Quem descobriu esses crematórios
foi o geógrafo e professor da Universidade Estadual de Londrina Nilson César
Fraga, em 2000, durante uma expedição exploratória, com seus alunos, na região
dos antigos enfrentamentos entre a população cabocla e as forças militares do
poder estadual e federal brasileiro, travados em áreas disputadas pelos estados
do Paraná e de Santa Catarina. “Não sabíamos dessas coisas tão violentas
naquele território”, afirma.
Os crematórios, pelo menos 12,
ainda existem nas terras do Contestado, segundo o geógrafo, e estão em
propriedades privadas sem a devida conservação e manutenção. É impossível
quantificar os cremados nesses fornos, até porque o número de mortes na batalha
não é algo pacificado entre pesquisadores: dizem que foram de 10 a 20 mil, mas
o número poderia chegar a 30 mil. Fraga explica que a maior parte dos
crematórios se encontra na cidade de Lebon Régis (SC), numa localidade chamada
Perdizinha, para onde a população cabocla avançava nos meses finais do conflito.
Mas há outros também perto de Porto União (SC) e União da Vitória (PR).
Centenário
No dia 22 de outubro deste ano se
recorda o centenário do início da guerra do Contestado: foi nessa data que o
coronel João Gualberto e o monge José Maria foram mortos na Batalha de Irani. O
início da guerra, porém, assim como vários fatores que envolvem o conflito, não
são questões bem definidas. O historiador Everton Carlos Crema, professor da
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do Paraná (Fafi), explica que já
havia conflitos de terra na região antes de 1912. Há ainda outros historiadores
que definem o início da guerra apenas com a formação do ajuntamento dos devotos
do monge, em Taquaruçu, em 1913.
Turmeiros
É justamente no clima de 100 anos
da guerra que diversos historiadores têm se debruçado sobre o assunto para
desvendar questões pontuais. Por causa dos relatórios deixados pelo coronel
Setembrino de Carvalho, nomeado pelo governo federal, acreditava-se que quem
havia construído a estrada de ferro na região seria bandido e que esses
“bandidos”, como descreve Setembrino, eram responsáveis por encabeçar o
movimento dos caboclos.
“Colocava-se ainda que esses
turmeiros teriam vindo do centro do Brasil. Na minha pesquisa de doutorado,
pude perceber que não era bem isso”, afirma Márcia Janete Espig, autora do
livro Personagens do Contestado: os turmeiros da estrada de Ferro São Paulo -
Rio Grande. Márcia conseguiu documentos que comprovam que quase todos os
turmeiros (quase 10 mil) deixaram a região antes mesmo de a guerra começar,
conforme terminavam os trabalhos.
Quem perdeu foi o PR, não os
donos de terra
O Paraná saiu perdedor na Guerra
do Contestado porque teve de abrir mão de uma grande área de terras para Santa
Catarina (todo o oeste catarinense). O acordo da delimitação territorial foi
assinado no fim do conflito, em 1916, a pedido do presidente Venceslau Brás. A
nova delimitação dividiu ao meio alguns territórios, dando origem a cidades
diferentes, como União da Vitória (PR) x Porto União (SC) e Rio Negro (PR) x
Mafra (SC).
Entretanto, apesar de o Paraná
ter sido derrotado no acordo, os fazendeiros paranaenses não perderam nenhum
pedaço de terra. No acordo do limite, uma cláusula dizia que, mesmo nos
territórios que estivessem sob nova jurisdição (a catarinense), se houvesse
dúvidas sobre a propriedade da terra, valeria o título que estivesse em
cartório paranaense, explica o historiador Paulo Pinheiro Machado, autor de
livros sobre a guerra, entre eles Lideranças do Contestado: a formação das
chefias caboclas.
Já os caboclos foram certamente
os mais prejudicados, porque, além de terem perdido a guerra física (no final
estavam esgotados e morrendo de fome por causa do cerco feito pela Guarda
Nacional), foram escorraçados de suas terras e tiveram ou de ir para regiões
mais distantes (montanhas e lugares de terras inférteis) ou voltaram para as
fazendas, mas sob a condição de peões. Poucos conseguiram voltar para seus
próprios sítios.
Lei
Vale lembrar que o Brasil tinha
uma lei de terras de 1850, mas ela beneficiava o acesso à propriedade apenas
por compra, herança ou doação, o que quer dizer que os incentivos que existiam
no Brasil (de que quem cultivasse a terra seria o proprietário dela) não valiam
no papel, porque os caboclos, por exemplo, tomaram posse das terras do
Contestado e as cultivaram, mas não conseguiram ter a titularidade das
propriedades.
“É óbvio que as terras tinham
donos. Eram dos caboclos, dos grupos miscigenados que viviam na região. Mas
como eles teriam condições de pagar um agrimensor para fazer a legitimização da
terra? Além disso, eram os coronéis da região que determinavam quem seria o
pároco, o delegado e o cartorário. Ou seja, o cartorário não iria beneficiar os
caboclos”, explica o historiador Everton Crema.
Guerra do
Contestado
A
Guerra do Contestado foi um conflito armado entre camponeses e militares dos
poderes estadual e federal brasileiro, que ocorreu no início do século XX, mais
precisamente no ano de 1912 se estendendo até 1916. Essa guerra ocorreu no Sul
do Brasil, numa disputa entre os estados do Paraná e Santa Catarina, que tinha
como objetivo a posse da região rica em erva-mate e madeira.
A
guerra recebeu esse nome devido ao fato de ter ocorrido em uma região de
disputas de limites entre dois estados brasileiros. Tudo começou quando estava
sendo construída uma estrada de ferro entre São Paulo e Rio Grande do Sul, por
uma empresa norte-americana (Southern Brazil Lumber & Colonization
Company), com o auxílio dos coronéis, que na época eram os grandes
proprietários rurais e tinham força política, e também com o apoio do governo.
Mas
a construção dessa estrada de ferro acabou prejudicando os camponeses, fazendo
com que eles perdessem suas terras e ainda fossem expulsos das mesmas, devido
também a compra de uma grande área da região por um grupo de pessoas ligadas à
construtora, com o objetivo de montar uma grande empresa madeireira para a
exportação de madeira brasileira para outros países.
Esses
fatos acabaram resultando muito desemprego entre os camponeses da região que ficaram
sem terras para trabalhar, assim causando grande revolta por parte deles. A
situação ficou ainda pior com o fim da construção da estrada de ferro, pois os
trabalhadores que foram trazidos de diversas partes do Brasil para trabalhar
nela ficaram sem emprego com o fim da obra. E ainda a empresa norte-americana
não ofereceu qualquer apoio a eles nem mesmo o próprio governo.
Nessa
época, sem esperança e com sede de justiça, os camponeses deixavam se levar por
líderes religiosos que pregavam a chegada de um messias para ajudar na causa de
um povo oprimido. Foi assim que diante dessa crise o beato José Maria que
pregava a criação de um novo mundo, regido pelas leis de Deus, um lugar onde
haveria paz, justiça, prosperidade e terras para trabalhar, conseguiu reunir
milhares de seguidores, entre eles em sua maioria os camponeses que perderam
suas terras.
Assim
preocupados com a liderança de José Maria os coronéis da região e o governo
resolveram agir enviando policiais e soldados do exército para o local para
acabar com o movimento. Assim houve sangrentas batalhas entre os militares e os
camponeses que armados com espingardas de caça, facões e enxadas resistiram,
enfrentando as forças oficiais, que se encontravam bem armadas.
Mas
o conflito de nada adiantou, pois como os camponeses não estavam preparados
para enfrentar a guerra e acabaram morrendo milhares de revoltosos, enquanto as
baixas do lado das tropas foram bem menores.
Mesmo
assim a guerra durou por quase quatro anos, chegando ao fim em 1916, quando as
tropas oficiais conseguiram prender Adeodato, um dos chefes do último reduto
dos camponeses, sendo condenado a 30 anos de prisão.
Esse
conflito mostrou como o governo tratava as questões sociais no início da
República, levando em conta os interesses financeiros de grandes empresas e
proprietários rurais, enquanto a população mais pobre sofria com essas
injustiças, sem dar espaço para negociações.
Potiguara e seu Estado-Maior
Treinamento do Exército em Três Barras
Aviões empregados pela primeira vez pelo Exército
Causas
O professor Paulo Pinheiro
Machado explica resumidamente quais foram os fatores principais que culminaram
na Guerra do Contestado:
Terras
A disputa pela terra é certamente
a causa principal da guerra, em decorrência da tentativa de expropriação de
posseiros e ervateiros caboclos, que aconteceu em três processos diferentes. No
primeiro deles, houve a gradativa concentração fundiária promovida por
pecuaristas, que transformavam em agregados os posseiros e sitiantes que viviam
independentes, nos limites das fazendas. Posteriormente houve a concessão de
até 15 km de cada lado do leito da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande para a
empresa norte-americana Brazil Railway Company. E também a grilagem de coronéis
da Guarda Nacional do Paraná sobre os territórios contestados por Santa
Catarina.
Coronelismo
Há uma forte crise política nos
anos 1911 a 1918, com a quebra de laços clientelísticos, principalmente nos
municípios de Curitibanos (SC) e Canoinhas (SC).
Militarização
Muitas autoridades municipais
mantinham grupos de vaqueanos armados disponíveis para a ação nas regiões
contestadas.
Campanha federalista
A herança política e militar da
Guerra Federalista (1893-95), de recrutar agricultores e peões para os dois
lados da contenda, trouxe à população do planalto uma tradição de luta e o
conhecimento de práticas de combate.
Religiosidade
A trajetória do monge ou dos
diferentes indivíduos que assumiram a identidade de João Maria criou um espaço
de autonomia e organização da população sertaneja, independente do Estado e do
Clero.
Consequências
Consolidou-se a concentração
fundiária, reforçaram-se os poderes dos coronéis, diminuíram a autonomia e a
independência de pequenos posseiros e sitiantes.
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