por NOEMI
JAFFE
Em abril
de 1945, a Cruz Vermelha chegou até as proximidades do campo de concentração de
Bergen-Belsen, na Alemanha, e libertou os prisioneiros que ainda se encontravam
ali. Entre eles estava minha mãe, que já tinha passado por Auschwitz e outras
localidades, então com 19 anos de idade. Ela fora capturada um ano antes, na
cidadezinha de Szenta, onde morava, na fronteira entre a Hungria e a atual
Sérvia. A Cruz Vermelha, após libertá-los, levou os prisioneiros para Malmö, na
Suécia, onde eles permaneceram em quarentena. Lá, com suas três primas, que
sobreviveram aos campos de concentração, principalmente por terem conseguido
trabalhar na cozinha, ela escreveu um diário de guerra. Nele, procura
reconstituir suas lembranças mais importantes, desde a captura até a
libertação, narrando os acontecimentos como se estivesse registrando-os no
momento, ou imediatamente depois de sua ocorrência. Daí algumas imprecisões cronológicas
e factuais, que decidi manter para ser fiel à escrita original. Atualmente, o
diário se encontra no Museu do Holocausto, em Jerusalém. Em fevereiro de 2009,
eu e minha filha Leda fizemos uma viagem até a Alemanha e Polônia (Varsóvia,
Cracóvia e Auschwitz), tentando reconstituir parte do trajeto de minha mãe
durante a guerra. O resultado dessa viagem é o livro O que os Cegos Estão
Sonhando?, a ser publicado em outubro, com a edição integral do diário de LIWIA
JAFFE, atualmente com 85 anos, e um misto de memórias, reflexões e ficção
escritas por mim, além de um depoimento final de Leda. Parte desse livro
aparece pela primeira vez aqui.
SENTA,[1] 25
DE ABRIL DE 1944_Todos à minha volta, assim como
eu, estamos tristes. Sabemos o que está acontecendo e também o que acontecerá.
Meu pai está sentado no sofá, durante a manhã toda, calado, fitando o nada. Por
vezes, olha-nos e fecha os olhos tristes. Minha mãe nos con-sola: não acredita
no mal, porém está ar-rumando as malas, faz doces e suspira fundo, sem que
ninguém possa ver.
Meu irmão e eu observávamos e, sendo duas crianças,
saímos para chorar. Ninguém nos conta nada, mas sabemos o que está acontecendo.
Sabía-mos que no dia seguinte, às 8 horas, os alemães viriam nos buscar e nos
arrancar de nosso lar.
26 DE ABRIL_Levantamo-nos
bem cedo. Tudo estava arrumado. Chegaram na hora certa! Eram sete.
Um deles sentou-se junto à mesa e começou a
escrever. O segundo olhou as nossas coisas e deu uma ordem:
– Arrumem suas tralhas daqui a cinco minutos. São
coisas para duas se-manas. Levem comida e saiam da casa!
Está chovendo. Estamos juntos. Nossa família junto
com as outras famílias judias. Vão nos levar para a escola judaica. Duas
mulheres alemãs nos revistam, um por um, à procura de joias. Estamos dormindo
no chão.
27 DE ABRIL_Às quatro
da manhã nos escorraçam de um modo pior do que animais são tratados. Chove sem
parar. Lama até os joelhos. Mulheres velhas e crianças pequenas choram. Os
alemães batem em todos e gritam:
– Judeus sujos!
Nossos pés se colam à lama. Chegamos ao trem de
carga com muita dor. Somos 65 pessoas em cada cabine. Não sabemos para onde
estão nos levando. Mamãe nos abraça e engole as lágrimas. Estamos viajando o
dia todo e nem pensamos em comida. Dormimos sentados do jeito que estávamos.
SZEGED,[2] 28 DE ABRIL_Chegamos
às 11 horas com nossas bagagens nas costas, cansados. Andamos 5 quilômetros
dentro da cidade. Horrível! Velhos e crianças choram, pedem ajuda. Em vão. Quem
não andava apanhava. Jogamos fora muitas coisas para o peso ficar mais leve.
Chegamos, com muita dificuldade.
Colocaram-nos, 65, num só quarto e ordenaram:
– Vocês devem deixar o local limpo! Levantar às
cinco e meia da manhã e dormir às dez da noite! Escolham alguém do grupo para
ser responsável pela ordem.
Queriam escolher mamãe. Ela não aceitou. Ficamos
ali durante um mês. Comendo pó. Tínhamos ainda comida que havíamos trazido de
casa.
19 DE MAIO_Inesperadamente
nos expulsam da escola à meia-noite. Está escuro, não enxergamos nada.
Gritaria. Pedimos que acendessem as luzes. Por sorte, conseguimos. Fora,
esperava-nos uma carroça para carregar as nossas malas. Na estação de trem,
tivemos de ficar numa fila. Dividiram os pacotes. Novamente dentro de vagões.
Viajamos a noite inteira.
BAJA,[3] 20 DE MAIO_Chegamos
pela manhã. Enfiaram-nos numa fábrica de móveis próxima à estação. Como éramos
muitos, nos dividiram em dois grupos. Metade ficou na fábrica. A outra metade,
também nós, acabou conduzida a um simples chiqueiro. Nós mesmos tivemos de
limpar o lugar. Forraram o chão gelado com areia limpa. Ali ficamos por nove
dias. Papai ficou muito doente, febre alta. Minha velha mãe também se resfriou,
ficou fraca. Mamãe mostra-se forte, mas percebemos tudo. Ela nos olha o tempo
todo e se esforça para tornar as coisas mais leves para todos nós. Diz que não
lhe dói nada, não sente dificuldade alguma. Ela e papai suportariam juntos o
dobro das coisas para que não sofrêssemos.
28 DE MAIO_Tivemos de
formar uma fila às 9 horas. Os alemães fizeram uma contagem das pessoas. E nos
levaram. Na mesma noite deixamos ‘‘nosso” chiqueiro e fomos conduzidos à
estação. Setenta dentro de um vagão, com os pacotes, que foram atirados para
dentro depois de termos entrado. Papai e mais alguém procuravam pôr alguma
ordem ali. Arrumaram os pacotes. Cada um pôde se sentar sobre as suas próprias
coisas.
Viajamos durante seis dias. Sem água, sem comida.
Papai tem febre o tempo todo. Mas se faz de forte. Mamãe nos consola, nos
abraça. Minha velha mãe chora. Doem-lhe as costas. Nem consegue ficar sentada
mais.
AUSCHWITZ, 4 DE JUNHO_Mandaram-nos
sair dos vagões sem os pacotes. Separaram homens e mulheres. Papai com meu
irmão. Nós quatro numa outra fileira. Mamãe, minha priminha de 4 anos, meu
primo de 8 e eu. Fila longa. Ouvimos um alemão gritar de longe: direita,
esquerda... Quando chegamos mais perto, mamãe escondeu-me debaixo do casaco
dela, que ela ainda possuía, esperando evitar que nos separassem.
Chegamos até o primeiro alemão. Mandou ir para a
esquerda. Um outro nos examinou e nos deixou passar. Mas o terceiro ordenou que
eu fosse para o lado direito. Éramos muito jovens. Eu e minha amiga Kátitza
Blaier chorávamos juntas. Ela chegou depois de mim e disse que mamãe lhe gritava
de longe que tomasse conta de mim.
À meia-noite entramos no campo de concentração.
Caminhamos muito até chegar a um banheiro. Entramos. Dentro, estava cheio de
alemães e alemãs que tiraram de nós tudo o que tínhamos ainda. Em seguida,
precisamos ficar nuas e entrar num outro lugar. Havia somente mulheres ali.
Cortaram os nossos cabelos. Sentia muito por meu cabelo, mas, quando pensava em
meus pais, não sentia nenhuma outra dor. Tomamos um banho com água quente.
Levaram-nos, molhadas ainda, para um lugar seco, onde recebemos vestidos. Era
algo terrível, mas ainda assim ríamos. Uma mulher de uns 30 anos recebeu um
vestido infantil curto. Tentou devolver, mas não trocaram. Algumas só recebiam
uma saia sem blusa, outras só blusas sem saias. Sentia frio, nua e molhada,
parada em pé ali até que chegasse a minha vez. Ganhei um vestido preto longo.
Disseram-me que tenho sorte. Puseram-nos novamente em fila diante do banheiro.
Estava escuro… Era uma da manhã. Pouco mais tarde,
quando os olhos se acostumaram com a escuridão, percebi que havia homens ao
nosso lado. Procurava por conhecidos e então vi papai e meu irmão, que me
indagavam onde estava mamãe. No momento em que tenta-va responder, vieram uns
alemães e me levaram dali. Não se enxergava nada em volta. Havia fogo, chamas,
e dava a impressão de que cada vez mais nos aproximávamos do fogo. Tínhamos
medo, mas não chorávamos. Havia entre nós quem chorasse e gritasse e esses eram
levados para um outro lugar, sei lá para onde. Chegamos a uma construção de
madeira que chamavam de “bloco”. Mil de nós fomos enfiados nesse “bloco”.
Dentro também estava escuro e ouvia-se apenas uma voz rude que ordenava
gritando:
– Sente-se onde estiver!
Senti um cimento úmido. Não me sentei, ajoelhei
apenas. De madrugada nos mandaram sair. Mostraram como devíamos ficar paradas e
leram as regras de como devíamos nos comportar. Levantar diariamente às três da
madrugada, ir em fila até o banheiro, voltar em fila. Ficar em fila de cinco,
que era chamada de Zeltappell.[4] Às cinco, viria um alemão que faria a contagem de
quantos éramos. Às seis, seria distribuído um café e, quando ouvíssemos um
sino, o Zeltappell estaria encerrado. Feita a revista, de volta ao
pavilhão, em filas. Ao anoitecer, às seis da tarde, seria distribuí-do o
jantar: 200 gramas de pão, sopa e uma colher de margarina.
Ficar em pé das três às seis era horrível. Quando
percebíamos que não havia um alemão por perto, nos abraçávamos para não sentir
tanto frio. Mal podíamos esperar por aquela água negra e quente – café aquilo
não era. Uma tarde daquelas nem consegui morder o pão. Parecia um pedaço de
tijolo. De fato, era feito de pó de madeira. No primeiro dia, não comi nada.
Nem no segundo. Mas, depois, precisava. Eu tinha fome.
Num campo, éramos 30 mil – trinta blocos com mil
pessoas cada. Campos iguais, um ao lado do outro – havia uns vinte e, mais
longe, onde nem a vista chegava, havia mais. O campo tinha 1 quilômetro de
comprimento. No final, havia uma guarita. O campo era cercado por arame
eletrificado. Havia oito crematórios sempre acesos. Podiam-se ver as chamas.
4 DE JULHO_Ontem
chegamos ao campo C. Como já não escrevo faz um mês, escreverei sobre o passado.
No começo, eu passava fome e sofria muito. Nosso pavilhão era defeituoso.
Quando chovia, ficávamos molhados como se estivéssemos fora, debaixo da chuva.
As camas – se posso chamá-las assim – eram apenas estruturas de madeira, umas
sobre as outras, três andares, com doze pessoas em cada estrutura.
Frequentemente acontecia de desabarmos. Eu queria sempre ficar no andar mais
alto; não havia pó e eu sentia que tinha um pouco mais de ar. Dormíamos como
sardinhas em lata. Quando começava a nos doer o lado direito, sobre o qual
estávamos deitadas, precisávamos deitar para o outro lado, juntas. Em casos
como este é que caíamos. Aquelas sobre as quais desabávamos gritavam de dor,
claro. No dia seguinte, a punição: não recebíamos comida alguma. E isso se
repetia diariamente. Certo dia, Alice, minha prima, trouxe uma batata e um
pedaço de repolho. Dividimos tudo em quatro pedaços e comemos como se fosse a
refeição mais deliciosa.
6 DE JULHO_À tarde,
depois da revista do pavilhão, apareceu um homem com uma faixa vermelha no
braço. Ele era chamado de kapo. Era o inspetor da cozinha. Escolheram
mulheres fortes para a cozinha. Minhas três primas foram escolhidas entre
quarenta mulheres. Eu estava fora dali naquela tarde, porque fui ver a Kátia.
Quando cheguei, me contaram; fiquei desesperada; não queria me separar delas.
As quarenta escolhidas tinham de ficar fora da
fila.
Chovia forte. Eu tinha uma blusa fina de véu com
saia preta. Devíamos ficar em pé. Não podíamos sequer erguer as mãos. Quando
terminou a revista, queria me enxugar um pouco com as mãos e, assustada, vi que
não havia mais blusa em mim: se desfez com a chuva. Como não podia ficar em pé
ali, nua, apanhei o minúsculo cobertor que já tínhamos e fiquei parada assim.
Eu e minhas primas decidimos não comer nada naquele
dia. Trocamos a comida por roupas e, com isso, arrumamos um vestido para mim.
Depois disso pensamos que eu poderia juntar-me a
elas na fila. Na manhã seguinte, saímos para a revista. Havia muitas de nós com
cobertores. Eu estava no fim da fila e, no momento em que ninguém viu, joguei o
cobertor e fiquei junto de minhas primas. Consegui. Logo depois, vieram fazer a
contagem.
– Havia quarenta aqui, que eu contei; agora deveria
ter quarenta, mas tem 41!
A alemã berrava furiosa:
– Se aquela que não tinha sido escolhida não se
apresentar, todas serão punidas.
Não me apresentei. Estava pronta para o pior.
A alemã furiosa começou a selecionar de novo.
Chegou a nossa vez. Sem uma palavra, separou minhas primas e parou diante de
mim. Todos me consideravam criança: era pequena e sem cabelos parecia ter uns
15 anos.
– Escolhi você ontem?
– Sim, senhora.
– Mas você é pequena ainda e não precisa cozinhar.
– Certo. Mas não sou pequena. Tenho três primas e
gostaria de ficar com elas.
Era furiosa, mas comigo brincava. Chegou a gostar
de mim. Deixou-me ficar e dispensou outras cinco.
Recebemos roupas. Deram-me um vestido bonito.
Não tinha mais medo. Sempre ficava agora à frente
das demais.
2 DE AGOSTO_Passou-se
quase um mês desde que estou na cozinha. Eu me acostumei ao fato de que
tínhamos tanta comida quanto precisássemos. Mas isso não bastava. Tínhamos
muitos conhecidos passando fome. Não podíamos ficar vendo-os inertes. Era muito
perigoso roubar, ainda que de modo organizado. Coitado daquele que fosse
apanhado por um alemão! Ainda assim, começamos. Uma vez que os nossos
conhecidos não estavam em nosso campo, tínhamos deentregar tudo pela cerca
eletrificada. Apenas eu tinha coragem. O primeiro alemão que visse atiraria
imediatamente. Minha mão não podia tocar no arame eletrificado, porque isso
também era a morte. Mas eu não temia, não tinha medo da morte. Encarava tudo
com frieza. Era assim todos os dias.
Anteontem, Hajnal,[5] uma de minhas primas, trouxe de novo quase 1 quilo
de margarina. Alice escondeu logo entre os repolhos, com a intenção de tirar de
lá de noite, antes de voltarmos ao barracão. Então, uma das garotas pediu que
Alice lhe desse um pouco de margarina, porque ela não tinha nada.
Alice lhe respondeu que prestasse atenção para que
ninguém a percebesse enquanto retirava a margarina. Mas apareceu uma alemã e a
viu.
– O que você está fazendo?
Alice, assustada, respondeu:
– Peguei um pouco de margarina.
– Como assim?
– Bem, somos quatro irmãs... como não estamos nos
sentindo bem, juntamos as nossas porções...
Esbofeteou Alice.
– Mostre-me suas irmãs!
Eu não estava lá. Em meu lugar, uma de nossas
amigas se apresentou.
– Ah! São vocês!? Ficarão de joelhos até a revista,
que é às 13h30. Se até lá vocês não confessarem quem roubou a margarina, vou
jogar as quatro no crematório!
Alice não disse que foi Hajnal. Nem as outras falaram.
Enquanto elas estavam ali, de joelhos, retornei. Contaram-me o que havia
acontecido. Corri direto para dizer à alemã que eu era a culpada. Por que
quatro devem pagar, se eles ficariam satisfeitos com uma só? Eu não tinha medo
da morte.
Bati à porta. Entrei. Dentro estava a alemã
acompanhada de um alemão.
– Por que você veio? O que você quer?
Naquele instante, eu não conseguia responder.
Chorava e, em meio às lágrimas, disse:
– Soltem minhas primas. Elas não são culpadas. Eu
roubei a margarina.
Ela correu até mim e me esbofeteou.
– E então você confessa isso assim? De onde você
pegou a margarina? E sabe como você vai pagar por isso?
– Sei! Perdão! Vi sobre a mesa e peguei. Não faço
nunca mais.
– Agora vou mostrar o que você vai receber por
causa disso. Você nunca mais vai ver a luz do sol. Isso eu garanto!
Tentei implorar clemência, mas ela nem queria
ouvir.
O alemão perguntou:
– Quantos anos você tem?
Claro que eu disse um ano a menos.
– Dezesseis.
– Dezesseis anos e ainda não sabe que não pode
fazer isso?
Olhou a alemã e sussurrou:
– Não seja tão rígida. Você está vendo que ela
ainda é jovem.
A alemã, enfurecida:
– Por que você a defende? Irei até o chefe do
campo. Ele dará um jeito nela.
E saiu. Enquanto isso, ele me conduziu para fora, até
um monte de tijolos. Ordenou que me ajoelhasse e que segurasse um tijolo enorme
sobre a cabe-ça. Apanhei o tijolo, mas logo precisei colocar de volta, porque
não consegui erguê-lo.
O alemão olhava meu sofrimento. E disse:
– Olhe, se você não se esforçar, ela vai voltar.
Sabe o que espera por você?
Levantei o tijolo, com um esforço enorme, mas não
conseguia segurar. Caiu sobre a minha cabeça. Pensei que fosse desmaiar. Mas
fui forte. Lágrimas caíam de meus olhos feito chuva, não porque eu estivesse
arrependida, mas de dor mesmo. Fique ali, de joelhos, por duas horas. Apareceu
o alemão e disse:
– Levante-se! Entre na cozinha e continue
trabalhando!
Coloquei o tijolo no chão e tentei levantar. O
lugar duro em que fiquei ajoelhada machucou tanto meus joelhos que caí. Ouvi
novamente a voz do alemão. Quis levantar, mas não consegui. Fiquei sentada uns
dez minutos. Depois voltei para a cozinha, onde desmaiei. Minhas primas
choravam; puseram compressas frias em mim; me consolaram até eu melhorar.
1º DE SETEMBRO_Tive
muitas dores na perna. Já era o segundo dia assim, sem conseguir trabalhar.
Pensei que nunca mais seria capaz. Mas não podia fazer nada. Aqueles para quem
eu levava coisas estavam famintos. E eu tinha comida à mão. Não suportava a
impossibilidade de lhes levar.
* * *
5 DE ABRIL DE 1945_Não
estamos nem vivos nem mortos. De 120, sobraram cinquenta. Estamos entre Bendorf
e o campo de Bergen-Belsen. Estamos perto de Hamburgo, mas não há como viajar
daqui para a frente. Os aviões nos sobrevoam o tempo todo; os homens nos
consolam e dizem que a libertação está próxima. Mas não acreditamos. Já tenho
dificuldade para falar. Pedimos ao alemão que não nos torture mais; não
queremos viver mais, que nos mate. Ele também nos consola:
– Vocês e nós também, estamos todos passando fome.
A libertação está próxima. Aguentem mais um pouco.
Estamos em (ilegível).Não sabemos se
aguentaremos um dia mais sem comida. Faz seis dias que não comemos. Pedimos,
chorando, que o alemão nos mate.
– Está bem, se a vontade de vocês é essa... Nem eu
posso ficar vendo o sofrimento de vocês. À tarde, às 3 horas, posso atender ao
pedido de vocês.
Agrupamo-nos em turmas de cinquenta. Aguardamos a
morte por fuzilamento. São cinco horas em ponto. Os alemães estão prontos.
Esperamos em pé o chefe do campo. Chegou às cinco e meia, com o rosto contente:
– Crianças, vocês estão salvas.
À noite chegarão dois caminhões de pão. Os alemães
estão todos alegres e todos estão com fome. Retornamos ao vagão. Passou da meia-noite
e nada de pão. Gememos em voz alta, mas as nossas vozes não podem ser ouvidas
longe.
6 DE ABRIL_Todos os
que não morreram estão dentro do vagão, e não estão bem conscientes. Eu também
pareço embriagada; não enxergo; parece que tenho espuma na boca. Ao meio-dia
chegaram os caminhões com pão. As alemãs mesmo estão cortando e distribuindo.
Cada um de nós recebe meio pão com margarina. Trouxeram pão da Suécia.
Novamente temos um pouco de forças. Comemos pouco, porque guardamos também para
as outras mulheres. De noite, viajamos para mais longe.
Chove. Saímos do vagão. Chegamos às 6 horas. O
campo não é longe da estação, mas ainda assim nos molhamos todas até chegarmos.
Levaram os doentes (ilegível), nós fomos para o pavilhão. Estava quente,
havia aquecimento. Ganhamos comida. Alice e Hajnal foram trabalhar na cozinha
e, assim, tínhamos um pouco mais. Recebi remédio para a minha perna.
25 DE ABRIL_Depois da
revista pela qual passamos, duas vezes, não retornamos ao bloco. Fomos para a
estação. Não nos aguardavam vagões, mas um trem elétrico que nos levou em
grupos de sessenta. Retornavam a cada hora. Pela primeira vez me senti
semelhante a um ser humano. Dentro do trem, pudemos sentar em assentos
forrados. Às cinco, chegamos a Hamburgo. O campo também é próximo à estação.
Ali recebemos cada uma um prato de sopa de beterraba. Comemos tudo. No
pavilhão, novamente, somos muitas numa cama. Tive sorte: éramos em oito.
HAMBURGO, 28 DE ABRIL_Chove
muito há dois dias. Temos uma alemã que nos bate muito; temos medo. Ouvimos
secretamente que estão perto de Hamburgo e que, em breve, sairemos daqui
também. Pensamos de novo em vagões e fome.
29 DE ABRIL_Uma alemã
chegou ao pavilhão e nos expulsou. Ainda chovia. Saímos do campo em filas.
Vemos um soldado alemão diante dos portões com uma cruz vermelha. Estamos
diante de vagões. Vagões solitários fechados. Palha dentro do vagão. Diante dos
vagões, a Wehrmacht e os SS.[6] Não sabíamos o que aquilo poderia significar.
Coisas boas não poderíamos suspeitar. Eu queria comer e minhas primas estavam
com medo. Gizika dizia o tempo todo:
– Crianças, economizemos o pão, porque não sabemos
durante quanto tempo não teremos mais.
PADBORG,[7] 10 DE MAIO_Atravessamos
a fronteira alemã. Estamos na Dinamarca. O alemão saltou do trem e gritou:
– Hitler morreu! O trabalho está concluído.
Enfermeiras dinamarquesas, com uniformes brancos da
Cruz Vermelha, vêm nos retirar dos vagões. Oferecem doces. Atiram-nos flores e
nos levam de ônibus, cinquenta de cada vez. Chegamos a uma propriedade rural.
Discursaram para nós. Que não nos aborreçamos por ter de dormir, esta noite,
sobre palha. Que levemos em conta que estamos sujas. Ganhamos excelentes
cobertores ingleses. Como já estava escuro, não ganhamos comida. Deitamo-nos.
2 DE MAIO[8]_Um trem
nos esperava na estação. Viajamos de segunda classe. Assentos de couro, grande
limpeza. Dentro, enfermeiras da Cruz Vermelha distribuíram um pacote para cada
um. No pacote, dois pedaços de pão branco com manteiga e queijo; dois pedaços
de pão escuro com ovos e presunto, com um copo de cacau e um tablete de
chocolate.
Os dinamarqueses foram à estação. Enfeitaram o trem
com flores. Atiravam dentro do trem balas, chocolate, doces, e o que cada um
possuía.
Durante o caminho, eles nos gritam:
– Hurra! (Viva!)
Já estamos viajando há muito tempo. Ao nosso lado,
passam vagões com alemães. A enfermeira nos conta que eles estão voltando da
Suécia.
COPENHAGUE, 5 DE JUNHO_Chegamos
às oito da manhã em Copenhague. O trem parou diante do porto. Já nos aguardava
um navio enorme de três andares. Quando saímos do trem, cada pessoa recebeu um
litro de iogurte, que bebemos imediatamente, e doces. Depois, para o
refeitório. No navio, entravam cinquenta por vez. Sentamo-nos em quatro a cada
mesa. Vieram garçons com o cardápio.
– O que desejam?
Não conseguíamos ter palavras. A enfermeira
percebeu isso e fez o pedido por nós.
Café com leite quente, flocos de aveia, pão com
manteiga e depois bolo.
O mar é lindo. Verde-escuro, transparente. As
gaivotas esvoaçam e eu observo tudo, como num sonho. Liberdade maravilhosa. Não
há mais cerca elétrica, ninguém nos vigia, comida quanto desejássemos.
Fico imóvel no convés do navio, vejo como as
gaivotas brincam, como o mar balança em ondas. Sinto uma alegria até o fundo de
minha alma, e as lágrimas escorrem feito chuva. Como minha querida mãe ficaria
contente se estivesse comigo. Papai talvez esteja em casa com meu irmão, mas e
mamãe? É possível que nunca mais a veja. Sinto a liberdade maravilhosa e sinto
saudades de meus pais. Minhas primas me consolam.
Às oito da noite chegamos ao porto sueco de Malmö.
Quando o navio aportou, começaram a estourar fogos de artifício festivos. Os
habitantes de Malmö estavam quase todos ali. De repente, um profundo silêncio.
O ministro do rei veio fazer um discurso em sueco e em alemão. Depois entoaram
o hino, outro foguetório, e nos aplaudiram com muita alegria.
– Hurra! Viva! Viva!
Isso durou quase meia hora.
Nós que estávamos no navio derramávamos lágrimas de
felicidade. Nos recebem assim, a nós, que há oito dias ainda estávamos sendo
espancados, cuspidos, como os mais selvagens dos selvagens – não podia ser
verdade. Chorávamos, tínhamos todos o mesmo sentimento. Os suecos perceberam e
alguns choravam conosco. Consolavam-nos, não entendíamos o que diziam, mas
sentíamos que eles nos consolavam.
Depois vieram cônsules de vários países e cantaram
seus hinos conosco. Primeiro, o holandês, porque havia mais deles. A seguir, os
tchecoslovacos, os húngaros, e, depois, nós, os iugoslavos. Ainda havia um
cônsul do rei iugoslavo, e cantamos Боже правде,[9] nós que não tínhamos nada a ver com política.[10]
Descemos do navio em seguida. Um ônibus nos
aguardava. Diante dele, nos deram chocolate quente, bolos, e então tivemos de
subir.
A cidade de Malmö é muito bem iluminada, parece o
interior de uma casa. Andamos bastante tempo até que o ônibus parou diante de
um prédio. Descemos. Era uma casa de banhos.
Primeiro tomamos um banho. Desinfetaram-nos da
cabeça aos pés. Em seguida, numa outra sala, um médico nos esperava. Aquelas
que estavam doentes foram imediatamente encaminhadas ao hospital. Limparam a
ferida na minha perna e nos deram roupas novas. Prontas, limpas, voltamos ao
ônibus.
Não andamos muito. Descemos do ônibus, dois a dois,
como bons estudantes. Ficamos olhando ao redor como se nunca na vida tivéssemos
visto algo bonito. No 1º andar, apenas vinte de nós num quarto. Limpeza
absoluta. Flores nas janelas. Camas brancas. Ficamos imóveis em pé. Olhamos uns
para os outros; todos têm a mesma expressão. Um médico está parado ali adiante
e uma de nós o inquire:
– Senhor, por favor, diga quantas de nós deveremos
deitar numa cama?
Pergunta risível, mas ele não sorriu. Sabia o
quanto havíamos sofrido até então. Em voz baixa, e em alemão corrente,
respondeu:
– Queridas crianças. Vocês estão na Suécia, em que
cada ser humano tem amor igual um pelo outro. Não temos arames à nossa volta,
vocês estão livres. Vocês irão se alimentar e descansar, o quanto desejarem.
Esse será o vosso quarto. Há vinte camas e vocês são vinte também. Entrem e
durmam bem!
FOME
No começo a gente não conseguia comer
o pão, porque parecia feito de serragem. Depois, quando já sentíamos muita
fome, chegávamos a esconder o pão embaixo do travesseiro, para ninguém roubar.
Nós éramos quatro e a Gisie dividia o pão em quatro partes, para comermos uma
porção e deixarmos as outras duas para mais tarde, porque só tinha pão uma vez
por dia. A Gisie era a mais velha, ela era como a chefe de nós quatro: Alice,
Hajnal, Gisie e eu.
Parece que a necessidade de comer, para quem passa
fome, é mais forte do que a própria necessidade de viver. Havia muito poucos
casos de suicídio nos campos de concentração, um gesto que não seria tão
difícil. Era só atirar-se contra o arame eletrificado. Mas quase ninguém fazia
isso; havia o próximo pão.
Viver, assim, reduz-se praticamente a comer; ou
melhor, comer é mais do que viver. Depois de terminada a guerra, quando Liwia
estava indo para a Suécia, levada pela Cruz Vermelha, todos lhe ofereciam
comida. Chocolates, pão, guloseimas, todos jogavam comida para dentro do trem,
felizes de poder alimentar aqueles que tinham passado fome. Mesmo no campo, o
assunto principal era a comida, e muitos, provavelmente, sobreviveram para
lembrar da comida, para conversar sobre a comida, além de simplesmente para
comer. Não se comia para viver; vivia-se para comer.
Saber se relacionar com a comida, dividindo-a em
várias partes, guardando-a, barganhando com ela, fazendo do pão uma moeda cara,
garantia de mais um dia, para então consagrar-se à próxima busca de pão. Essa
manutenção ínfima do corpo e de algum resto de astúcia permitia aos
prisioneiros, à noite, durante o trabalho ou em algum momento de conversa,
falar sobre outras comidas, mais sofisticadas, gesticular sobre elas e fazer de
conta que elas existiam. Parece que os sonhos também eram preenchidos com comida.
O corpo e a alma – Que alma? O que é a alma de um prisioneiro faminto, de
qualquer pessoa faminta? A fome faz pensar que a alma é simplesmente uma
invenção do corpo, para aqueles que estão abastecidos e não precisam pensar em
comida – de uma pessoa com fome são uma demanda permanente por comida. Como se
os humanos se tornassem parasitas, vermes enlouquecidos, girando
desnecessariamente num vácuo, desesperados atrás de migalhas, não para viver,
mas simplesmente para comê-las. Comer para comer.
Esse processo de animalização reforçava a ideia que
os nazistas tinham de que osprisioneiros eram mesmo como animais e isso os
fazia sentir ainda mais ódio, como se a animalização justificasse a
perseguição. Não seria muito mais digno se matar? Por que se humilhar tanto
para conseguir um pedaço de pão duro e velho? As pessoas roubavam pão umas das
outras, tiravam pão de cadáveres – por quê?
Muitos israelenses condenam os judeus dos campos de
concentração por não terem resistido mais e melhor; por te-rem se submetido tão
brandamente, animalescamente, por uma ração de sopa, por um pedaço de pão. Há
uma inversão e uma perversão nessas ideias. Ninguém que não esteja passando ou
tenha passado fome tem a mais remota noção do que ela seja e dos efeitos que
ela provoca no comportamento humano, por mais ética que a pessoa seja. Ninguém
sabe se a vida ou, mais absurdamente ainda, os valores de alguém são mais
importantes do que comer, quando não se tem comida. Da parte dos nazistas, sua
tática consistia em transformar os efeitos da carência de tudo – a fome, a
sede, o frio, a sujeira – em causa; como se tudo estivesse acontecendo porque
os judeus fossem originalmente como animais, e não o contrário. Essa é a
formação básica do processo de alienação: trocar os efeitos pelas causas.
Nas páginas do diário de Liwia, como nas de vários
outros sobreviventes, fala-se muito de comida. Um nabo, uma fatia de maçã,
cascas de batata, metade de uma ração de sopa congelada e infectada, um resto
de manteiga, tudo é motivo para viver mais um dia, e a vida, nessas condições,
é um dia. Ela conta das batatas podres que comeu, dando muita risada. Comíamos
batatas podres como se fosse ouro! Nunca comi nada tão gostoso. Sabe, quando a
gente tem fome, tudo parece bom!
Talvez fosse por isso que ela transformava várias
comidas, durante a nossa infância, em brincadeira. Tinha as salsichas cortadas
em pedacinhos e montadas sobre bolinhas de pão preto, espetadas com um palito
de dente: eram os soldadinhos. Tinha o frango cozido no centro do prato,
cercado de arroz e o molho esbranquiçado nas bordas: era a ilha. Os bolinhos de
massa de batata recheados de geleia e, com os restos da massa, umas tirinhas,
que eram as cobrinhas. Os ovos com espinafre; a sopa de pêssego e claras de
neve; o sorvete de café no canudinho. O goulash, o cholent, que
ela ficava preparando durante toda a noite, acordando duas vezes para mexer na
panela. Carne, ovos, batata e feijão branco, tudo misturado. Comida de quem não
tem o que comer e, misturando tudo, inventa um prato que acaba sendo
incorporado à culinária. O bife de contrafilé, passado só na manteiga, sem
bater e frito na chapa. Os jantares de sexta-feira, quando vinham a avó e seu
irmão, o tio Artur. Jantares caprichados, com entrada, prato principal e
sobremesa. Ela nunca foi muito esmerada na cozinha, nem nunca soube fazer
muitos pratos, mas dominava perfeitamente aqueles que fazia. E os bolos de Yom
Kippur: rocambole de chocolate, com o chocolate respingando quente; rocambole
de nozes. Macarrão com geleia no forno. Ela parece ter mais prazer em ver os
outros comerem do que em comer propriamente. Come muito pouco e nunca gostou de
restaurantes. Sempre quer dividir as porções e não se conforma com os pratos
individuais.
Toda a estratégia nazista de liquidação, de
extermínio radical, além do assassinato direto, consistia em produzir fome. A
fome é a pior privação, a mais bestial de todas, e era ela que sustentava todo
o processo paranoico e de extermínio da identidade humana e cultural dos
prisioneiros. Não se tratava somente da dificuldade material e logística de
enviar todos para as câmaras de gás; era uma etapa necessária do trabalho de
diluição do homem no homem. Os campos de concentração são a fome; mais do que
tudo é ela a determinante de todos os outros acontecimentos, belos ou horríveis.
PALAVRA
Mãe, se você precisar se lembrar
de alguma palavra que diziam no campo, qual seria? Achtunge
Zeltappell. Só me lembro dessas duas. Mas você não se lembra de mais
nenhuma palavra? Não, não me lembro, não. Só isso que você quer saber?
A filha fica irritada. Como é possível ela não se
lembrar de mais nenhuma palavra, se passou onze meses no campo? Nem palavras
dos oficiais, nem dos outros prisioneiros, nem as que ela mesma deve ter
pensado? Por que não se lembra de palavras, se não existe nada mais importante
do que elas? E ela ainda pergunta se é só isso que a filha quer saber. Como se
fosse pouco.
Liwia tem vergonha de que o diário que ela escreveu
na Suécia seja publicado, porque acha que não tem estilo literário nenhum e
sabe que o texto da filha vai ser carregado de estilo. Não há como comparar, a
mãe pensa. Como aquele diário tão simples, tão sem palavras, poderá aparecer
junto com as impressões da filha, que se preocupa tanto com a forma como as
coisas são ditas? Ela não entende que é justamente isso o que a filha procura.
Tem vergonha, eventualmente, das palavras de que se lembra. Não são palavras à
altura dos pensamentos complexos da filha.
Como será para ela ter uma filha que se ocupa de
palavras? Será que isso a faz se sentir mais envergonhada, orgulhosa, medrosa
ou será que foram justamente as palavras e as não palavras dela que fizeram a
filha escolhê-las para viver? Afinal, a filha está tentando dizer o que ela não
quis, não pode dizer. A filha sabe e a mãe autoriza que essas palavras sejam
ditas agora, da maneira que a filha quiser. Como ela poderá escolher as
palavras das quais a mãe não se lembra? A filha fantasia: se tivesse estado lá,
se lembraria de tantas coisas. Outra licença indevida, como tantas que
acontecem nesse sequestro e apropriação das palavras da mãe. É preciso roubar
um pouco da vida do pai, da mãe, para conseguir sustentar sua sobrevivência.
Ter estado onde eles estiveram, em seu lugar, é uma fantasia ridícula, mas
inevitável. É um capricho, uma veleidade, mas é também uma redenção. O desejo
de salvar um pouco o sofrimento já vivido.
Achtung significa
atenção. Zeltap-pell significa chamada. Atenção, ao menos em português,
é um chamado para que alguém seja mais cuidadoso, olhe mais em redor, fique
mais concentrado, mas também é o cuidado que se tem para com alguém, um olhar
mais demorado, alguma forma de carinho. Mas em alemão, não. Achtung, em
alemão e nessas condições, quer dizer: é proibido! Não faça isso! Uma falsa
advertência. Um disfarce, como se dizendo: se você fizer isso, será punido. Mas
que diferença isso faz, se, mesmo não fazendo aquilo, o prisioneiro também será
punido? Para que prestar atenção? Para que advertir? Como é difícil entender a
lógica do medo que se instala na linguagem, o porquê da linguagem recrudescer
um medo que está além e aquém dela. Como se ela fosse um anteparo: se o soldado
não disser Achtung, quem sabe o prisioneiro não poderá se sentir mais
tranquilo? Mas, se ele disser, é melhor se precaver.
A filha não entende nada. Como ela reagiria diante
de umAchtung que, na verdade, não quer dizer nada? A filha não aguenta
palavras que não querem dizer nada. Fica escarafunchandoo significado de cada
placa de trânsito; apoia-se na etimologia de cada coisa para entendê-la melhor,
esmiuçá-la até transformá-la em alguma possibili-dade de poesia.
O Zeltappell era a chamada que os nazistas
faziam várias vezes por dia, com o pretexto de verificar se todos os números
batiam, se os prisioneiros da manhã eram os mesmos da noite, se ninguém havia
sumido, fugido, adoecido, dormido, morrido.
Atenção e chamada foram as duas únicas palavras que
sobraram na memória dela, de onze meses de terror. Como se o campo tivesse sido
uma sala de aula. Atenção para a chamada.
Se a filha precisasse se lembrar de algumas palavras
que simbolizam sua mãe, diria “que que fala quê?” – que é o que ela diz quando
quer se lembrar de algum assunto que esqueceu. É sua maneira de dizer: “O que
eu queria falar?” “Premiera”, que é o seu jeito de dizer “primeira”. “Volan”,
que é “volante”. “Que tem novidade?”, no lugar de “Tem alguma novidade?”. No
news, good news. “Não tem importância” e “Que que tem?”. Ela transforma
várias palavras e perguntas do dia a dia em música. Se alguém diz que quer
comer, ela canta: “Comer, comer, é o melhor para poder crescer!” Até hoje ela
não aprendeu a falar o xingamento “Vai tomar banho”. Diz assim: “Vai tomando
banho.” Sempre que alguém a fechava no trânsito, era isso o que ela dizia,
enquanto ainda dirigia: “Vai tomando banho.” É o pior xingamento que ela consegue
dirigir a alguém.
Nos últimos anos, ela tem, cada vez mais, ficado em
silêncio. Nas reuniões familiares, o que ela mais faz é ficar olhando; um pouco
para o vazio, um pouco para as pessoas. Às vezes ela solta um: “Tudo isso saiu
de mim!”
No casamento da neta, era inevitável vê-la embaixo
da chupá[11]e pensar: ela saiu da guerra e
agora está ali, vendo a neta se casar no Brasil. Onde a história foi parar?
Como os caminhos foram percorridos? Qual será a sensação de ter estado lá e
agora estar aqui? Qual é o percurso estabelecido pela memória que passa por
essas duas coisas? A impressão que dá, quando ela queda silenciosa, é que algo
assim deve estar passando, mesmo que em silêncio, por sua cabeça. Olhos
queveem, mais do que palavras que possam dizer este pequeno absurdo que é essa
mudança de destino. Como é possível uma só vida encerrar duas possibilidades
tão distintas? Que palavras poderiam dizer isso? Achtung e Zeltappell?
Onde foram parar estas palavras, agora? Em que boca elas estão, por quem elas
estão sendo ditas, que palavras podemos dizer nós, que palavras ela pode
lembrar, tanto quanto aquelas que ela esqueceu?
Quais são
as palavras que ela esqueceu?
Um dia,
ao telefone, ela, que gosta de ficar imaginando situações, perguntou à filha:
“Filha, o que os cegos estão sonhando?” De início, a filha não entendeu.
Parecia tratar-se de cegos específicos em uma situação específica e que aqueles
cegos estariam sonhando alguma coisa naquele instante. Ela acrescentou: “Sim! O
que eles estão sonhando, se não enxergam? Como podem ver imagens nossonhos?”
Então a filha entendeu e se lembrou de que a mãe confunde os usos do presente
simples e do presente contínuo. “O que os cegos estão sonhando?”, na verdade, é
“O que os cegos sonham?”. Mas, de uma forma inesperada e subitamente bela,
aquela frase, em sua suspensão do tempo, em seu deslocamento gramatical e
semântico e em seu significado autônomo, como que independente de qualquer
lógica narrativa, sintetiza exa-tamente o estar no mundo da mãe. Como se ela
estivesse fincada no presente contínuo, num eterno vir a ser, maravilhada com
as possibilidades do mundo e da natureza. Houve a guerra, houve o exílio, o
sofrimento, tudo. Mas esse passado, que houve e que não é negado, mas
esquecido, se mistura, em sua memória, a uma disposição perene para o presente,
sem o domínio perfeito da gramática, mas como uma apropriação deslocada, em que
a percepção das coisas importa mais do que as coisas mesmo.
[1]Senta, cidade na província sérvia
chamada Vojvodina (pronuncia-se “vóivodina”), às margens do rio Tisa.
[2]Szeged, a terceira maior cidade
da Hungria, ao sul do país, próxima à fronteira com a Sérvia.
[3]Baja (pronuncia-se “báia”) é um
vilarejo na Hungria, a 150 quilômetros ao sul de Budapeste. Fica ao norte da
fronteira entre Hungria, Croácia e Sérvia.
[5]Hajnal (pronuncia-se “cainal”) é
um nome húngaro.
[6]Nome das Forças Armadas da
Alemanha nazista, entre 1935 e 1945. As Waffen-ss eram o braço do esquadrão de
proteção do Partido Nazista, que reunia as polícias secreta e política.
[7]Pequena cidade da Dinamarca, na
fronteira com a Alemanha.
[8]A data correta seria 2 de junho.
[9]Pronuncia-se “boje pravde” – são
as primeiras palavras dos versos do hino nacional da Sérvia: Ó, Deus da justiça.
[10]Alusão ao fato de que o regime
monárquico da dinastia dos Karad-jord-jevićfoi derrubado por Tito, que
proclamou a República e instaurou um regime socialista unipartidário, com o fim
da Segunda Guerra Mundial.
[11]Espécie de tenda sob a qual se
realiza o casamento judaico.