sexta-feira, 15 de maio de 2015

[POL] O Último Führer: Karl Dönitz e o Fim do Terceiro Reich

Richard Overy

History Today, Vol. 65, Nº 5, maio 2015


O holofote histórico sobre Hitler como o Führer indiscutível do Terceiro Reich lançou uma sombra sobre o começo do fim do regime, quando Hitler não era o chefe do Estado. Entre janeiro de 1933 e agosto de 1934, e novamente nas primeiras semanas de maio de 1945, a presidência alemã foi mantida por duas figuras militares respeitadas. A primeira foi o ancião marechal de campo Paul Von Hindenburg, cuja morte em agosto de 1934 abriu o caminho para Hitler criar o cargo sem precedentes unindo as figuras do presidente e do chanceler sob a simples palavra “Führer”, ou Líder; a segunda foi o chefe da Marinha alemã, o Almirante Karl Dönitz, que foi escolhido por Hitler para ser seu sucessor como presidente após o suicídio do ditador em 30 de abril de 1945.

Para os historiadores, o regime de Dönitz, que durou três semanas em maio, incluindo duas semanas seguindo a rendição alemã, é pouco mais do que uma nota de rodapé bizarra no final do terceiro Reich. Mesmo assim, a existência do que os diplomatas britânicos chamaram de o “quase governo”, estabelecido na cidade costeira meridional de Flensburg, marcou um passo importante no rompimento da aliança da guerra entre as democracias ocidentais e a União Soviética de Stalin bem antes de a Guerra Fria tornar-se uma realidade histórica. A luta entre os aliados em relação ao status e destino do regime de Dönitz refletiu diferenças importantes no modo como os dois lados viam o modo apropriado para tratar a derrotada Alemanha.

Os argumentos balançavam primeiramente na questão de como a rendição alemã deveria ser aceita. O objetivo em vista era a rendição incondicional de todas as forças alemãs, mas os exércitos alemães na Itália, então no norte da Alemanha e Escandinávia renderam-se entre 2 e 4 de maio de 1945 para os comandantes aliados locais, americanos e britânicos. Suspeitas soviéticas foram erguidas quando Dönitz decidiu enviar o chefe de operações do Comando Supremo Alemão (Oberkommando der Wehrmacht, OKW), general Alfred Jodl, para o quartel general supremo do general Dwight Eisenhower, localizado na cidade francesa de Reims. Ele foi enviado como um representante do que o porta-voz em Flensburg continuou chamando de “novo governo”. O vice-chefe do Estafe do Exército Vermelho, Marechal Alexei Antonov, disse aos representantes britânicos e americanos em Moscou, em 6 de maio de 1945, que para o regime soviético, o governo de Dönitz “na verdade não existe” e não deveria ser referido como governo. Antonov deixou claro que o lado soviético aceitaria somente a rendição incondicional do Alto Comando militar alemão e lembrou aos aliados ocidentais que círculos em Moscou suspeitavam fortemente agora de que a Grã-Bretanha e a América estavam negociando um acordo em separado no sentido de permitir que os alemães pudessem manter a luta no leste.

As suspeitas soviéticas são fáceis de entender. Não somente o grupo de exército do Marechal de Campo Montgomery falhou em ocupar Flensburg e prender Dönitz e seus associados, muitos dos quais estavam na lista de criminosos de guerra dos aliados, mas quando Jodl chegou em Reims, um documento de rendição foi assinado logo pela manhã de 7 de maio sem Stalin ser consultado. Sob a insistência furiosa do líder soviético, o Ocidente concordou em agendar uma segunda cerimônia de rendição em Berlim no dia seguinte no qual o Marechal Wilhelm Keitel, chefe do OKW, assinou em nome das forças alemãs. O lado soviético lembrou a cerimônia de Berlim como o ato formal e legítimo de “rendição incondicional”. Nada disso, contudo, apaziguou a ansiedade soviética de que o Ocidente trataria o regime de Dönitz como o governo legalmente constituído da Alemanha e pudesse realizar algum tipo de acordo com o antigo inimigo.

Na União Soviética, a imprensa promoveu uma campanha, quase certamente aprovada por Stalin, mais ou menos acusando o Ocidente de conluio com o Fascismo. O jornal Frota Vermelha Soviética escreveu que uma palavra “vergonhosa e inglória” havia agora entrado nos anais da guerra: “Esta palavra é Flensburg e ela mancha a vitória que tivemos!” Nos dias imediatamente após a rendição nenhum esforço foi feito para derrubar o governo de Dönitz e nenhuma decisão foi tomada sobre seu status constitucional ou legal. Desde que Flensburg estava na zona britânica de ocupação, a decisão final cabia a Churchill e ao Gabinete de Guerra Britãnico. O regime de Flensburg anunciou que o exército britânico concordou em permitir que o Marechal Ernst Busch assumisse o comando da província setentrional de Schleswig-Holstein em 12 de maio para manter a ordem e o suprimento de bens essenciais à população: um ato que significou parcialmente o reconhecimento da autoridade de Dönitz. Em Flensburg, milhares de soldados alemães foram reunidos, ainda em uniforme, enquanto que soldados da SS faziam a segurança dos principais ministros. Somente uma semana antes, Busch clamou a Dönitz para lutar pela defesa de Hamburgo ao invés de render a cidade.

A maior resistência em dissolver o novo regime e prender seus membros veio de Churchill. Orme Sargent, Subsecretário do Departamento do Exterior, já estava preocupado que os soviéticos poderiam, em retaliação, instalar seu próprio regime fantoche em Berlim, como eles fizeram em Varsóvia poucos meses antes, escreveu para Churchill em 12 de maio clamando a ele para chegar a uma decisão sobre o futuro do governo de Flensburg, cujo chefe, lembrou Sargent, era um criminoso de guerra. A resposta de Churchill mostrou-o em seu pior momento. Ele se recusou a sancionar a dissolução do regime que poderia ajudar as autoridades britânicas em manter a ordem na zona de ocupação. “Eu me recuso a levantar essas graves questões constitucionais,” escreveu Churchill, “numa época quando a única questão é evitar o caos.” Ele esperava que Dönitz e Busch conseguissem apressar a rendição das tropas alemãs ao invés de forçar os soldados britânicos a “correr atrás de todo barraco alemão” para convencer os homens a baixar suas armas. Se Dönitz é uma “ferramenta útil para nós”, concluiu Churchill, seria necessário eliminar suas “atrocidades de guerra”.

Churchill permaneceu consistentemente hostil ao rápido fim do regime alemão do pós-guerra. Eisenhower queria o poder para prender seus membros de uma vez e clamou aos Chefes de Estafe Anglo-Americanos Combinados para emitir instruções para ele o fazê-lo, mas Churchill foi contra. A crise piorou quando, na manhã de 14 de maio, a BBC transmitiu os resultados de uma entrevista conduzida pelo jornalista Edward Ward com o homem que alegava ser o Secretário do Exterior alemão e vice de Dönitz, o Conde Schwerin Von Krosigk, Ministro das Finanças de Hitler ao longo de todo o Terceiro Reich. Von Krosigk tentou explicar que, como chefe de Estado, Dönitz deveria ser lembrado como a soberania alemã, enquanto que os homens reunidos em seu gabinete eram as figuras melhor qualificadas na tarefa de organizar a Alemanha do pós-guerra e salvar o país dos russos. Como seria de esperar, o Departamento do Exterior protestou em termos fortes que a transmissão estava na realidade reconhecendo o regime ao descrevê-lo como “governo alemão” e apresentando Von Krosigk como “Primeiro Ministro ativo e Secretário do Exterior”. Um raivoso Brendan Bracken, Ministro da Informação (e fundador do History Today), rechaçou a BBC pela “performance lamentável”, mas o dano estava feito, encorajando o que um funcionário britânico descreveu como “o medo mórbido russo de que nós ainda estivéssemos negociando com os alemães para lutar contra o Bolchevismo.”

A hostilidade soviética com o Ocidente em relação a Dönitz atingiu o máximo na semana seguinte, alimentada pela suspeita adicional de que Hitler não havia sido morto em Berlim e estava sendo blindado pelos Aliados. “Estes homens formam uma gangue fascista,” reclamou o Estrela Vermelha. “Eles fizeram parte dos crimes nazistas.” O jornal governamental Izvestia anunciou que a simpatia inesperada do Ocidente com o regime de Flensburg “atingiu a consciência de todas as pessoas sensíveis.” Os representantes de Eisenhower encontraram-se com Dönitz em 18 de maio, enquanto que funcionários da inteligência americana, trabalhando para a Vistoria do Bombardeio Estratégico dos Estados Unidos, entrevistaram membros do governo, focando seus esforços particularmente em Albert Speer, agora Ministro da Economia, cujas visões eram desejadas sobre o efeito do bombardeio sobre a produção de guerra alemã. Em sua entrevista, Dönitz confirmou que ele atrasou a rendição tanto quanto pôde para permitir que os soldados e os refugiados escapassem do avanço do Exército Vermelho, mas ele também possuía cópias do “Último Desejo e Testamento” de Hitler, o qual incluía sua indicação como evidência de sua alegação legal para ser o chefe de Estado alemão. Estes contatos foram facilmente sujeitos a má interpretação em Moscou, apesar de que eles finalmente convenceram Eisenhower de que nada seria ganho prolongando a existência do regime alemão. No dia seguinte, 18 de maio, ele escreveu ao Departamento do Exterior e ao Departamento de Estado em Washington dizendo que o regime “era de pouco valor” e deveria ser extinto. Ao contrário do Primeiro Ministro, o Secretário do Exterior britânico, Anthony Eden, concordou totalmente, mas ele pediu a Eisenhower para agir por conta própria, ignorando os russos. Alguns funcionários do Departamento do Exterior ainda pensavam que, na escolha entre princípios e conveniência, a última fazia mais sentido dado que a colaboração alemã tinha apressado o desarmamento das forças alemãs e poderia agir como força de estabilidade.

Eisenhower emerge da história como o mais sensato de todos os envolvidos. Ele insistiu que, como comandante militar sênior no Ocidente, ele tinha que ser instruído pelos Chefes de Estafe Combinados, não por políticos, e que, apesar de Eden, os russos teriam que ser consultados. O vice-comandante supremo soviético, Marechal Georgii Zhukov, pediu aos representantes soviéticos em Flensburg para se encontrar com os americanos em 19 de maio e aqui os dois lados concordaram que o governo Dönitz deveria ser preso e seu trabalho ser extinto tão rápido quanto possível. A aprovação formal soviética chegou em 21 de maio. Ficou registrado que Churchill “se opõe fortemente à ação proposta”, mas os Chefes de Estafe
Combinados deram sua aprovação e, em 23 de maio, uma unidade de soldados britânicos prendeu os membros do gabinete de Flensburg. Eles foram enviados aos centros de detenção para grandes criminosos de guerra em Mondorf-les-Bains em Luxemburgo (codinome ASHCAN) e em Kransberg, próximo a Frankfurt-am-Main (codinome DUSTBIN). O resultado talvez reflita a extensão na qual a autoridade de Churchill estava se deteriorando na primavera de 1945.

Isto não encerrou a incerteza em ambos os lados. O governo soviético continuou a se preocupar que os britânicos e americanos poderiam estar procurando algum meio de usar a Alemanha como um novo aliado contra a ameaça soviética, enquanto que Churchill e seu gabinete temiam que a prisão do governo de Dönitz poderia tornar difícil a manutenção da ordem, reforçar o desarmamento das tropas alemãs e combater guerrilheiros insurgentes. Ironicamente, muitos soldados e oficiais britânicos na Alemanha deploraram o que Geoffrey Harrison, um representante do Departamento do Exterior na Alemanha, chamou de “barbarismo e insensibilidade” do Exército Vermelho em seu tratamento dos alemães; esta realidade, ele continuou, trabalhava para “inflamar o desgosto” contra os russos, enquanto, simultaneamente, inspirava “tolerância e alguma piedade pelos alemães”. O Estafe de Planejamento Conjunto foi solicitado a relatar em 23 de maio o efeito na Alemanha da prisão do governo de Flensburg. O grupo relatou dois dias depois que a extinção da anomalia de Flensburg “não provocaria dificuldades aos aliados em realizar seu trabalho.” As prisões abriram o caminho para o que o lado soviético desejava, o estabelecimento formal da Comissão Aliada de Controle para a Alemanha e uma declaração formal aliada da derrota da Alemanha, o que aconteceu poucos dias depois em Berlim.

Dönitz foi julgado como criminoso de guerra em Nuremberg e sentenciado a dez anos de prisão. Ele foi libertado em 1956, morrendo de um ataque cardíaco em 1980 em uma vila na Alemanha setentrional. Ele foi, até 2012, o único chefe de Estado a ser condenado por um tribunal internacional.

3 comentários:

Anônimo disse...

Gostam muito de falar do 'barbarismo e insensibilidade' do exército vermelho na ocupação da Alemanha, mas devia ser lembrado que isso foi um reflexo do tratamento completamente desumano que os alemães deram às populações dos territórios soviéticos ocupados em 19141-1943, muito pior do que o tratamento dado aos franceses, holandeses e dinamarqueses.
Dönitz provavelmente deveria ter sido enforcado como criminoso de guerra, por ter proibido o resgate de tripulações de navios de guerra afundados. Foi um dos erros de Nuremberg, junto com a não condenação de Speer à morte.

Anônimo disse...

As reticências de Churchill em por fim ao governo nazista fantasma de Flensburg poderiam muito bem estar relacionadas às intenções, não concretizadas, de lançar um ataque militar contra a União Soviética, ainda em 1945, usando as forças aliadas ocidentais em aliança com o que sobrara da wehrmacht, no que ficou conhecido como Operação Unthinkable (impensável), pois os militares britânicos desde o início perceberam o absurdo da idéia. Vê-se, assim, que as desconfianças soviéticas tinham fundamento:
http://en.wikipedia.org/wiki/Operation_Unthinkable

Emerson Paubel disse...

Realmente, essa interpretação de que Churchill apoiava Dönitz porque pretendia utilizar a Wehrmacht num ataque à URSS é bem plausível e diria até que seja o principal motivo. Em relação ao barbarismo da luta na Frente Oriental, ela ocorreu porque o combate foi puramente ideológico, tipo fascistas opressores x comunistas sub-humanos. Mas se você ler um outro artigo aqui no blog, verificará que enquanto evoluía a Operação Barbarossa, os soviéticos apoiaram os nazistas e os alemães dispensaram um tratamento mais digno à população não-judia em alguns casos. A coisa acabou em barbarismo quando a força dos partisans começou a provocar perdas significativas na Wehrmacht e na Waffen-SS. Em relação ao enforcamento, em minha opinião, o único seria Hitler, já que era o líder absoluto. Alguns mereciam prisão perpétua, como Goebbels e Himmler e outros, pelo fato de apenas obedecerem ordens como Keitel, Jodl e Dönitz deveriam pegar uns 10 ou 20 anos de cadeia.