segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Batalha no Gelo

Sergio Cauti



Santo para a Igreja Ortodoxa, herói para o povo, mito para a Rússia. Protagonista central de eventos que realinharam o equilíbrio religioso e político no Leste Europeu, na Idade Média, e grande líder militar e político. O príncipe Alexandre Nevsky foi tudo isso. O feito que lhe garantiu lugar na História e no imaginário mundial foi a vitória em uma batalha decisiva para a nação russa, travada sobre um lago congelado. A Batalha do Gelo foi um confronto modesto diante de épicos que mudaram a História, como Waterloo e Stalingrado. Mas mudaria para sempre o destino da Rússia.

Ataques de vikings

Os antecedentes do confronto têm lugar décadas antes. Na primeira metade do século 13, o Rus’ de Kiev – primeiro grande Estado eslavo da História – era uma mistura de etnias e culturas e vivia um período de prosperidade. Isso até os vikings dominarem a região. Mas Kiev entraria definitivamente em colapso em 1240, quando o mongol Batu Khan, descendente de Gêngis Khan, tomaria definitivamente a capital do Rus’. Os príncipes russos sobreviventes e as cidades-estado que não foram destruídas submeteram-se ao Khan, que fundou na região o Canato da Horda Dourada, anexando-o ao Império Mongol.

Novgorod estava entre as poucas que escaparam. Unindo habilidade política ao pagamento de pesados tributos aos mongóis, conseguiu manter sua independência.

Mas na Idade Média, bonança atraía violência. Se Novgorod escapara da ameaça dos mongóis vindos do leste, estava prestes a enfrentar um perigo maior: os europeus, que pressionavam do oeste. Os suecos foram os primeiros. Queriam controlar as ricas rotas fluviais entre o Báltico e o Mar Negro. Com uma forma de governo rara para a época, Novgorod escolhia, entre a aristocracia, o Kniaz, um príncipe com o mandato temporário de comandante político e militar. O cargo era revogável pela assembleia do povo, a Vetche. O Kniaz de então era Alexandre Jaruslavic, de 19 anos.

Alexandre e sua pequena armada atacaram o Exército sueco às margens do Rio Neva, destruindo-o completamente. Foi tão definitiva a derrota, que a vontade dos suecos em conquistar o território russo desmoronou. A vitória mudaria o sobrenome de Alexandre para “Nevsky” (em russo, “do Neva”). Mas faria surgir forte inveja na aristocracia, os chamados boiardos, o que obrigaria o Kniaz a se exilar. Logo, uma ameaça bem pior do que os suecos faria a aristocracia mudar de ideia. Uma ordem de monges guerreiros de origem alemã, os Cavaleiros Teutônicos, invadira a vizinha Livônia, atual Letônia, que havia se tornado o epicentro das Cruzadas do Norte.

O que os movia era o impulso de levar o cristianismo, pela espada, aos povos pagãos da Europa do Leste. Novgorod professava o cristianismo ortodoxo.

Mas, se algum cavaleiro teutônico foi tomado por alguma dúvida moral sobre uma possível luta de cristãos contra cristãos, o papa Gregório IX, não. Abençoou a expansão como forma de glorificação do catolicismo.

Os cruzados avançavam em direção de Novgorod e os boiardos chamaram o príncipe de volta. A ofensiva teutônica começou no inverno de 1240. Os cruzados chegaram com sua pesada cavalaria. Devastaram e saquearam o que encontraram pela frente e conquistaram Pskov, parceira comercial de Novgorod. O jovem príncipe juntou à sua guarda pessoal, formada por cavaleiros de elite, uma milícia com gente de Novgorod e dos clãs tribais. Atacou de surpresa e reconquistou Pskov. Os prisioneiros foram libertados, mas não houve piedade aos boiardos que colaboraram com o invasor. Foram enforcados.

A armadilha

Os teutônicos eram soldados profissionais. Passada a surpresa, reorganizaram-se e passaram ao contra-ataque. Perto de Tartu exterminaram parte do Exército de Nevsky em missão de observação. O revés fez o príncipe mudar sua estratégia. Era hora de recuar para enfrentar os teutônicos em terras conhecidas. Como local do confronto, Nevsky escolheu o Lago Peipus. O lago era profundo, estava congelado e era cercado por pântanos que davam passagem somente em três pontos, que Nevsky conhecia bem. O príncipe também sabia que naquele começo de abril a superfície gelada do lago era fina. E não aguentaria o peso da cavalaria teutônica. Era possível montar uma armadilha para os cruzados, percebeu. Posicionou suas tropas para obrigar o inimigo a cavalgar bem em cima do gelo e aguardou. Os alemães caíram no engodo. Mesmo em inferioridade numérica, 800 cavaleiros contra 5 mil russos, estavam seguros de sua superioridade bélica, com seus poderosos cavalos e pesadas armaduras.

Assim, subestimaram o inimigo, considerando-os um bando de camponeses mal-armados e sem treinamento militar. Não deixavam de ter razão. “Os homens de Nevsky não eram soldados. Eram camponeses tirados à força de seus trabalhos rurais, não treinados e mal-armados”, diz Mikhail Krom, professor de Estudos Históricos Comparados na Universidade Europeia de São Petersburgo.

Os cruzados repetiram a clássica e bem-sucedida tática utilizada em todos os confrontos precedentes: cavalgar compactos para o centro do Exército inimigo, usando a força de impacto da cavalaria pesada para dividi-lo em duas partes e enfrentá-las separadamente. Nevsky estava preparado. Quando o inimigo estava próximo, deu a ordem de abrir a frente em duas partes, que atacaram os invasores pelos flancos. Isso obrigou os teutônicos a permanecerem no centro do lago. O príncipe escondia mais um trunfo: arqueiros mercenários mongóis a cavalo. Foram decisivos. Esse detalhe tático entrou na tradição eslava como o mito de que anjos chegaram dos céus salvando o príncipe.

Sob a água e o gelo

Cercados e ofuscados pelo sol refletido no gelo, os cruzados foram fustigados pelas flechas e atacados pela infantaria. O confronto foi rápido, mas sangrento. Os cruzados tentaram se retirar da superfície do lago, mas o gelo quebrava por debaixo deles. Cavalos e cavaleiros desapareciam nas águas geladas. O ponto de força da cavalaria teutônica, as armaduras pesadas, se revelou sua maldição. Somente 300 cruzados se salvaram do massacre. Mais uma vez, Nevsky voltou triunfante como gênio militar. A estratégia de amizade com os dominadores asiáticos lhe assegurou, em 1252, a nomeação como Grão-Príncipe. Alexandre começou uma política de acomodação com os mongóis. Não lutou contra eles e perseguiu os rebeldes que não queriam pagar os tributos ao Canato da Horda Dourada.

Mas, segundo uma versão aceita pelos historiadores, os mongóis mostraram-se ingratos e o teriam envenenado, aos 43 anos, durante uma visita oficial. “Provavelmente, ele tinha se tornado independente demais”, especula Mari Isoaho, professora de História da Universidade de Helsinque e autora do livro The Image of Aleksandr Nevskiy in Medieval Russia. Três séculos mais tarde, a Igreja Ortodoxa proclamou Alexandre Nevsky santo, dedicando-lhe igrejas e monastérios em toda a Rússia.



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Um comentário:

Biblioteca Revisionista disse...

O melhor blog que ja vi até hoje.
Nao deixe de postar.