quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Delenda est Carthago

Patrícia Pereira


De um lado, Cartago, com sua poderosa frota de navios. De outro, Roma, com o mais forte exército de infantaria da época. Na disputa pelo domínio das rotas marítimas do Mediterrâneo, as duas potências enfrentaram-se ao longo de cem anos nas Guerras Púnicas (o nome vem de punici, ou “fenícios”, como os romanos se referiam aos cartagineses). Foram três guerras, todas vencidas por Roma. Mas, por ironia, Cartago conquistou importantes vitórias em terra, enquanto Roma se destacou em vários embates no mar.

Fundada por colonizadores fenícios no norte da África, na atual Tunísia, Cartago controlava o comércio no mar Tirreno, a parte norte do Mediterrâneo. Tudo corria bem até Roma começar a estender seus domínios por toda a Península Itálica. Cedo ou tarde, era inevitável um choque entre as duas potências. E isso aconteceu numa disputa pelo controle da Sicília, dando início à Primeira Guerra Púnica.

O conflito arrastou-se entre 264 e 241 a.C., em combates quase ininterruptos. As primeiras lutas foram em terra, com a vitória de Roma. Os romanos passaram a dominar quase toda a Sicília, mas Cartago ainda controlava o mar. Vieram então as batalhas marítimas, vencidas novamente pelos romanos, graças a uma tática inovadora. Roma não tinha frota nem muita experiência no mar, mas contava com um exército poderoso.


Então, na esquadra construída às pressas para as batalhas, equipou os navios com um dispositivo na proa que permitia que uma ponte fosse levantada e abaixada. Ela se enganchava ao navio inimigo e abria caminho para os legionários invadirem a embarcação rival. “Roma transformou um combate naval em luta de infantaria”, diz Norberto Luiz Guarinello, professor de História Antiga da Universidade de São Paulo (USP).

Encorajada por seus êxitos e disposta a pôr fim à guerra em um só golpe, Roma enviou um forte exército para a África, em 256 a.C. O plano era atacar de surpresa e tomar Cartago. Quase deu certo. Os 15 mil homens, comandados por Régulo, destruíram parte do território adversário e foram em direção à cidade. Mas Cartago, com o auxílio de um general espartano, Xantipo, e um corpo de mercenários, derrotou as tropas de Régulo.

Em 247 a.C., Amílcar Barca assumiu o comando das forças de Cartago e atacou cidades ao sul da Península Itálica. Roma teve de reconstruir sua frota, destruída numa tempestade, mas surpreendeu os cartagineses ao se recompor com 200 navios. Foi o suficiente para recuperar quase todas as posições na Sicília e assumir a supremacia do Mediterrâneo. A Cartago restou apenas assinar um tratado de paz.

Travessia dos Alpes

Com os recursos esgotados e sem o controle das rotas no Mediterrâneo, Cartago mudou de estratégia: voltou-se para a conquista da Península Ibérica, rica em minerais e com boa terra para a agricultura. Mas, por trás do desejo de reerguer sua economia, havia um plano: explorar os minerais que os ibéricos usavam para fabricar armas e, assim, turbinar seu arsenal.

A missão na Espanha foi confiada a Amílcar e, mais tarde, transferida a seu filho, Aníbal Barca. Ao assumir, em 221 a.C., ele começou de imediato a preparar uma nova guerra contra Roma. E para penetrar na Itália, o novo líder cartaginês utilizou uma inesperada rota de ataque. Em vez de seguir pelo mar, marchou pelos Pireneus com seus elefantes e 20 mil homens, entre mercenários e cavaleiros númidas. Atravessou os Alpes, combateu tribos que dominavam a cordilheira e chegou ao Vale do Pó com severas perdas. Mas chegou. “Roma piscou e as tropas de Cartago já estavam na Península Itálica”, diz Guarinello.

Uma após outra, as unidades romanas foram sendo derrotadas. Na batalha do lago Trasimeno, Aníbal criou uma armadilha espetacular: escondeu sua tropa em depressões cobertas pela névoa e atacou o exército romano de surpresa. As tropas inimigas, mais uma vez, foram destruídas.

Ao perder território e aliados, os romanos refugiaram-se nas montanhas, de onde passaram a fazer uma guerra de desgaste, com ataques a batalhões isolados e a divisões responsáveis pelo suprimento de armas e alimento. Os cartagineses dominavam a região, mas decidiram não avançar até Roma. Alguns historiadores, inclusive, apontam que o grande erro de Aníbal foi hesitar em atacar a capital, num momento em que os romanos estavam vulneráveis.

Depois de algum tempo de interrupção nos combates, Roma decidiu enfrentar Cartago e colocou em campo o maior exército de que dispusera até então. Foi na batalha de Canas, na Apúlia, em 216 a.C. Aníbal dispôs suas tropas de forma que o sol nascesse atrás de seus homens e ofuscasse os romanos. Além disso, agrupou a infantaria mais fraca no meio. A poderosa cavalaria númida ficou nos flancos da formação. Ao atacar, os romanos pareciam varrer o exército cartaginês. Mas caíram na armadilha de Aníbal: o centro cartaginês recuou, enquanto a cavalaria atacava a retaguarda romana. Prensados uns contra os outros, os romanos mal conseguiam sacar as espadas. Foi um massacre.

Depois da derrota, os romanos retomaram a tática de vencer pela exaustão. E conseguiram. Com muita tenacidade, venceram na Sicília e na Península Itálica. E deram o golpe final num contra-ataque: uma expedição liderada pelo general Cipião foi mandada à África para atacar Cartago. Aníbal teve de deixar a Itália com seu exército para defender a terra natal. Esse lance final da guerra começou em 204 a.C. e terminou dois anos depois, com a batalha de Zama, a primeira derrota de Aníbal. Ao selar a paz, Cartago pagou caro. Teve de destruir todos os seus navios de guerra.

Cartago destruída

Mesmo tendo perdido sua frota e suas feitorias comerciais no Mediterrâneo, a economia de Cartago dava sinais de recuperação. Do outro lado do mar, Roma temia a prosperidade da cidade rival. No Senado, Catão começava todos os seus discursos com a célebre frase: Delenda est Carthago (Cartago precisa ser destruída). Assim, sem pretexto algum, Roma desafiou novamente seus adversários para a guerra, em 149 a.C.

Os cartagineses haviam aceitado uma série de exigências para impedir o conflito, entre elas, a entrega de todas as armas e barcos. Só optaram pela guerra quando Roma exigiu que destruíssem a própria cidade, pedra por pedra, e se mudassem para uma região 15 quilômetros distante do mar. Aí não teve jeito. A Terceira Guerra Púnica tornou-se inevitável.

Cartago fechou suas muralhas, construiu armas às pressas e resistiu heroicamente durante quatro anos. Depois de lutar casa a casa, sua população percebeu que seria vencida e decidiu atear fogo à cidade. Os romanos tomaram a fortaleza e jogaram sal no solo, para que nada mais fosse cultivado. Os sobreviventes foram vendidos como escravos, e Cartago foi reduzida a província.


Há 33 anos, Roma e Cartago encerravam oficialmente as Guerras Púnicas

Paula Lepinski


As Guerras Púnicas (264 a.C. - 146 a.C.) foram um dos mais brutais confrontos da Antiguidade. Fundada pelos fenícios, Cartago, cidade-estado situada na atual Tunísia, por muito pouco não deu fim a Roma na segunda dessas guerras.

O terceiro e último confronto viria com o grito de guerra Delenda est Cartago ("Cartago deve ser destruída") e terminou com a aniquilação completa da civilização cartaginense. Eles foram apagados da história: a cidade foi queimada, o solo foi salgado e os romanos não deixaram sequer um livro em sua língua. Como não restou ninguém para assinar a rendição, ela não foi assinada. Ou não então: em 1985, 2131 anos depois do fim da guerra, a paz foi finalmente selada entre Roma e Cartago.

Não entre fenícios e romanos há muito relegados às páginas da História, claro.

Em 5 de fevereiro de 1985, um tratado de paz e um pacto de amizade e cooperação foram assinados por Ugo Vertere, então prefeito da Roma e Chedli Klibi, prefeito de Cartago, Tunísia. Essa é descendente da cidade feita pelos romanos sobre as ruínas da primeira Cartago, e depois conquistada por islâmicos, no século 7.


"O Mediterrâneo deve permanecer um porto seguro de paz e bem-estar", afirmou o então presidente da Tunísia, Habib Bourguiba.

(Que já era presidente há 28 anos e, dois depois, seria apeado do poder por ser considerado insano. Provavelmente sem relação nenhuma.)

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