quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Guerra Mexicano-Americana: a águia estende suas asas

Rodrigo Casarin



Sobre uma colina com mais de 60 m de altura, o forte de Chapultepec abrigava a Academia Militar e era um dos pontos mais importantes para que a Cidade do México, a capital do país, permanecesse intocada. As defesas mexicanas já estavam bastante enfraquecidas, restavam algumas centenas de homens - muitos deles jovens cadetes - para zelar por aquele ponto estratégico. Os ataques norte- americanos começaram na madrugada. Ainda que tenha havido uma breve trégua, retomaram com força antes mesmo do sol raiar. A resistência dos defensores causou diversas baixas nos invasores, elevou alguns combatentes ao status de heróis da nação e deixou uma sensação de vitória moral nos mexicanos. Mas não foi suficiente para que os ianques deixassem o seu objetivo de lado. Restava aos sobreviventes debandarem para a cidade. Ao amanhecer, o forte estava tomado pelo Exército estrangeiro, que teria como próximo alvo a capital - faltava apenas invadi-la e tomá-la para, definitivamente, vencerem a guerra.

Estado rebelde

Na campanha até ali, os norte-americanos haviam triunfado em duras batalhas. Mas a tomada da Cidade do México talvez tenha sido mais fácil do que poderiam imaginar. Ainda que necessitassem enfrentar alguns focos pontuais de rebeldes e as adversidades provocadas pela própria população, em pouco tempo tirariam a bandeira mexicana que tremulava sobre o Palácio Nacional e içariam a dos Estados Unidos, definindo, simbolicamente, vencedores e vencidos.

Era o dia 14 de setembro quando os invasores chegaram à capital. A tomada da cidade foi o último capítulo belicoso de uma guerra iniciada em 1846, resultado de um conflito sobre o território do Texas que se juntou à necessidade de expansão dos Estados Unidos. O México, que não queria perder um estado rebelde, acabou perdendo muito mais do que isso.

Boa parte da população texana estava insatisfeita com as leis mexicanas. Por isso batalharam por sua independência e, em seguida, pediram anexação aos Estados Unidos, que aceitou o pedido. "Os Estados Unidos declararam guerra ao México dez anos depois da independência do Texas, num projeto mais amplo, a expansão para o oeste, no qual caravanas avançavam levando fortes militares", diz Maria Ligia Prado, doutora em História Social pela USP e especialista em América Latina. A desavença entre México e Texas caiu como uma luva na necessidade de expansão territorial dos EUA. Serviu como catalisador da nação e impulsionou, entre outras coisas, a expansão territorial rumo ao oeste e ao sul, numa série de conquistas de novos territórios antes pertencentes a franceses, ingleses, russos e espanhóis.

Metade para mim, metade para você

Antes da batalha de Chapultepec e o domínio da Cidade do México, outros episódios já haviam ocorrido. Para invadir o país vizinho, o Exército dos Estados Unidos se dividiu em três frentes, duas que rumaram para o sul do Texas e outra que foi para o Novo México e, em seguida, para a Califórnia. Vitórias em Palo Alto e Resaca de la Palma foram decisivas para que a ofensiva se consolidasse, seguindo para Monterrey - palco de uma batalha de três dias que causou muitos danos aos dois Exércitos. Apesar dos triunfos, os norte-americanos perceberam que os mexicanos, liderados pelo general António Lopez de Santa Anna, não se entregariam. Então, para que conseguissem alcançar a capital, utilizaram também a Marinha. Após uma série de conflitos em Vera Cruz, Cerro Gordo, Contretas e Molino del Rey, finalmente chegaram a Chapultepec.

Mas se o principal objetivo dos EUA era a ampliação do território e seu Exército conseguiu chegar até a Cidade do México, por que não ficaram com todo o bolo? "Quando você vence a guerra, precisa tomar a capital do país vencido, isso é uma regra básica. Contudo, anexar o país inteiro significaria também provocar uma resistência muito grande por lá. No norte do México, a ocupação sempre foi menor, é muito deserto. A própria população do Texas era muito pequena. Desde o período colonial, a maior parte das pessoas estava no centro e no sul do país, e não aceitaria que o EUA tomassem a capital, haveria ainda mais resistência", afirma a professora Maria Ligia.

Para colocar fim à guerra - iniciada pelo México, não custa lembrar -, autoridades mexicanas e norte-americanas assinaram, em fevereiro de 1848, o Tratado de Guadalupe-Hidalgo, no qual o país latino cedia aos invasores, além do Texas, áreas que atualmente correspondem aos estados do Novo México, Califórnia, Arizona, Colorado, Nevada, Utah e Wyoming, além de pequenas partes de Kansas e Oklahoma - um espaço de aproximadamente 2,4 milhões de km2, que corresponde à metade do então território mexicano. O Rio Grande serviu (e ainda serve) como referência para a fronteira. Em troca, o México recebeu uma indenização de 15 milhões de dólares.

O tratado foi criticado por expansionistas norte-americanos, que o consideraram condescendente com os derrotados - queriam todo o território onde o Exército invasor fincou bandeira. Mas o acordo foi atacado até por autoridades dos EUA, responsáveis pelas negociações de paz, que julgaram tamanha perda territorial uma grande humilhação aos mexicanos, provocando neles um grave sentimento de frustração. Seja como for, muito do que é hoje território norte-americano foi descoberto, ocupado e colonizado por descendentes de espanhóis e mexicanos.


A república do Texas

A história dos problemas no território texano começou quando a região ainda pertencia à coroa espanhola - como boa parte do atual sul dos Estados Unidos, por isso nomes como Flórida, Los Angeles e Santa Bárbara. O governo do México concedeu licença para que 300 famílias de colonos norte-americanos se estabelecessem no lugar. Em 1821, o México conquistou sua independência da Espanha e, dois anos depois, o Congresso votou pela abolição da escravatura, algo que ia contra a vontade dos estrangeiros estabelecidos no Texas. Apesar do decreto, os texanos continuavam governando a região de forma praticamente autônoma e independente. Isso até o general Santa Anna instituir uma Constituição que centralizava o poder, acabando com leis locais. Os colonos não desejavam ser submissos ao governo mexicano e rebeliões começaram a ocorrer, bem como negociações entre o México e os EUA para discutir as proibições. Tensões e dificuldades surgiram, até que parte do Exército mexicano foi deslocada para a região e entrou em conflito com os texanos. O México vivia um momento delicado, no qual o Estado nacional procurava estabelecer sua organização política, um período crítico após a guerra pela independência que durou mais de 10 anos e levou à destruição da economia local. Os texanos, apoiados pelos EUA, conseguiram mais do que derrotar os militares inimigos: transformaram o general Santa Anna em refém. Em março de 1836, o Texas proclamou sua emancipação, alegando romper com a tirania militar, a intolerância religiosa e a falta de escolas na região. A partir da declaração, os texanos elegeram seu próprio presidente, fizeram uma nova Constituição - na qual a escravidão era legal - e obtiveram o reconhecimento dos EUA, país para o qual fariam uma solicitação de anexação em 1845.

Os pequenos heróis

Durante a batalha de Chapultepec, seis cadetes militares mexicanos, com idade entre 13 e 19 anos - o que dá uma ideia de como era a formação do Exército do país - recusaram a ordem de recuo dada por seu general e procuraram defender o lugar que ocupavam até a morte. Esses jovens resistentes passaram a ser conhecidos como "Los niños héroes" (meninos heróis) e se tornaram uma espécie de mito patriótico. A versão mais romântica da História diz que o último deles, ao perceber que o fim era inevitável, enrolou-se em uma bandeira do país e pulou do alto do forte, evitando que o pavilhão caísse em mãos inimigas.



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segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Batalha de Ácio: o fim da república romana

Daniel Leb Sasaki



Alexandria calou-se em silêncio tumular. Depois, foi possível ouvir da ilha de Faros – onde brilhava o famoso Farol – aos corredores da Biblioteca boatos de que o deus Dionísio abandonara os governantes da cidade. Cleópatra e Marco Antônio banquetearam com fartura pela última vez. Mas o fim deles estava próximo. Foi assim, melancolicamente, que os contemporâneos do casal descreveram o trágico desfecho da Batalha de Ácio, em 31 a.C., e a espera pela inevitável invasão romana ao Egito.

Naquela época, o poderio de Roma estendia-se por quase todo o Mediterrâneo. O Egito não pontificava mais como a potência de outrora, embora ainda fosse a nação mais rica da região. Era governado por Cleópatra, filha do faraó Ptolomeu XII. Até então, o que mantivera o Egito livre da dominação romana foi a diplomacia. Entretanto, no conturbado reinado do pai de Cleópatra, a tática da neutralidade gradualmente foi perdendo a eficácia e acabou substituída pelo suborno. Expulso do Egito em 58 a.C., após uma revolta na capital, o faraó só retornou ao poder três anos depois, protegido por legiões de Júlio César. Abrir os cofres para o general romano pareceu uma boa idéia, mas deixou o protetorado à beira da falência. A dívida era tão grande que o banqueiro Rabírio veio de Roma e assumiu o cargo de ministro das Finanças em Alexandria para garantir o pagamento. “Foi durante o reinado do pai de Cleópatra que o Egito perdeu, de uma vez por todas, a soberania”, diz a egiptóloga brasileira Márcia Severina Vasques, especializada no período.

A caminho da guerra

Em 34 a.C., o Senado romano indignou-se ao descobrir que, por meio das “Doações de Alexandria”, o general Marco Antônio, governador da porção oriental dos domínios de Roma, entregara de bandeja a Cleópatra, então sua consorte, e aos dois filhos que teve com ela, o correspondente a um terço do território romano. O “presente” incluía a Líbia, a Fenícia, a Armênia, a ilha de Chipre e até territórios ainda não conquistados por Roma. E não ficou só nisso. Em evento na capital do Egito, Marco Antônio declarou publicamente que Ptolomeu Cesário, filho primogênito de Cleópatra com Júlio César (assassinado em 44 a.C. por um grupo de senadores), era o herdeiro legítimo do finado general. E mais: Marco Antônio divorciou-se da esposa oficial, Otávia, e uniu-se à rainha do Nilo segundo as tradições orientais, beneficiando-a em seu testamento.

Ultrajado, o general Otaviano – irmão de Otávia, sobrinho de Júlio César e comandante da Roma Ocidental – respondeu à provocação com uma agressiva campanha. No Senado, explorou o fato de terras conquistadas pelos romanos terem sido entregues a uma mulher, o que era uma “afronta imperdoável”. Segundo o historiador Dio Cássio (155-229 d.C.), os senadores, temerosos de que Marco Antônio, se vencesse a disputa, transferiria o poder para Alexandria, destituíram-no de suas atribuições. Naquele momento, cunhou-se a imagem depreciativa da soberana egípcia. “Essa visão distorcida do Oriente, terra de luxúria e lascívia, proporcionou uma visão de Cleópatra como a rainha feiticeira, ambiciosa e sedutora, uma visão negativa para a cultura tradicional romana, que se pautava pela sobriedade e moralismo de caráter”, diz Márcia.

A guerra civil era inevitável e dela só poderia sair um vencedor. Assim, ambos os lados, que dispunham de fortes alianças em diversos estados, mobilizaram recursos que tornariam aquele o maior conflito bélico até então registrado. Otaviano contava com o apoio da Gália, da Espanha, da Sardenha, do norte da África e das ilhas no oeste do Mediterrâneo, entre outros aliados. Todo esse apoio traduzia-se em pelo menos 400 navios de guerra e cerca de 80 mil homens. Por sua vez, Marco Antônio tinha as forças do Egito, da Ásia continental, da Grécia, da Macedônia, de partes da Trácia, de Cirenaica, de todas as ilhas ao leste e da maior parte dos reinos e protetorados que faziam fronteira com a porção oriental de Roma. Eram 500 navios de batalha, 70 mil soldados de infantaria e 12 mil cavaleiros.

Deserção e isolamento

Os dois exércitos encontraram-se na costa oeste de Épiro, ao norte da Grécia. Em seguida, montaram acampamento em Ácio, onde permaneceram durante quase quatro meses. O primeiro sinal de ataque só aconteceu quando Agripa, general de Otaviano com larga experiência em conflitos navais, capturou as ilhas próximas. Segundo relatos do historiador Plutarco (46-127 d.C.), esse controle interrompeu o fluxo de provisões e deixou o exército de Marco Antônio isolado. Para agravar a situação, ocorreu uma epidemia de malária e baixas por causa do calor escaldante. Mas o pior ainda estava por vir: tornaram-se freqüentes as deserções para o lado de Otaviano. Primeiro, foram Titius e Planco, dois dos melhores generais de Marco Antônio, que protestavam contra a influência de Cleópatra no planejamento da campanha. Depois, foi a vez de Ahenobarbus, dos reis Amyntas e Deiotarus, e dos soberanos da Trácia e Paphlagonia. Por fim, Délio, um oficial da coalizão, passou a apoiar Otaviano, levando com ele os planos de guerra do antigo comandante.

Rejeitando um apelo de seu general Canídio, que comandava as forças em terra, Marco Antônio insistiu que a guerra fosse resolvida por mar. Em 2 de setembro de 31 a.C., sua esquadra moveu-se em direção à de Otaviano. Marco Antônio postou-se na asa direita, com seu co-comandante Publicola. Manteve o associado Coelius à esquerda, e Marco Otávio e Marco Insteius no centro. Do lado oposto, estava o adversário Agripa, que dobrou a linha para que ele não conseguisse atacá-lo de flanco. A estratégia de Marco Antônio era tirar proveito da maior tonelagem de seus navios, carregá-los e bombardear o inimigo. Mas os barcos de Agripa eram mais leves e ágeis e conseguiram se safar. Após uma manobra de Agripa, Publicola moveu-se em perseguição, deixando o fronte central – lento e menos treinado – disperso e confuso, incapaz de manter a formação original. Agripa aproveitou a chance e, em vez de abalroar os inimigos, colocou suas embarcações ao lado das de Marco Antônio, para invadi-las pelos lados. A luta, a partir daí, deu-se homem a homem, enquanto arqueiros e atiradores disparavam de longe. Otaviano, que observava a ação a distância, enviou incendiários.

Embora a batalha naval não estivesse decidida, para a surpresa de todos, a nau capitânea de Cleópatra subitamente içou as velas, aproveitou-se da confusão para romper o bloqueio e retirou-se do conflito, partindo com cerca de 60 navios em direção ao Egito. Segundo relatos da época, Marco Antônio, perplexo, tomou um barco menor e foi atrás da rainha, para o desespero de seus soldados, que ficaram abandonados à própria sorte, sem saber o que fazer em plena batalha.

As razões para a decisão de Cleópatra de levantar as velas – e a subseqüente reação de Marco Antônio – ainda hoje dividem os historiadores. Alguns dizem que a rainha fugiu precipitadamente. “Como mulher e como egípcia, ela se torturava com a agonia do longo suspense”, afirma Dio. Mas estudos recentes sugerem que o gesto fora previamente calculado. Ao chegar a Ácio, a frota real trazia consigo suas velas, algo incomum em guerras da Antigüidade. A saída estratégica já devia estar programada. Pesquisadores modernos afirmam que a intenção de Cleópatra era que toda a frota a seguisse, o que não teria acontecido por razões climáticas.

O fim de uma era

A Batalha de Ácio terminou em desastre para Marco Antônio. As baixas chegaram a 5 mil soldados e quase 300 navios foram capturados. Ao aportar em Alexandria, Marco Antônio caiu em depressão. Cleópatra, que ainda não considerava a guerra perdida, reuniu as embarcações remanescentes e providenciou que fossem transportadas por terra até o Mar Vermelho. Sua idéia era escapar para a Índia e, com o tesouro egípcio, fundar um novo reino. Entretanto, no meio do caminho, tribos do deserto, antes subjugadas pelos Ptolomeus, queimaram a frota, e a rainha teve de desistir do plano.

Não havia escapatória. Ao saber que Otaviano rumava para capturá-la em Alexandria, Cleópatra despachou o filho Cesário para a cidade de Coptos, com ordens para que o tutor do menino o retirasse do país em segurança. Sua cavalaria, unida a legiões de Marco Antônio, a princípio conseguiu conter o avanço das forças inimigas. Mas o general, acreditando nos boatos de que a parceira estava morta, decidiu se suicidar. Foi nesse momento que Cleópatra finalmente percebeu que tudo estava perdido. Para não se submeter à humilhação de ser levada acorrentada para Roma, ela também preferiu a morte, deixando-se picar por uma serpente venenosa – um dos suicídios mais célebres de todos os tempos.

A Batalha de Ácio teve importante significado para a História. Foi o conflito que encerrou o período de 3 mil anos de reinado dos faraós no Egito, que depois disso se transformou em província romana. Ali acabou a independência do país que fora unificado por Menés em 3100 a.C. – liberdade que só seria reconquistada pelo presidente Gamal Abdel Nasser, em 1952 da nossa era. Em Ácio, também morreu a própria República romana. Após o grande triunfo, Otaviano ampliou seus poderes. Mudou de nome para César Augusto e tornou-se o único senhor de Roma e seu primeiro imperador. Em sua homenagem, o sexto mês do calendário romano, antes denominado sextilis, foi rebatizado de augustus – agosto, no calendário gregoriano.

sábado, 14 de janeiro de 2017

Alea jacta est: a Guerra Civil Romana

Wagner Gutierrez Barreira


O Rubicão é um pequeno rio de águas vermelhas (seu nome vem de rubi). Tem 80 km, nasce nos Montes Apeninos e deságua no Mar Adriático. O direito romano estabeleceu que ele marcava o limite em que os generais poderiam chegar com suas tropas – a fronteira entre a Gália Cisalpina e a Itália. Os 250 km de distância até Roma tinham de ser percorridos sem as legiões. Era uma forma de proteger o Senado e a República de um golpe. Nas primeiras horas do dia 10 de janeiro de 49 a.C., o grande general Júlio César, conquistador da Gália, estava ao norte do Rubicão. Sabia que atravessá-lo seria uma declaração de guerra. Que o Senado romano o trataria como inimigo público.

Cercado por um pequeno grupo de colaboradores, César hesitou. De acordo com o historiador Plutarco, ele estava “muito perturbado com a grandeza e a audácia de seu empreendimento”. Discutiu com seus conselheiros, pesou os prós e os contras. “Ainda há tempo de voltar atrás”, disse ao amigo Asínio Polião. De repente, narra outro historiador romano, Suetônio, um homem alto e bonito apareceu, sentado a pouca distância do grupo, e começou a tocar sua flauta. 

Logo, soldados e pastores o cercaram. O homem, então, tomou a trombeta de um dos soldados e a tocou forte, alto, enquanto caminhava até o outro lado da ponte. César convocou seu grupo e explicou o que tinham testemunhado. “Vamos para onde nos chamam a voz dos deuses e a injustiça de nossos inimigos”, disse ele, segundo Suetônio, e, em um gesto que Plutarco classificou como “um abandono dos conselhos da razão”, cruzaram o Rubicão. Para resumir, a frase do general que entrou para a história: Alea jacta est (“a sorte está lançada” ou “os dados estão lançados”). Foi o primeiro ato da guerra civil que mudou o destino do maior império do planeta na época, jogado em uma batalha que se espalhou pelo Mediterrâneo, da Espanha ao Egito – e mudou a face do mundo ocidental.


Amor e ódio

Do outro lado do Rubicão, Júlio César enfrentaria o popular general Cneu Pompeu. A vida dos dois próceres de Roma era uma relação literal de amor e ódio. Pompeu fora casado com a filha de César, Júlia, que morreu durante o parto do primeiro filho do casal. A criança também não sobreviveu. Dez anos antes, César e Pompeu juntaram-se ao homem mais rico de Roma, Marco Licínio Crasso, na formação de um triunvirato informal que pretendia dividir as possessões romanas. 

O erro de Crasso foi imaginar que seu dinheiro seria suficiente para equilibrar a balança de poder. “César e Pompeu eram vistos como os generais mais hábeis e mais ilustres, não apenas entre os romanos como também entre todos os homens de seu tempo”, escreveu sobre a dupla o historiador Díon Cássio. Pompeu era um general muito popular por causa da conquista da Hispânia, da guerra que moveu contra os piratas no Mediterrâneo e por acabar com a revolta do gladiador Espártaco.

César era adorado pela plebe e por seus soldados. O trio usou o poder em Roma em benefício próprio. César, que era o cônsul na ocasião, criou leis que ajudaram os negócios de Crasso e garantiram terras para os soldados de Pompeu – que, em troca, conseguiu apoio político para que César conquistasse e governasse a rica Gália. Mas Crasso morreu em campanha na Ásia, e as diferenças entre Pompeu, que defendia o Senado, e César, que o esnobava, começaram a crescer. 

Até que os políticos exigiram que o general deixasse suas tropas e voltasse para Roma. Cícero, o grande tribuno, inimigo de César, previu o risco que ameaçava as instituições republicanas. “Hoje, é a ambição de dois homens que põe tudo em perigo”, escreveu ao amigo Ático. “É da paz que precisamos. Sou dos que pensam que mais vale aceitar tudo o que César pede do que apelar às armas.” Era tarde demais.
“Se César se puser em marcha, basta que eu bata o pé no chão para encher de legiões a Itália”, disse Pompeu em pleno Senado. Era uma bravata. À medida que César avançava rumo à Roma com suas tropas, mais Pompeu se enchia de preocupação. “Bate então com o pé no chão”, zombou o senador Marco Favônio. O plano de Pompeu tinha alguma sensatez, mas mostrou-se infeliz. Ele pretendia ir para Brindisi, no Adriático, e de lá partir para Dirráquio, a atual cidade de Durrës, na Albânia, para organizar seus partidários na Grécia e na Ásia. 

Com ele, embarcaram 200 senadores. “A tática de Pompeu é uma das mais claras e das mais engenhosas: recrutar no Oriente numerosas tropas; fazer o bloqueio da Itália com sua frota, a fim de impedir o abastecimento da península e de Roma; provocar a fome; e apresentar-se como um salvador ao qual o conjunto dos romanos se aliariam”, escreveu Joël Schmidt em Júlio César. Não funcionou. O plano faria sentido numa guerra tradicional. Mas quem passaria fome se ele funcionasse seria seu próprio povo. Que, logicamente, começou a se bandear para o lado de César. 

No dia 1º de abril de 49 a.C., Júlio César estava no Campo de Marte, nas aforas de Roma, para encontrar os poucos senadores que permaneceram na cidade. Era uma forma de mostrar que respeitava a legalidade, ao não entrar na capital com suas tropas. Ali mesmo foi aclamado pela população. Mandou seus aliados para a Sardenha, Sicília e África e partiu para a Península Ibérica, o território fiel a Pompeu. O temor de César era que, a partir da Hispânia, os inimigos levassem a rebelião à Gália, que ele pacificara pouco antes de a guerra civil eclodir. “Vou combater um exército sem general, para em seguida combater um general sem exército”, afirmou. Depois de um duro cerco à Marselha, César venceu a guerra na Hispânia e voltou para Roma em outubro.

Poder absoluto

Em Roma, César foi aclamado ditador – um cargo que existia para momentos de crise, com duração máxima de seis meses. “O que Júlio César pretendia era tornar-se rei, segundo nos dizem autores como Plutarco”, afirma Pedro Paulo Funari, professor da Unicamp e coordenador do Centro de Estudos Avançados da universidade. “Uma realeza seria algo muito diferente. O modelo romano seria outro, ao estilo de Alexandre, o Grande, e seus sucessores.”

Passados seis meses, César renunciou ao posto de ditador, mas conservou todas as suas prerrogativas – o Senado estava esfacelado e a administração pública de Roma funcionava precariamente por falta de gente. Enquanto isso, Pompeu, em Tessalônica, preparava suas tropas. “Sua frota podia ser considerada invencível, com 500 navios. Sua cavalaria era a flor de Roma e da Itália: sete mil cavaleiros”, escreveu Plutarco em Pompeu. “A guerra travou-se em locais tão distantes quanto a Espanha, o Egito e o norte da África, onde quer que o Senado encontrasse legiões e generais, com destaque para Pompeu, dispostos a resistir à rebelião de César”, descreveu o historiador inglês John Keegan em Uma História da Guerra.

A despeito da grande frota de Pompeu, César cruzou o Adriático sem ser incomodado. Enfim, em abril de 48 a.C., os dois exércitos se enfrentaram. Os revoltosos cercaram as forças do Senado em Dirráquio, mas a batalha não teve vencedores. Os soldados de Pompeu, esfomeados, escaparam da cidade. Os dois lados cantaram vitória, mas o confronto decisivo ocorreria um mês depois, em Farsália. 

César tinha 22 mil legionários, 1,8 mil homens na cavalaria e cerca de 10 mil aliados. As forças de Pompeu contavam com 60 mil legionários e entre 5 mil e 8 mil homens na cavalaria. Apesar da desproporção, a vitória coube a César. Ele conteve e depois massacrou a cavalaria de Pompeu, que deveria ser o fator decisivo do combate. Depois, tratou de massacrar o inimigo. Metade das forças de Pompeu foi morta. E o velho general fugiu vestido em trajes civis. 

Daí em diante, a guerra se transformou em perseguição implacável. “César foi um grande estrategista. Basta dizer que lutou na Gália por oito anos, uma eternidade hoje, mas muito mais na Antiguidade, quando as pessoas morriam cedo”, afirma Funari. “Como general, ele arriscou muito mais a vida do que qualquer comandante atual”, diz o professor da Unicamp, chamando a atenção para o fato de César ser um líder popular entre os soldados por não temer nenhuma tarefa, mesmo as braçais.

Pompeu, sempre com as tropas de César em seu encalço, passou por Mitilene, na ilha grega de Lesbos, vagou pela Ásia Menor até chegar a Chipre, de onde embarcou para Alexandria. Ali, foi morto por seus próprios soldados, por ordem do rei Ptolomeu, que temia a fúria de César. A guerra prosseguiu por mais algum tempo, até que os filhos de Pompeu foram finalmente derrotados na Hispânia, na Batalha de Munda. Roma agora pertencia a César.

Populares e optimates

Os partidos na guerra civil romana

O último rei romano foi Tarquínio, o Soberbo, que morreu em 509 a.C. As famílias mais antigas da cidade fundaram então a República para evitar que novos tiranos pudessem governar Roma. O Senado era uma oligarquia conduzida por patrícios, que no século 2 a.C., com o crescimento de Roma, não conseguia mais dar conta do sectarismo da população. Havia uma complexa sociedade militar, novos povos que eram incorporados ao império e, principalmente, a plebe – a população que deixava o campo para ocupar a cidade, e que não parava de crescer. Com o tempo muitos plebeus tornaram-se ricos, especialmente por causa do comércio e do exército. E passaram a exigir participação nos rumos da política romana. Alguns patrícios, como os irmãos Tibério e Caio Graco, passaram a apoiar as demandas dos plebeus, especialmente a votação de leis agrárias. Foram considerados inimigos do povo e mortos por causa disso no final do século 2 a.C. Em 107 a.C., o general Caio Mário, tio de Júlio César, tornou-se líder dos populares, o partido da plebe, que se opunha aos optimates, que defendiam os patrícios. Ele foi o protagonista da primeira guerra civil, em oposição a Sila.

Sila invadiu Roma em 83 a.C. e eliminou todos os seus adversários. Mas a divisão entre populares e optimates, plebe e patrícios permaneceu no coração da cidade até a ascensão de César. “Ele fazia parte dos populares por razões familiares, bem antes das guerras civis”, afirma Pedro Paulo Funari, da Unicamp. Ainda assim, o projeto político de César ia além das divisões entre os dois partidos. Ele buscava seu próprio espaço: o poder absoluto. Até ser assassinado no Senado em 44 a.C., manteve o controle do poder romano. E sua morte, mais tarde vingada por Marco Antonio, foi mais uma pá de cal na República. O primeiro imperador romano, Caio Júlio César Augusto, que chegou ao poder em 27 a.C., era sobrinho-neto de César.


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