na subsequente tradição cristã. Os escritores dos Evangelhos de Mateus e Lucas a aceitaram, elaborando sobre ela de acordo com as exigências particulares das comunidades para as quais escreveram. Seus acréscimos foram inspirados pela necessidade de aliar uma crença muito difundida no Império Romano que o Cristianismo teve sua origem e natureza num movimento revolucionário.

Assim, o Evangelho de Mateus expande a menção curta e reticente de Marcos da resistência armada em Getsêmani ao representar Jesus como repreendendo o discípulo que envergou a espada: “Coloque sua espada de volta no lugar; todo aquele que fere pela espada será ferido por ela.” (XXVI, 52)

O autor deste Evangelho estava escrevendo para uma comunidade judaico-cristã, provavelmente em Alexandria, onde havia uma grande necessidade de aplacar o sentimento revolucionário após a queda de Jerusalém em 70 d.C. As palavras, atribuídas a Jesus aqui, tinham um significado mordaz à luz do desastre que se abatera sobre os judeus da Judéia em consequência de seu uso da guerra.

Um acréscimo que Mateus também faz ao relato marquiano do Julgamento de Jesus estava destinado a ter consequências trágicas para o povo judeu. Ao enfatizar a inocência de jesus, Pilatos é representado como repudiando publicamente a responsabilidade em condenar Jesus. Ele lava suas mãos simbolicamente diante do povo, declarando, “Sou inocente do sangue deste homem.”

O povo judeu responde: “Seu sangue está em nós e em nossas crianças!” (XXVII, 24-6). O legado destas palavras foi terrível; elas foram citadas para justificar séculos de perseguição cristã aos judeus. É significativo que somente agora no Concílio do Vaticano houve uma declaração formal exonerando as gerações subsequentes de judeus da responsabilidade pela morte de Cristo.

O historiador, que procura compreender por que os romanos executaram Jesus por sedição, deve primeiro investigar o Evangelho de Marcos, como fizemos aqui. Ele deve avaliar a apresentação apologética de Marcos, discernir o que realmente aconteceu naquela primeira Sexta-feira da Paixão. Tão longe quanto uma avaliação pode ser feita, pareceria que as autoridades judaicas prenderam Jesus porque eles O viam como uma ameaça à paz e o bem-estar do Estado judeu, pelo qual eles eram responsáveis diante dos romanos.

Após interrogar Jesus, eles o conduziram a Pôncio Pilatos, acusando-O de ensinamento e ação subversivas. Pilatos, que provavelmente sabia algo sobre as atividades de Jesus, aceitou a acusação e ordenou sua crucificação. Ele deu ordens que o título, informando a causa de sua condenação, deveria ser colocado na parte superior da cruz: ele dizia: “Este é Jesus, o Rei dos Judeus”.        

Pilatos também ordenou que dois rebeldes fossem crucificados com Jesus. O fato é significativo, já que estes homens haviam tomado parte, sem dúvida, na recente insurreição em Jerusalém (Marcos XV, 7). Jesus sendo crucificado entre dois rebeldes claramente indica que Pilatos pensava Nele como tal.  

Assim, tão longe quanto um historiador pode avaliar a evidência em relação à execução romana de Jesus, parece que Pôncio Pilatos via Jesus como culpado de sedição. Se ele estava certo em seu julgamento é outro assunto.
     
Nota:

[1] Partia foi um império no território do atual Irã fundado pelos partos no século III a.C. A região da Partia ia do nordeste do Irã era conhecido por ser a base política e cultural das dinastias Arsacids por que o Império Arsácida é, então, também conhecido como o Império Parto. O nome deriva do latim antigo persa Partia Parthava ou Partawa, que era a designação que os partos si deu na sua língua.

[2] membro dos zelotes, seita e partido político judaico que desencadeou a revolta da Judeia à época de Tito (imperador romano, regn. 79-81); zelador [Os zelotes constituíam a ala radical dos fariseus e preconizavam Deus como o único dirigente, o soberano da nação judaica, opondo-se à dominação romana.].



Tópico Relacionado:

Fragmento de texto do século II fala em "mulher de Jesus"


sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Otto o Grande é coroado Imperador dos Romanos

Richard Cavendish

History Today, Vol. 62, No. 2, fevereiro de 2012



Nostalgia pelo desaparecido Império Romano no Ocidente durou séculos após Rômulo Augusto, o último imperador, ter sido deposto em 476. Isso eventualmente criou uma das instituições mais peculiares da história. O Sacro Império Romano, como Voltaire ironicamente lembrou, não era nem santo, nem romano e nem um império. Curiosamente, na visão de desenvolvimentos futuros, o papado assumiu a liderança na tentativa de criar uma autoridade secular superior na Europa quando o Papa Leo III coroou Carlos Magno, Rei dos Francos, Imperator Romanorum (Imperador dos Romanos) em Roma em 800.

Após a morte de Carlos Magno em 814, seu império dividiu-se e o último dos chamados imperadores carolíngeos ficou confinado ao norte e centro da Itália. O último deles, Berengar de Friuli, foi assassinado em 924. O título tornou-se mais do que uma realidade após ser transmitido para os reis dos Francos Orientais no que tornou-se mais tarde a Alemanha. O Duque Henrique o Passarinheiro da Saxônia foi eleito rei por outros duques alemães em 919 e deteve os magiares, eslavos e dinamarqueses. Ele nunca exigiu o título imperial, mas seu filho formidável, Otto I, que o sucedeu em 936, era mais do que ambicioso. Ele corou a si mesmo rei em Aachen, que era a capital de Carlos Magno. Parece que ele já tinha ambições imperiais e, de acordo com um documento, os outros duques alemães o serviram em seu banquete de coroação como seus vassalos.

Otto estava agora no meio dos seus vinte anos. Um guerreiro feroz e político sagaz, ele esmagou toda a oposição, incluindo duas rebeliões de seu irmão Henrique, que planejava mata-lo. Otto sagazmente o perdoou e, quando Henrique comportou-se de maneira leal, o colocou como Duque da Baviera. Ele também maquinou para colocar os outros ducados alemães nas mãos de seus próprios parentes. Ele interviu eficazmente na política francesa, subjugou os boêmios e promoveu assentamento alemão de território eslavo do Elba e do Oder. Ele esmagou os magiares da Hungria e pôs fim às suas incursões de pilhagem, segurou os dinamarqueses no norte, tornou os bispos alemães liados leais (os quais foram tornados lordes feudais assim como eclesiásticos) e criou algo parecido com um Estado germânico.

Em 951, neste ínterim, Otto invadiu a Itália, onde um lorde italiano, Berengar de Ivrea, havia tomado o trono e sequestrado Adelaide, a viúva do rei anterior. Ele tentou obriga-la a casar com seu filho, mas ela escapou e implorou por ajuda alemã. Otto atravessou os Alpes, tomou o título de Rei dos Lombardos e casou com Adelaide. Ele permitiu a Berengar continuar governando a Itália, mas como seu vassalo.

Em 961, o Papa João XII (melhor conhecido por seu deboche) precisou desesperadamente de ajuda contra Berengar, que tomou parte dos Estados Papai. Ele apelou a Otto, que prontamente veio ao seu resgate e, em troca, foi coroado Imperador dos Romanos pelo Papa. Ele então derrotou e aprisionou Berengar, mas o Papa logo ficou desconfortável pelo domínio de Otto e começou a tramar contra ele. Otto retornou a Roma em 963 e conseguiu que o Papa João fosse deposto por um sínodo obediente de bispos que ele reuniu para o caso. Ele então o substituiu por um romano de sua escolha como Papa Leo VIII.

Otto interveio em Roma novamente no ano seguinte quando uma rebelião surgiu contra o Papa Leo e um Papa alternativo foi escolhido. O imperador colocou um fim naquele estado de coisas e quando Leo morreu em 965, ele voltou a Roma novamente para indicar outro candidato de sua escolha no trono papal como Papa João XIII. Quando houve uma revolta contra ele por isso, Otto a suprimiu. Ele tinha tomado controle do papado de um modo que o Papa João XII não tinha certamente desejado.

Otto continuou a interferir no território do Império Romano do Oriente na Itália meridional de tal forma que em 972 os Bizantinos concluíram um tratado com ele no qual eles formalmente reconheciam seu próprio título imperial. Eles também outorgaram uma princesa bizantina, Theofano, a ele como noiva para seu filho e seu herdeiro, outro Otto.

A palavra “Sacro” não foi usada por outros dois séculos, mas Otto o Grande foi reconhecido pelos historiadores, com efeito, como o primeiro dos Imperadores Romanos Sacros e o mais poderoso governante europeu de sua época. Ele morreu em 973 e foi sucedido por seu único filho Otto II. O fato de que Otto II não teve irmãos sobreviventes como rivais foi uma vantagem considerável e a linha ottoniana de imperadores continuou até 1024. O Imperio Romano Ocidental renascido tornou-se Sacro no século XII e, a partir dos anos 1500, tornou-se o Sacro Império Romano da Nação Alemã. O nome permaneceu até 1806, mil anos após Carlos Magno.



Tópicos Relacionados

O Fim do Sacro Império Romano


O legado de Carlos Magno, 1.200 anos após sua morte