Segunda, 11 de maio de 2009
Terra Magazine
Fernando Eichenberg, de Paris
O fim de semana passado foi esticado para os franceses graças à sexta-feira de folga do trabalho. A França comemora com um feriado o 8 de maio 1945, data oficial do fim da Segunda Guerra Mundial na Europa (a capitulação alemã entrou em vigor às 23h01). O dia 20 do mês passado marcou outro acontecimento, o qual, ao contrário do 8 de maio, não é motivo de comemoração: os 120 anos do nascimento de Adolf Hitler.
Recentemente, entrevistei aqui o historiador britânico Ian Kershaw. Nascido em 1943, no dia 29 de abril (nove dias depois do aniversário do Führer), em uma Inglaterra bombardeada em plena Segunda Guerra Mundial, Kershaw se tornou historiador do nazismo e biógrafo de Hitler de reputação internacional. Suas pesquisas históricas, no entanto, debutaram com a Idade Média, em estudos sobre a economia monástica na Inglaterra dos séculos 13 e 14. Nos anos 1970, seduzido pela história mais recente, mergulhou no período mais difícil, delicado e trágico da Alemanha moderna. Suas teses sobre as especificidades da liderança carismática e da popularidade de Hitler ampliaram as perspectivas da compreensão das engrenagens e dos mecanismos do nazismo.
Nenhum dirigente político do século 20 tenha talvez igualado o grau de popularidade alcançado por Adolf Hitler na Alemanha, nos dez anos que se seguiram a sua chegada ao poder, em 30 de janeiro de 1933. O apoio da população ao partido nazista era tímido se comparado à veneração dos alemães pelo seu líder máximo. O culto ao mito exerceu um papel determinante no funcionamento do Terceiro Reich e na aterradora dinâmica do nazismo. Adorado pelo povo, adulado por seus subordinados e temido no resto da Europa e no mundo, Hitler entrou para a história como a encarnação da barbárie, o artífice do Holocausto, o símbolo de um dos regimes mais horrendos já conhecidos da humanidade.
Ian Kershaw, hoje professor de História Moderna na Universidade de Sheffield, é autor de um monumental trabalho sobre o Führer. Sua biografia de Hitler - editada em dois consistentes volumes de cerca de 2,5 mil páginas no total - é considerada por especialistas como a melhor já publicada até hoje. Durante sua breve estada em Paris, para participar do lançamento de uma versão resumida do livro, o generoso historiador reservou um espaço de sua disputada agenda para, em uma sala do hotel em que estava hospedado na capital francesa, no bairro Odéon, conversarmos sobre o mito Hitler.
A entrevista foi feita para a revista Aventuras na História (ed. Abril), publicada na edição do mês passado (04/09), mas como o papo se estendeu e muito de nossa conversa permaneceu inédito aproveito aqui para disponibilizar a íntegra.
Para o senhor, Hitler é um perfeito exemplo da teoria de "liderança carismática" do sociólogo Max Weber (1864-1920). A real importância de Hitler não estava em si mesmo, mas em como os alemães o viam.
Ian Kershaw - Na definição de Max Weber de líder carismático, a maioria dos exemplos usados são personagens religiosos. Em períodos de grande crise, esses personagens, profetas, pareciam oferecer a salvação para as pessoas. Para Weber, carisma era algo visto no personagem por aqueles ao redor dele. Não significa necessariamente que o personagem era grandioso, num sentido convencional, ou que possuía algo especial. Mas ele tinha qualidades de liderança heróica, investidas nele pela visão dos outros, o que Weber chamava de "comunidade carismática". Para a Alemanha nazista, apliquei esta noção de Max Weber em certas condições que ele próprio obviamente não poderia imaginar, pois aqui, esse indivíduo Hitler não tinha grande apelo pessoal e era um talentoso orador popular, além disso é difícil ver o que o povo enxergava nele.
Nesse contexto da República de Weimar, da perda da guerra, da humilhação nacional, turbulências políticas, miséria econômica, crise cultural, as pessoas estavam preparadas para investir nesse indivíduo, ver nele qualidades de grande liderança que poderiam trazer uma salvação nacional para a Alemanha. À medida que o partido nazista ganhava terreno, mais pessoas eram atraídas pelo apelo popular de Hitler, e mais ele pôde desenvolvê-lo. Até chegar ao poder, o culto de Hitler era um fenômeno que pôde ditar a natureza do regime. O que se vê é um estranho modelo de liderança imposto a uma moderna forma de funcionamento de estado burocrático. E as tensões e estruturas do regime nascem da natureza dessa liderança carismática.
O senhor diz que Hitler era um "ditador preguiçoso", não tinha muito interesse em se envolver no funcionamento diário da Alemanha nazista, exceto nas decisões militares e de política estrangeira. Mas discorda da tese do historiador alemão Hans Mommsen de que Hitler era um "ditador fraco". Como defini-lo?
O estilo de sua liderança não era de microgerenciamento, de se envolver em todos os níveis. Não era como a liderança de Stalin, que absorvia tudo, em um forma burocrática estabelecida para que ele controlasse todas as diretivas. Hitler se contentava em deixar as coisas correrem, enquanto estivessem indo na direção que ele determinou. Em momentos cruciais ele teve de intervir para tomar decisões-chave. Na política estrangeira, tomou decisões cruciais. Em outras questões, durante a guerra, ele estava longe de ser um "ditador preguiçoso", mergulhou mais e mais no microgerenciamento com componentes militares, o que foi catastrófico para a Alemanha. Na guerra, como notou Albert Speer (1905-1981, ministro do Armamento do Terceiro Reich), o Hitler velho "ditador preguiçoso" desapareceu e se investiu completamente na direção e administração do conflito. Isso consumiu praticamente cada hora de seus dias e de suas noites. Hitler mudou em certas coisas ao longo dos anos.
De que forma sua teoria "Trabalhar para o Führer" (Working Towards the Führer) explica a particularidade da liderança de Hitler?
Num sentido, "Trabalhar para o Führer" é uma idéia que você pode aplicar em qualquer tipo de administração. É a forma como opera o gerenciamento, em que as pessoas antecipam o que o patrão quer e tentam se assegurar de que estão fazendo a coisa certa. Nesse caso, temos uma forma extrema, em uma estrutura política enquadrada, na qual Hitler representava um número de ideias-chave que outras pessoas procuravam colocar em prática. Essas ideias eram imperativos ideológicos cruciais, como a remoção dos judeus e a expansão territorial. Estruturavam frouxamente uma visão para o futuro, mas ao mesmo tempo delineavam políticas abaixo de Hitler, sem que ele precisasse dar muitas direções, já que outras pessoas ansiavam em levar adiante essas políticas sozinhas, de acordo com os imperativos ideológicos de Hitler. Isso foi um elemento crucial da dinâmica desse regime, "Trabalhar para o Führer" dirigiu sozinho a dinâmica do regime. Pode-se notar como essa radicalização cumulativa atua e ganha espaço sem ordens diretas do próprio Hitler.
O senhor afirma que a Alemanha Nazista era constituída de uma reunião caótica de burocracias rivais em constante luta. A ditadura nazista não era um totalitarismo monolítico, mas uma coalizão instável de diferentes blocos. Era ao mesmo tempo uma monocracia e um policracia.
É verdade. Mas o debate se era uma forma monocrática ou policrática de governo, de certo modo perde o foco principal. Claro que havia diferentes grupos de poder dentro do Estado, mas cada um deles tinha de operar de uma forma coincidente com as ideias representadas pelo próprio Hitler. O determinante crucial desse regime era a liderança de Hitler. Sem isso, haveria somente a competição de feudos, de lordes, abaixo de Hitler. Nesse nível, era policrático. Mas o centro determinante era monocrático.
Cada um desse grupos rivais tinha de apelar a Hitler, não desafiava Hitler, nem competia com Hitler, antes havia a concretização de seus desejos por meio desses grupos rivais abaixo dele.
Há Hitler, o mito, e Hitler, o homem. O senhor o descreve como uma pessoa tediosa, sό Goebbels e outros poucos eram capaz de suportá-lo.
Como homem ele representava esse enorme poder. O que ele representava, sua figura de poder, era interessante às pessoas. E por causa disso, pessoas achavam ou diziam que achavam o que ele dizia interessante. Ele podia entusiasmar as pessoas em volta quando falava sobre arquitetura ou música, mas era também bastante repetitivo. Seus secretários e assistentes ouviram as mesmas histórias centenas de vezes, havia uma repetição monótona das mesmas coisas. Ele não era interessante no sentido dos grandes filósofos, pensadores ou artistas. O interesse que ele provocava nas pessoas ao redor vinha do poder que ele encarnava, ele oferecia um futuro brilhante para elas e para a Alemanha. Ele era um homem capaz de oferecer às pessoas oportunidades impossíveis de imaginar. Quando Hitler chegou ao poder, parecia que o céu era o limite, você pode fazer mais do que quer, há dinheiro para os seus projetos. Se você é arquiteto, construa seus enormes e monumentais edifícios. Se você é engenheiro, projete uma via férrea até a Criméia. Se você é médico, além de experiências em animais, agora pode fazê-las em seres humanos. Em todos esses caminhos, aberturas se tornaram possíveis. Projetos grandiosos e desumanos se tornaram possíveis. Para todas as pessoas que tinham algum poder ou autoridade se abriu uma janela grandiosa. E Hitler representava isso. Por um lado, ele era tedioso, monótono ou repetitivo falando sobre música, artes, arquitetura ou o futuro da Alemanha, construção e engenharia. Mas havia também um excitamento das pessoas, pois elas podiam enxergar todas as possibilidades de se beneficiar de tudo isso.
Isso em relação a sua entourage. Para a massa da população, que ouvia Hitler no rádio ou em seus comícios, ele era a imagem. Como num show de música pop, seu herói é o cantor pop, você não conhece aquela pessoa, sô vê a imagem, o que ela representa via a mídia de massa. De uma certa forma, era o caso de Hitler também.
Hitler dizia "caminhar com o destino", ser guiado pela Providência. Fazia parte do mito ou ele realmente acreditava nisso?
Ele acreditava. Era esse tipo de individuo que sentia ser, desde cedo, alguém realmente especial. Qual a psicologia por trás disso não está claro. Há sinais de que ele sempre pensou que era alguém diferente e especial. O fato de que, até o final da Primeira Grande Guerra, era um fracassado, era ninguém, não tinha futuro, tudo isso parecia trancado dentro dele, como alguém que não obtinha o que merecia. Mais tarde, no período pós-guerra, as circunstâncias mudaram, ele se via como alguém especial e então outras pessoas começaram a dizer: "Sim, você tem algo especial. Isso é música para os ouvidos, todos dizendo que você é uma grande figura. Em seus discursos, ele podia entusiasmar os indivíduos como as massas. As pessoas o viam como alguém completamente diferente, um político com ideias diferentes, ele falava às pessoas comuns de uma maneira que outros não o faziam. Então ele começou a assumir seus atributos de líder carismático autoritário. Ele sente que é um futuro grande líder. A sensação de "caminhar com o destino" se intensifica mais o tempo avança, mais ele obtém sucessos, mais ele tem a adulação das massas, mais ele pensa que é infalível, mais ele pensa que caminha com "a certeza instintiva de um sonâmbulo" - como ele disse em 1936.
E, obviamente, no período da guerra, quando ocorrem coisas como o atentado contra a sua vida, que falhou em 1944, ele vê isso como um sinal da Providência, que ele está destinado a conduzir a Alemanha até o último minuto, que foi salvo pela Providência.
Não é somente uma criação de propaganda, mas algo em que ele realmente acreditava. Hitler era muito perigoso como político, porque tinha essa incomum combinação de um ideólogo idealista e firme com um brilhante propagandista, junto com um esperto homem de Estado que conhecia a fraqueza de seus oponentes. Era também alguém que acreditava em sua própria capacidade. Investia em coisas nas quais realmente acreditava de forma séria e determinada. Isso tudo junto fazia dele um tipo de líder muito perigoso, um caso patológico de líder. Não apenas um charlatão da propaganda - como algumas pessoas pensaram após a guerra e mesmo nos dias de hoje -, mas um ideólogo resoluto com um talento de propagandista de massas e uma grande habilidade para descobrir as fraquezas de seus inimigos.
Perto do fim, com derrotas importantes nos dois fronts - leste e oeste -, Hitler acreditava que poderia virar o jogo e ainda vencer a guerra?
Até um estágio muito perto do fim ele pensou que ainda havia alguma chance, acreditava que algo aconteceria para salvar a Alemanha, que haveria no último momento uma disputa entre os Aliados, e não era o único a pensar nisso. Achava que algo aconteceria. Penso que somente muito tarde ele se deu conta de que havia realmente perdido. Por outro lado, ele teve momentos de absoluta lucidez e realismo na guerra. Ele reconhecia a realidade, não era um idiota. Podia reconhecer a força de seus inimigos, o fato de que as defesas alemãs estavam destruídas. Nesse sentido, penso que nas últimas semanas do Terceiro Reich, por um lado, ele se agarrava as suas última chances, como um náufrago que se agarra a qualquer pau de madeira; por outro, tinha consciência de que estava acabado e se preparou para uma saída heróica, para o final heróico, a noção de sua meta crucial - "nunca mais a capitulação de 1918" -, desta vez entraria para a história, deixaria um legado para o futuro. Acho que foram esses os pensamentos de Hitler nas últimas semanas da guerra.
A liderança carismática de Hitler é autodestrutiva?
É autodestrutiva. E tem relação com a sua própria capacidade. Nos seus últimos meses, o apelo das massas de Hitler se desintegrou bastante. O grande apelo do povo alemão que ele tinha antes estava agora acabado, as pessoas viam Hitler como um obstáculo para o fim da guerra, de forma bastante correta, penso. Mas as pessoas em volta de Hitler ainda tinham uma ligação individual com ele. Além disso, a liderança carismática destruiu a capacidade efetiva do regime de agir como coletividade. Não era possível desafiar Hitler. Isso é autodestrutivo. Hitler era insubstituível, e enquanto ele estava lá o caminho para a destruição já estava feito, ninguém poderia removê-lo, não havia possibilidade de complô contra ele, não havia forma de organização na Alemanha como a que depôs Mussolini (1883-1945) na Itália, em julho de 1943. Nesse sentido, era intrinsecamente autodestrutivo.
"A Queda" (2004, sobre as últimas horas de Hitler) é um bom filme na sua opinião?
Penso que é um filme muito bom. Distorce acontecimentos de algumas maneiras, como faz qualquer filme de ficção, por isso melhor não vê-lo como História. Mas é um bom filme de ficção. Foi o que eu disse ao produtor, Eichinger (Bernd): "É um excelente filme, mas não é História". Se você vê um personagem-chave no filme - à parte Hitler, obviamente -, sua secretária, Traudl Jungl. Na realidade, ela era apenas uma secretária, não tinha um papel importante. Realmente importante no bunker era Martin Bormann, que raramente aparece no filme. Nesse caso, há uma distorção da realidade. Há uma série de outros pequenos detalhes que não cabe falar aqui. Mas o principal é que qualquer filme de ficção, quão bom seja, deve ter algo essencial dos verdadeiros acontecimentos, mas de todo modo é uma criação.
Se você faz um documentário, não pode inventar palavras, deve se ater às gravações históricas. Num filme de ficção, você pode, porque é mais impressionante do ponto de vista dramatúrgico. Claro, há todas essas outras questões, muitos críticos alemães disseram que o filme se limita aos acontecimentos passados no bunker, que humaniza Hitler, não mostra o que ocorre na Alemanha. Tudo isso é verdade, mas um filme tem limites, e o foco desse filme está no que acontece no bunker. Sobre a humanização de Hitler, ninguém poderá achá-lo um personagem simpático nesse filme. Por outro lado, Hitler era um ser humano, ele poderia ser gentil com secretárias. Isso não significa que ele não fez todas essas coisas horríveis e que foi menos responsável pelo genocídio ou pela catástrofe que se abateu sobre a Alemanha e a Europa. Mas por que também não mostrar esse outro lado? É uma tentativa de se distanciar da desumanização de Hitler, o que é bom.
O senhor conta que quando o ditador italiano Benito Mussolini esteve preso na ilha de Ponza, Hitler deu um jeito de lhe enviar como presente de aniversário de 60 anos as obras completa do filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1944-1900). Hitler era um bom leitor?
Hitler leu muito mais do que se imagina. Ele leu muitas resenhas, mas duvido que tenha lido Nietzsche do início ao fim. Sua biblioteca ainda existe, com muitos de seus livros, na biblioteca do Congresso americano. Ele leu alguns livros, muitos estão inclusive sublinhados. Em muitos casos, no início ele aprendeu muito ao ler artigos nos jornais que resumiam livros. Não creio que ele tenha lido as obras de Karl Marx ou Lênin, por exemplo. Mas estou certo de que pode ter lido algo de Nietzsche. É interessante que ele tenha enviado suas obras para Mussolini: "Está aqui o que você precisa aprender" (risos).
Quais foram os limites da penetração ideológica e da propaganda de manipulação nazista? Na sua opinião, Joseph Goebbels (1897-1945, ministro da Propaganda) fracassou na criação da chamada Volksgemeinschaft (a comunidade do povo) da propaganda nazista, pois durante o Terceiro Reich os alemães estavam mais interessados em seu problemas cotidianos do que na política.
Isso também é verdade, mas em outras áreas a propaganda nazista foi bem-sucedida, principalmente na criação desse culto a Hitler, do mito Hitler como um grande líder carismático. A propaganda de Goebbels teve um papel importante na criação dessa idéia, que foi crucial e importante, unindo diferentes grupos rivais na Alemanha. A propaganda também foi muito importante para explorar o sentimento nacionalista dos alemães, sobre os quais se centraram conquistas do regime e do próprio Hitler. Outro ponto de sucesso foi na intensificação do antagonismo e do ódio aos judeus. A propaganda do antissemitismo se tornou mais intensa e radical. Na questão do nacionalismo, na propaganda da guerra e do mito Hitler, foi um sucesso, mas em outras áreas, da vida cotidiana, a propaganda foi menos sucedida. As pessoas se preocupavam mais com os problemas do cotidiano do que com todas essas questões de maior amplitude.
O senhor diz que o nazismo não pode ser definido como uma ideologia.
Havia um corpo ideológico, com um certo número de ideias inflexíveis e imutáveis. Ninguém poderia argumentar, por exemplo, que ser judeu era uma boa coisa na Alemanha, isso não era permitido naquele contexto. Havia um número limitado de ideias que, juntas, formavam uma ideologia. Mas eram um amplo amálgama de ideias difusas, facilmente inseridas dentro desse corpo de preceitos ideológicos. Eram ideias soltas que podiam ser adotadas e depois descartadas, que podiam ter um certo apelo para este ou aquele grupo da população. Mas as ideias centrais eram inflexíveis e imutáveis.
Quais foram os limites da penetração ideológica e da propaganda de manipulação nazista? Na sua opinião, Joseph Goebbels (1897-1945, ministro da Propaganda) fracassou na criação da chamada Volksgemeinschaft (a comunidade do povo) da propaganda nazista, pois durante o Terceiro Reich os alemães estavam mais interessados em seu problemas cotidianos do que na política.
Isso também é verdade, mas em outras áreas a propaganda nazista foi bem-sucedida, principalmente na criação desse culto a Hitler, do mito Hitler como um grande líder carismático. A propaganda de Goebbels teve um papel importante na criação dessa idéia, que foi crucial e importante, unindo diferentes grupos rivais na Alemanha. A propaganda também foi muito importante para explorar o sentimento nacionalista dos alemães, sobre os quais se centraram conquistas do regime e do próprio Hitler. Outro ponto de sucesso foi na intensificação do antagonismo e do ódio aos judeus. A propaganda do antissemitismo se tornou mais intensa e radical. Na questão do nacionalismo, na propaganda da guerra e do mito Hitler, foi um sucesso, mas em outras áreas, da vida cotidiana, a propaganda foi menos sucedida. As pessoas se preocupavam mais com os problemas do cotidiano do que com todas essas questões de maior amplitude.
Uma das grandes vantagens de Hitler como líder eram essas ideias, como a de remoção dos judeus. Poderia significar diferentes coisas para diferentes pessoas em diferentes tempos. Não se estava dizendo que era a única maneira que se tinha de fazer, eram ideias soltas, mas imutáveis e não contestáveis. A política tinha de ir numa direção específica, sem diretivas específicas. É isso que chamo de imperativos ideológicos. Alguns poucos eram enquadrados de forma solta, e porque eram soltos a ideologia de Hitler podia abranger pontos específicos nos quais alguns dos líderes abaixo dele estavam interessados. Muitas coisas eram flexíveis, exceto essas três ideias cruciais (nacionalismo, expansão e remoção dos judeus), que não eram passíveis de mudança.
Qual a relação entre o antissemitismo da população alemã em geral e o antissemitsimo ideológico do partido nazista?
Antes de Hitler se tornar líder, a Alemanha era um país no qual havia um antissemitismo latente muito difundido. Muitas pessoas não apreciavam os judeus, achavam que os judeus eram poderosos demais, controlavam a economia, a mídia de massa. Mas elas não eram propensas a se engajar em ações violentas contra os judeus, muito menos a se comprometer com qualquer noção ideológica de que judeus eram uma ameaça interna ou internacional à Alemanha. Hitler era ele mesmo o mais radical dos radicais em termos de antissemitismo. Muitos outros eram igualmente radicais, mas não com um pensamento tão consistente como o de Hitler em relação aos judeus. O que vemos é uma liderança nazista que transformou essa fixação paranóica em relação à ameaça interna dos judeus em algo externo. Quando Hitler assumiu o poder em 1933, havia essa paranóia antissemita representada pela liderança do Estado. E havia também pessoas que eram elas próprias não mais do que antissemitas latentes, procurando formas de mostrar que eram mais anitissemitas, agir contra judeus, prontos a se envolver em ações contra judeus.
Mais e mais pessoas foram absorvidos pelo partido nazista, que era determinado por esse antissemitismo racial, por essa necessidade patológica de expulsar os judeus da Alemanha. Mais as pessoas aderiam ao partido nazista, mais estavam expostas a isso. A nação se tornou mais intensamente antissemita. E o antissemitismo dos radicais do partido nazista se estendeu à burocracia de Estado, à organização policial, se tornou um leitmotiv do regime como um todo, sem ter penetrado da mesma maneira nas ideias do povo em sua maioria.
A política de genocídio foi decidida nos 12 meses compreendidos entre as primaveras européias de 1941 e 1942. Como isso se deu?
As reais decisões relativas ao genocídio tomadas nesse período emergiram como uma resposta ao processo daquele regime. É preciso entender isso em termos desse imperativo ideológico de remoção dos judeus, de destruição do poder dos judeus. Isso estava lá desde o início. Mas decidir como fazê-lo demorou, e as propostas mudaram ao longo do tempo. A idéia básica - remover os judeus e destruir o seu poder - permaneceu constante, mas as políticas práticas de opções mudavam com o tempo. Quando a guerra começa, a Alemanha estava lidando não só com 500 mil judeus no país, mas com outros 2,5 milhões de judeus na Polônia, por exemplo. As logísticas para tentar resolver esse problema da forma que os nazistas queriam - deportação, etc - fracassaram. Uma opção fracassou após a outra. Madagascar fracassou no verão de 1940, porque eles não controlavam os mares. Então a idéia foi a deportação para a Rússia. Logo que a guerra fosse vencida na Rússia, todos os judeus do oeste europeu seriam deportados para os descampados árticos da Rússia. Mas a guerra não terminou. Tiveram de ser pensadas outras iniciativas e encontradas outras alternativas.
A improvisação radical terminou na solução final e nas câmeras de gás, não na União Soviética, mas na Polônia. Esse processo foi desenvolvido em um curto período de tempo. A diferença com os genocídios da Armênia ou de Ruanda, por exemplo, é que nessa guerra o genocídio foi planejado cuidadosa e meticulosamente. Apesar disso surgir nessas condições em 1941, já havia um longo passado no qual o objetivo era o de destruir os judeus. A questão prática surgiu nesses meses de 1941 e do começo de 1942. Na conferência de Wannsee, em janeiro de 1942 (sobre a Solução Final da questão judaica), veem-se os planos serem meticulosamente traçados para a destruição de milhões de judeus, mesmo em países que a Alemanha não havia conquistado, como a Grã-Bretanha, Irlanda ou Suíça. Essa planificação meticulosa e burocrática não se vê nos genocídios da Armênia ou de Ruanda.
Segundo o senhor, Hitler teve uma papel decisivo no desenvolvimento da políticas do genocídio, mas, ao mesmo tempo, muitas das decisões que levaram ao Holocausto foram tomadas em níveis inferiores de poder, sem ordens diretas do Führer. Como funcionava esse mecanismo?
Há documentos sobre a Solução Final, mas não há documentos com "a" decisão de Hitler. Quase nunca houve documentos escritos, mas oficializações verbais. Mas há documentos que ligam Hitler ao aniquilamento de judeus. Sabemos que em dezembro de 1941 ele conversou privadamente com Himmler, por exemplo, sobre o extermínio de judeus. Os relatórios dos Einsatzsgruppen (grupos paramilitares de extermínio) sobre os massacres de milhões de judeus na URSS foram enviados a Hitler. Se ele os leu, não podemos provar, mas foram enviados para ele. Sabemos de um documento que lhe foi enviado que revela a morte de 350 mil judeus. É certo que ele tinha consciência de tudo isso. Seus próprios e repetidos comentários da chamada profecia sobre a destruição dos judeus indicam uma guerra em andamento. Sem Hitler, sem Holocausto. Ele foi absolutamente fundamental e central nessa política de extermínio.
Mas a parte prática disso tudo era algo que ele podia facilmente deixar para Himmler (Heinrich, 1900-1945, oficial da SS e da Gestapo), Heydrich (Reinhard, 1904-1942, oficial da SS e um dos líderes da Solução Final), e eles, por sua vez, podiam delegar para pessoas abaixo, como Eichmann (Adolf, 1906-1962, oficial da SS)e outros. Hitler não necessitava fazer nada no sentido prático para aplicar as políticas, mas a sua autorização era fundamental para o que devesse ser feito. Ele não falava abertamente sobre isso. Quando o fazia era de forma generalizada ou algumas vezes em uma linguagem não muito clara. As pessoas têm diferentes opiniões em relação aos arquitetos da Solução Final, se era Himmler ou Heydrich. Eu costumo usar a metáfora do edifício, em que você pode ver Heydrich como o chefe de obras e Himmler como o arquiteto. Mas ambos necessitavam de alguém que encomendasse o edifício, essa pessoa era Hitler.
No encontro de líderes da SS em Poznan, em outubro de 1943, Himmler disse que o extermínio dos judeus era "uma gloriosa página" da história alemã, "que nunca poderá ser escrita". Como era isso para Hitler?
Hitler considerava os judeus uma ameaça cósmica. Não se tratava apenas de uma ameaça interna na Alemanha, de 500 mil judeus numa população de 68 milhões de habitantes. Os genocídios na Armênia ou em Ruanda eram mais convencionais: há um grupo visto como um desafio ao poder ou um inimigo potencial para a sociedade, como eram percebidos os armênios; ou rivais na luta pelos recursos, no caso dos tutsis e hutus, em Ruanda. Na Alemanha, os judeus eram uma escassa minoria, 0,76% da população em 1933. Não estavam em uma posição de desafiar o poder nem de competir pelo governo. Eram um fantasma. Mas a ameaça foi aplicada internacionalmente, o que é uma outra diferença crucial. Não há só uma ameaça interna, mas uma ameaça que era então vista na relação entre os judeus e os bolcheviques na União Soviética.
Desse modo, os judeus estavam em Moscou dirigindo o bolchevismo, mas também dirigindo o capitalismo em Wall Street, em Nova York, ou na City de Londres. É uma ameaça internacional. Essa ameaça cósmica necessita uma solução apocalíptica, e era o que Hitler oferecia naquela época. Essa tentativa de destruir os judeus deve ser vista como única em termos de genocídio, nunca houve nada parecido antes. O tabu em relação a isso reflete a frase de Himmler - "uma página gloriosa de nossa história que não poderá ser escrita". Não havia neles nenhum sentimento moral de que estavam fazendo algo que fosse um crime, mas a questão é não sabiam qual seria sobre a resposta da população alemã em relação a isso. Remover e deportar judeus é uma coisa, mas notícias contando que maridos, irmãos estavam matando mulheres e crianças aos milhares era algo para o qual achavam que a população alemã não estava preparada. Por isso a preocupação em manter isso um segredo. Em discursos públicos, Hitler falou da vingança aos judeus por terem causado essa guerra, que suas profecias agora seriam cumpridas. Eram sempre termos vagos. Por um lado, ele está contando à população o que está acontecendo, por outro, a propaganda nazista está todo o tempo tentando endurecer as atitudes em relação aos judeus na Alemanha. Mas ninguém fala exatamente o que está acontecendo, ninguém descreve os massacres e tudo o mais, porque o povo alemão não estava preparado para isso. Por isso Himmler fala de "página gloriosa de nossa história" que deve ser mantida em segredo, "nunca poderá ser escrita".
O programa de extermínio de doentes mentais foi deflagrado antes, em setembro de 1939. Como o senhor compara esse processo com a decisão posterior em relação aos judeus?
A decisão de exterminar os doentes mentais em hospícios na Alemanha foi tomada no final do verão de 1939. Hitler autorizou isso por escrito, em cinco linhas escritas em folhas com seu cabeçalho pessoal, de maneira bastante informal.
Não houve uma lei, apenas essas cinco linhas informais autorizando seu próprio médico, no comando da chancelaria do Führer, para dirigir esse programa. Foi algo mantido em segredo, camuflado por certos arranjos para remover os doentes mentais para os hospícios onde seriam executados. Aqui também, tudo foi mantido em segredo porque havia o sentimento de que a população não estava preparada para isso. Rumores começaram a circular. O bispo von Galen em particular, em Münster, fez um discurso denunciando essa prática. O programa foi cancelado. A eutanásia continuou em segredo, mas o programa estabelecido em 1939 foi cancelado. Não se pode provar, mas parece bastante provável que Hitler tenha aprendido uma lição disso: nada escrito em papel e segredo total. E obviamente, no caso do extermínio dos judeus, foi feito mais distante, na Polônia, não na Alemanha. Lições também foram aprendidas do programa de eutanásia em termos de instrumentalização para a Solução Final. Em 1941, quando o programa foi suspenso, as equipes envolvidas na criação de mecanismos para matar esses pacientes doentes mentais com gás venenoso foram transferidas para a Polônia para trabalhar na implantação dos primeiros pequenos campos de extermínio em Belzec. Há uma relação direta entre as técnicas de gás utilizadas na eutanásia e no extermínio dos judeus.
Uma de suas frases - "A estrada para Auschwitz foi construída com ódio, mas pavimentada pela indiferença" - é constantemente citada. Qual o seu significado?
Quis dizer com essa frase que a dinâmica das forças dirigentes que conduziram a Auschwitz foi provida por esse ódio patológico, imbuído em Hitler e representado também por outros líderes nazistas. Sem esse ódio patológico, sem esse imperativo ideológico, não haveria estrada para Auschwitz. Mas para muitas das pessoas comuns, não havia essa fixação em relação aos judeus partilhada por Hitler e a liderança nazista. Para eles, no meio da guerra, os problemas de todo o dia predominavam.
Elas estavam preocupados com os bombardeios, com pais, irmãos, tios servindo no front; com as perdas na campanhas militares; com as privações em casa, as dificuldades para se obter comida ou acomodação. Não havia simpatia pelos judeus, muitas vezes ficavam contentes quando os judeus partiam, mas elas não estavam constantemente preocupadas com a questão dos judeus da mesma forma que a liderança nazista. Eu usei o termo "indiferença", que significa uma "indiferença moral", não se trata de maneira nenhuma de um comentário positivo. É uma atitude de virar as costas para o diabo, fechar os olhos, não ouvir o que se está dizendo sobre os judeus, basicamente ignorar o problema vivendo o seu cotidiano. O que tentei sugerir é que a dinâmica do ódio da minoria era capaz de obter sucesso porque a maioria não se importava, por isso "pavimentada pela indiferença".
Os interesses de Hitler de expansão estavam concentrados na Europa, com extensão para o leste. Estados Unidos, Japão e América do Sul nunca entraram em seus planos.
Hitler temia a expansão do comunismo soviético, e o objetivo de sua estratégia era o de bloquear isso, dominar o país e destruir o bolchevismo judeu baseado na URSS. Em relação aos EUA, em seu chamado Segundo Livro - escrito em 1928 e nunca publicado em vida -, ele fala bem mais do tema do que o fez em Mein Kampf. Nos anos 1930, os EUA se tornaram um real problema para a Alemanha, num sentido mais estratégico. Se os americanos entram na guerra, sem que ela tenha sido vencida no oeste, os alemães não teriam como combatê-los. Eles podem atacar a URSS com forças terrestres, mas não podem bombardear Nova York ou Washington. Portanto, as ameaças dos EUA, com todo seu poderio econômico e militar, é algo que Hitler vê como um perigo potencial para a Alemanha. Com o desenrolar da guerra, Hitler não pôde forçar a Grã-Bretanha a chegar a um acordo, e vê a aliança entre os britânicos os EUA como um perigo crescente para a Alemanha.
Ele disse algumas vezes que se não vencesse a guerra em mais ou menos dentro do próximo ano, estaria em perigo diante do potencial militar e econômico dos EUA. Ele não levou de jeito nenhum a América do Sul em consideração. No outono de 1941, Roosevelt produziu um mapa da América Latina mostrando planos de invasão alemã no continente, mas eram falsos, feitos a partir de informações do serviço secreto britânico.
O senhor já afirmou que gostaria de pensar que se vivesse na Alemanha nazista teria sido um resistente engajado contra o regime, mas relativiza ao dizer que poderia estar tão confuso e desesperançado como os alemães na época. Em circunstâncias extremas o homem é também capaz do pior.
Situações e circunstâncias mudam indivíduos. Felizmente, penso que o mundo, particularmente no contexto em que vivemos, não tem sido exposto a esse tipo de condições. Pessoas que fizeram coisas horríveis na era nazista eram antes pessoas perfeitamente comuns, e se encontraram em situações dispostas a fazer essas coisas horríveis. Claro que quando se olha para trás, nós todos gostaríamos de pensar que seríamos totalmente antinazistas, completamente contra tudo aquilo, tentando derrubar Hitler e seu regime, engajado nesses grupos de resistência ilegais. Mas a verdade é que a maioria de nós estaria em posições em que nos veríamos forçados a transigir com o regime, a se ajustar. Ao se ajustar, você é cada vez mais sugado pelo regime, e você talvez vá acabar no Exército ou em alguma organização, onde fará coisas que, no sentido moral, do ponto de vista de uma democracia livre, será aberrante. Por mais que teria gostado de estar na resistência ao regime, é mais provável que fosse um seguidor do regime, absorvido nele de alguma forma. Acho que foi assim que a maioria da pessoas tiveram de funcionar na época.
Mesmo que estejamos em outro contexto histórico, o senhor vê o perigo de que circunstâncias extremas similares às da Alemanha nazista pudessem, hoje, fazer surgir um novo Hitler?
As circunstâncias fazem com que muitas pessoas comuns, sem uma motivação ideológica, sejam levadas a apoiar um movimento político que ofereça, por exemplo, uma panacéia para todos os problemas, um futuro brilhante, uma salvação política. E mesmo que as razões não tenham sido ideológicas, as organização para a qual foram aspiradas tem objetivos ideológicos. Sem ter tempo de saber onde foi parar, de alguma forma você se tornou mais um seguidor do regime. A questão da motivação dos membros ordinários do partido nazista, e muito menos pessoas que nem faziam parte do partido, é muito difícil de estabelecer, mas muitas vezes as razões pelas quais se faz essas coisas, mesmo mais tarde, não tem um impulso ideológico num primeiro momento. São pessoas impulsionadas por ambições de carreira, questões materiais. Esses tipo de coisas. Mas acima disso há imperativos ideológicos que vão dirigindo esse processo. Claro que o perigo sempre vai existir em condições de total crise social, política e econômica. O nazismo não vai se repetir, mas movimentos podem surgir, que seriam perigosos, e para os quais as pessoas seriam aspiradas por razões bastante banais.
Como o senhor vê o marketing político moderno na construção de mitos e de personalidades políticas? O senhor conta, por exemplo, que Hitler atentava mesmo para não usar óculos em público, pois seria um sinal de fraqueza.
Miss Palin (Sarah Palin, candidata a vice-presidente pelo Partido Republicano nas últimas eleições americanas) usa seus óculos hoje como um sinal de força, todos querem ter os mesmo óculos de Miss Palin (risos). Hitler pessoalmente, mas também o partido nazista, era extremamente moderno no uso da mídia de massa, na sua imagem de comunicação. O potencial para construir personalidades individuais hoje é muito mais sofisticado do que era naquele tempo.
Enquanto houver personalidades limitadas por instituições, em um sistema de controles, tudo bem. Mas quando esses limites diminuem, o culto à personalidade fica livre e se torna muito perigoso.
Em sua obra Leviathan, o filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679) diz que a vida do homem era "sórdida, rude e curta" e que as pessoas eram em grande parte controladas pela autoridade. O senhor escreveu que trata-se de uma visão bastante pessimista, mas não muito distante da sua maneira de pensar.
De uma certa forma, há aspectos na humanidade, em termos gerais, que sempre me surpreendem de maneira constante em relação aos lados positivos do ser humano, sua capacidade, sua enorme inventividade, atos humanitários de grande caridade a atividade benevolente. E também altruístico, não só egocêntricos. Desastres e catástrofes geralmente fazem emergir isso das pessoas, pessoas que você jamais imaginaria são capazes disso. Esse é um lado muito positivo e que pode ocorrer em todo o lugar. E há outra coisas que acontecem quando há uma quebra na autoridade, um colapso de governo ou algo semelhante, e você vê o lado duro e brutal da natureza humana. Ver o que ocorreu no Sudão ou no Zimbábue, por exemplo, ver como seres humanos podem descer até tal nível de degradação deixa bastante desesperançado. Olhando a humanidade como um todo é impossível de chegar a uma conclusão geral, mas aí tudo se torna um questão de temperamento, se você se impressiona mais pelos pontos positivos do que pelos negativos. Talvez eu tenha escrito aquilo num dia ruim, outras vezes eu não teria citado Thomas Hobbes (risos). Mas há vezes em que penso que essa abordagem muito pessimista está certa, e que só uma forma de autoridade - não quero dizer com isso um despotismo ou tirania -, mas uma forma de autoridade coletiva, aprovada por todos, pode controlar essa anarquia que resulta não só em caos mas numa descida a uma degradação.
Por um lado, há muitas coisas positivas na maneira de como as pessoas se comportam, por outro lado, há uma sombra que permanece pessimista. Uma das razões desse pessimismo está no fato de que possuímos capacidades óbvias de explodirmos a nós mesmos, mas também de destruir o planeta, no sentido ecológico. Minha aposta na sobrevivência nos próximos 200 anos não seria muito alta, acho que temos mais capacidade de nos destruir do que nos preservar.
Como é hoje a relação dos alemães com Hitler e o período nazista de sua história?
Não há hesitações em discutir tudo isso. A Alemanha, mais do que qualquer outro país, deu grandes passos para tentar afrontar seu infeliz e turbulento passado. Se você comparar com Japão, Espanha, Itália ou a França de Vichy, a Alemanha foi quem mais fez esforços para lidar com isso, investigar e tentar entender o que ocorreu. A Alemanha é hoje provavelmente o país menos nacionalista da Europa, se não do mundo - à parte talvez a Holanda e os países escandinavos. De todo o modo, é um dos grandes países nada nacionalista. É uma democracia muito sólida e consolidada. Houve uma total e completa transformação em relação à Alemanha dos tempos de pré-guerra. O país mostrou que é possível aprender algo com a História, mesmo que a um certo custo. A Alemanha é uma história de sucesso. Muito desse sucesso vem da forma como os alemães tentam afrontar a parte mais nociva de seu passado. Nas escolas, nas universidades, a era do nazismo e do Holocausto está devidamente tratada, quase a ponto de as pessoas dizerem que já se falou demais disso tudo, que os alemães precisam recuperar outras partes de seu passado e que sua história não se resume à experiência nazista. Em termos gerais, houve grande avanços em relação a isso na Alemanha, sobretudo nos últimos 20 anos. É algo admirável.
Qual é a sua opinião no debate sobre o fim da história, proposto no livro de Francis Fukuyama, o choque de civilizações (Samuel Huntington) e as chamadas guerras étnicas e culturais?
Quando o livro de Fukuyama foi lançado, em algumas das resenhas que li notei que havia uma forma meio banal de lidar com aquilo. Pensei que é claro que se presume que a história tende a continuar. Mas ele quis se referir ao triunfo do capitalismo e da civilização ocidental. Os acontecimentos dos últimos dez anos ou mais demonstraram que era muito otimista em sua nova posição liberal-conservadora. Não chegamos ao final da história nesse sentido, agora temos novos e assustadores desafios, como o do terrorismo global, e também grandes ameaças potenciais no Oriente Médio. Não se sabe o que vai acontecer, provavelmente o Irã terá mísseis nucleares, um fator muito desestabilizante para região. O Paquistão é uma enorme preocupação, com os conflitos em suas fronteiras. Paquistão e a Índia possuem armas nucleares e estão ao lado um do outro. Há uma enorme capacidade para destruição e perigo. O perigo das chamadas "guerras culturais", como Al Qaeda, é obviamente presente, mas penso que temos de ter um senso de perspectiva em relação a isso. Se esse tipo de oposição ao Ocidente - centrado nos EUA mas que atinge o Ocidente em geral -, se restringe a grupos dentro da Al Qaeda capazes de lançar ataques suicidas ou atentados como os ocorridos em Londres, Madri ou nas Torres Gêmeas, é uma coisa. Mas se você tem isso alinhado a um poder, a uma nação ou Estado com mísseis nucleares, os perigos são outros. Mas historiadores só sabem lidar com o passado, não com o futuro. Como qualquer pessoa, só podemos especular sobre o futuro e esperar pelo melhor. De uma certa forma, é difícil ter esperança, vide os problemas insolúveis como na Palestina e Israel, um ferida aberta que não cicatriza e origina outros problemas.
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