domingo, 24 de maio de 2015

Muralhas de Adriano: os limites do Império Romano

Fernando Duarte


Retratada em brochuras como um programa familiar, unindo história, natureza e exercício num mesmo passeio, a Muralha de Adriano, nas proximidades da fronteira entre a Inglaterra e a Escócia, é hoje uma das principais atrações turísticas do norte inglês, contando com o status de Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco. Porém, o que hoje é lugar para piqueniques e caminhadas ecológicas e mesmo um serviço de chá tradicionalmente britânicos, é o marco de uma das mais bizarras e sangrentas campanhas militares do Império Romano. O símbolo de uma história que mistura tons de resistência dignas de um episódio das aventuras de Asterix com os efeitos colaterais da grandiosidade geográfica e política de Roma. E que ainda provoca surpresas em arqueólogos e historiadores.

Erguida no ano 122, a mando do imperador Adriano, a muralha, que se estendia por mais de 120 km, o suficiente para cobrir de costa a costa a região em que o território britânico afunila, teve um objetivo duplo: consolidar os ganhos territoriais obtidos pelas incursões romanas nas Ilhas Britânicas e ao mesmo tempo esfriar os ânimos do que pode ser descrito como uma guerrilha vinda do norte. Por décadas, Roma tentara e fracassara na missão de subjugar os povos do norte da ilha batizada de Britânia. E novas descobertas arqueológicas sugerem que não foi por falta de tentativas graúdas. Um estudo publicado no ano passado pela arqueóloga Rebecca Jones, do Instituto de Patrimônio Arqueológico Escocês, garante ter encontrado vestígios de nada menos que 260 fortificações romanas no território do que hoje conhecemos como Escócia.

Guerrilha

A quantidade de fortes corresponde ao maior esforço de pessoal do império numa campanha europeia e que torna ainda mais estranha a história das incursões na região. Especialmente se comparada com a relativa facilidade com que o restante das ilhas tinha sido dominado. "O exército romano era mais bem equipado, treinado e disciplinado que as tribos do norte. Era uma força profissional lutando contra a rebeldia isolada e fragmentada das tribos. Mas ataques típicos de guerrilha fizeram a vida dos romanos muito complicada", diz Jones.

Não que Roma simplesmente tivesse desfilado pelo resto do país. O império experimentou um histórico de rebeliões ao sul, a mais famosa delas o levante comandado pela rainha celta Boadicea, em 61, e que resultou na destruição de Londinium, o povoado romano que deu origem a Londres. As primeiras campanhas tiveram início ainda com Júlio César, em 55 a.C., quando os generais romanos suspeitavam que a proximidade geográfica com a Gália resultava em colaboração contra o domínio imperial.


Mas foi quase um século depois, por volta do ano 43, e com Cláudio no trono, que as operações se intensificaram. O que hoje é conhecido como Inglaterra, em especial a região sul e leste, foi conquistado. Na década de 70, as atenções se voltaram para o norte. Além da busca por escravos e metais, conquistar era uma demonstração de poder para os imperadores.

No norte estavam habitantes conhecidos como caledônios. De origem celta, mostraram-se um inimigo mais voluntarioso do que as legiões esperavam. Aproveitando-se de aliados naturais, como o terreno montanhoso que marca boa parte da Escócia, faziam ataques-surpresa em vez de buscar o confronto direto. No mais famoso e ousado deles, uma emboscada noturna em 83 teria causado sérias baixas à IX Legião.

No ano seguinte, a batalha de Monte Graupius resultou numa carnificina maior a favor das tropas do general Julius Agricola. Parecia apenas questão de tempo para que houvesse o controle total do norte. Segundo o historiador romano Tácito, a ferocidade do combate foi tamanha que os caledônios que bateram em retirada mataram suas próprias mulheres e crianças temendo a represália romana. "Se os romanos tivessem colocado mais tropas, teriam subjugado os rebeldes. Mas Roma tinha fronteiras extensas, não era possível canalizar todos os recursos para a região", diz Jones.

O controle total jamais veio. Em séculos de presença nas ilhas, os romanos jamais controlaram toda a Escócia. As razões provocam divergências no meio acadêmico, mas as evidências arqueológicas são de que, ao contrário da Inglaterra, a presença romana na Escócia foi mais militar do que civil, ainda que haja registros de tribos que mantinham relação amigável com os romanos. No geral, porém, o clima era pesado. Em textos antigos romanos, por exemplo, os caledônios eram descritos como encrenqueiros e bárbaros.

Tribos hostis

"Foram repetidas campanhas para tentar subjugar as tribos caledônias. Operações brutais, sangrentas e malsucedidas para a máquina de guerra romana. As legiões tinham que lidar com tribos hostis e com as próprias dificuldades logísticas proporcionadas pela falta de uma estrutura maior e pelos problemas em Roma", diz Jones. Há uma corrente que vê nos tropeços romanos um problema causado pelo próprio expansionismo imperial. Agricola, por exemplo, foi chamado de volta à Roma em caráter de urgência após o evento de Monte Graupius para ajudar a lidar com uma crise militar nas fronteiras do Reno e do Danúbio, mais próximas do coração do império e mais problemática que os "guerrilheiros" caledônios.

Outra muralha

"Precisamos deixar um pouco de lado o romantismo. Roma tinha plenas condições de consolidar seu domínio sobre os escoceses, mas fatores muito mais importantes mudaram o foco das ações militares. A crise no Danúbio enfraqueceu a presença militar na Caledônia. Foram eventos de força maior que impediram uma conquista total, não algum tipo de heroísmo tribal", afirma Bill Hanson, professor de arqueologia da Universidade de Glasgow e especialista do chamado "período romano" britânico.

A construção da Muralha de Adriano é vista como uma mudança de estratégia. O imperador mostrava-se menos entusiasmado com a expansão a todo custo e os objetivos de captação de recursos tinham sido atingidos com o domínio no sul. "Adriano até recuou de algumas campanhas iniciadas no reinado de seu antecessor, Trajano. Não havia uma obsessão em terminar o trabalho, especialmente quando Roma tinha que priorizar o uso de seus recursos militares em áreas mais sensíveis", diz Hanson.

O fato é que sucessores de Adriano voltaram à carga. Em 138, o imperador Antonino ordenou nova invasão. As tropas romanas avançaram de forma significativa em território escocês, a ponto de construírem uma nova muralha, a de Antonino, 160 km ao norte da de Adriano e já bem mais próxima das Highlands. Era menor, com 63 km de extensão, e erguida com barro em vez das pedras da fortificação original. A construção durou 12 anos, até 154. Apenas oito anos depois, as linhas romanas já tinham recuado para a Muralha de Adriano. O império faria mais quatro grandes invasões, incluindo uma, em 209, com 40 mil homens. Em 211, chegou-se a um armistício.

Latim

Os dominadores provaram do próprio remédio: no século 4, os caledônios lançaram uma ofensiva que a muralha não foi capaz de segurar. Às voltas com as invasões bárbaras em Roma, mais e mais tropas foram deslocadas das ilhas britânicas, até que em 410 teve fim a administração romana. Os romanos deixaram sua marca nos povos caledônios: além da adoção do latim como língua para assuntos burocráticos, os avanços semearam o cristianismo na região. Mas a resistência evitou que a Escócia experimentasse pontos positivos da ocupação. "A região não passou pelo mesmo crescimento de centros urbanos como no sul. Os romanos incentivaram a criação de cidades e isso se reflete no cotidiano britânico, em que a Inglaterra é mais desenvolvida que a Escócia", diz Hanson. Na Escócia, que em breve terá um referendo sobre sua independência do Reino Unido, o passado é explorado com orgulho. Turistas à parte, a Muralha de Adriano é um monumento que nem Mel Gibson e seu Coração Valente conseguem superar.

Muralha de Adriano

Início da construção: 122

Final da construção: 126

Extensão: 118 km

Material: pedra e madeira

Altura: 4,5 m

Largura: 2,5 m

Muralha de Antonino

Início da Construção: 142

Final da construção: 154

Extensão: 63 km

Material: turfa e pedra

Altura: 4 m

Largura: n/d


Prevendo a Guerra do Futuro

Robert A. Johnson

Defesanet, 23 de Março, 2015


Prevendo os Ambientes Operativos do Futuro
 
Ao longo da história, tem sido difícil aos que vivem o dia-a-dia identificar as mudanças no caráter da guerra, particularmente durante longos períodos de paz. Apesar de algumas tendências e princípios de estratégia e relações internacionais serem possivelmente mais duradouros, é o caráter mutável das condições, das formas de aplicação da tecnologia, da adaptação e da dinâmica do conflito que torna desafiador o exercício de prever e, por via de consequência, de planejar.

A dificuldade de realizar previsões não impediu o surgimento de assertivas ousadas e algumas visões distópicas têm sido propaladas em algumas publicações sensacionalistas e, aparentemente, até em estudos sérios.

Entre os modernos profetas da destruição, que preveem uma anarquia Hobbesiana, estão nomes consagrados, como Robert Kaplan, Francis Fukuyama, Samuel B. Huntington e, apesar de menos apocalíptico, David Kilcullen [1].

Martin van Creveld e Philip Bobbitt sugerem que o estado está em declínio terminal nas relações internacionais, o que abriria caminho para o caos e a guerra [2]. Outros afirmam que a guerra seria conduzida "no meio do povo", com terríveis resultados em termos de baixas civis. Ao fazer referência ao caráter do conflito futuro, a Doutrina Militar oficial do Reino Unido de 2009 cita, em termos exclusivamente negativos, um campo de batalha  "híbrido" que seria inevitavelmente, "contestado, congestionado, desordenado, conectado e restrito"[3] .

Trabalhos relacionados ao estudo das tendências globais preveem um futuro violento, permeado por recursos naturais em crescente escassez, pressões climáticas e crescimento da população mundial. Entretanto, tais projeções são absolutamente contraditórias com as conclusões de Steve Pinker, Andrew Mack e Håvard Hegre, mais especificamente quando dizem que a guerra, tanto de pequena quanto de grande escala, estaria em declínio [4].

Trabalhos estatísticos da Upsala University, que incorporam todos os indicadores-padrão de conflitos desde 1945, preveem uma redução no número de guerras e no total de baixas nos próximos cinquenta anos.

No passado, tentativas de prever o futuro da guerra foram igualmente contraditórias. Sempre foi algo tentador prender-se a valores e estruturas de força sobre os quais se tinha forte convicção e minimizar o peso de verdades menos palatáveis. A opção por hipóteses que preferimos, ao invés das verdades absolutas, tem sido um problema comum. Entretanto, algumas projeções, descartadas como absurdas por alguns contemporâneos, acabaram provando sua precisão com o tempo.

Seletividade, exagero, opção pelo absurdo, predileções e temores contemporâneos, malentendidos e previsões de longo termo mal colocadas foram características das previsões sobre as guerras do futuro feitas no passado. E todas elas ainda dominam o presente [5].

Há muitas razões para explicar porque fazer previsões é tão difícil, mesmo quando aparentemente há "tendências" positivistas óbvias a nos guiar. É tentador fazer projeções baseadas nos tipos de guerra que parecem ser as prevalentes nos dias atuais e assumir que, pelo futuro previsível, todas as guerras irão cair no mesmo padrão.

Analistas militares querem identificar as características da guerra do futuro com alguma precisão, não apenas porque programas de desenvolvimento tecnológico caros dependem de seu julgamento, mas porque treinar especialistas é um processo demorado e os governos demandam sucesso com a máxima eficiência. A dificuldade está no fato de que o sucesso é condicionado pelo contexto.

É essencial obter clareza sobre o objetivo [de cada guerra], mas sua dinâmica muda com frequência as condições que vigoravam no início do conflito. Assim, os objetivos evoluem tão rapidamente e de modo tão abrangente quanto o próprio conflito. As tendências observadas no passado recente dão-nos fortes indicações sobre a guerra no futuro próximo, mas ainda requerem cautela.

Estados falidos, terrorismo internacional guiado por ideologias radicais e a diminuição da capacidade de estados ocidentais para influenciar eventos e populações talvez possam caracterizar o futuro imediato. No entanto, o verdadeiro valor da história não está em invocar analogias diretas.

Tampouco encontraremos respostas sendo seletivos, na tentativa de nos adequar a uma agenda particular, como ocorre muitas vezes. Ao contrário, o valor da história está em encorajar-nos a refletir criticamente para encontrar respostas e questionar as premissas positivistas que obscurecem nosso campo de visão.

Estamos sujeitos ao fluxo da história e não podemos escapar inteiramente do nosso presente. Mas devemos procurar nos libertar de suposições não fundamentadas sobre o futuro, empregando o pensamento crítico.

Guerra e as Mudanças Cada Vez Mais Rápidas

Avaliações recentes sobre o ambiente operativo do futuro enfatizam tendências visíveis no presente. O relativo declínio econômico do ocidente, comparado ao crescimento da manufatura chinesa – um fenômeno não necessariamente inevitável no futuro – tem gerado previsões de que o mundo irá se tornar mais multipolar. Dada a brevidade do momento unipolar dos Estados Unidos da América, após a Guerra Fria, não surpreende que haja multipolaridade. Mas associá-la a um relativo declínio econômico do Ocidente é ilógico: não é algo automático.

De fato, o crescimento do potencial militar da China e a ambiguidade advinda dos planos de longo termo de Pequim – citados com tal regularidade e desconfiança que o confronto agora parece atingir uma condição aceitável de inevitabilidade – talvez nunca ocorra, mesmo no Pacífico [6].

A China fornece tropas de paz para as Nações Unidas e está principalmente voltada para a sua segurança doméstica. Temores acerca do seu potencial para conduzir uma guerra cibernética geralmente desconsideram o desejo do governo chinês de monitorar a sedição interna.

A República Popular da China é particularmente sensível quanto à integridade de suas fronteiras – uma atitude que não pode ser considerada irracional, dadas as ameaças que sofreu nas fronteiras em 1950, 1960, 1962 e 1979. E o mais importante: a China está contida em suas ambições por sua interdependência com o Ocidente e a economia global. Ela depende dos mercados tanto quanto do apoio que recebe de sua própria população.

Outra afirmação comum é de que o enquadramento legal das operações conduzidas por países ocidentais irá se tornar menos flexível e os militares já expressam seu temor de que serão de tal modo restringidos por ele, que não poderão mais manobrar, no futuro [7].

Assessores jurídicos são fundamentais nas operações de baixa intensidade entre populações e nas ações de contraterrorismos, mas teriam menos influência nas campanhas de alta intensidade. De fato, é preciso notar que, em geral, a assessoria jurídica nos países ocidentais tem facilitado as operações, ao invés de impedi-las.

O verdadeiro obstáculo é a aversão ao risco e o medo de judicialização das operações nos níveis estratégico e de elaboração das políticas. Há preocupações, por exemplo, quanto às operações psicológicas, a vigilância e a busca de alvos, ainda que essas atividades sejam intrínsecas às operações de contraterrorismo.

A terceira assertiva prevê que os ambientes operativos do futuro serão urbanos, com o rápido crescimento populacional exercendo pressões insustentáveis sobre a infraestrutura e os recursos. Uma agravante viria das mudanças climáticas, vistas como catalisadoras de maior incidência de desastres naturais, afetando particularmente as cidades litorâneas – e as forças do Ocidente poderiam ter seu emprego em regiões devastadas.

As crises de recursos – que, supõe-se, seriam um gatilho para a guerra – são vislumbradas como atingindo um estágio agudo no futuro, no qual as demandas por energia começariam a exceder os estoques e as reservas disponíveis. As primeiras a serem afetadas, imagina-se, seriam as cidades com populações empobrecidas.

É verdade que há probabilidade de ocorrerem ajustes significativos, mas estes ajustes serão ditados pelo mercado: os custos tornam-se muito altos e os consumidores e os estados são forçados a buscar alternativas, mas a guerra nem sempre será a consequência disso.

O mapeamento dos pontos de estrangulamento entre demanda e suprimento disponível e do poder relativo dos estados, das cidades e dos atores não estatais talvez produza alguma correlação com os conflitos do futuro. Todavia, essas correlações não podem ser consideradas deterministas.

As avaliações mais precisas de como será a guerra no futuro próximo estão baseadas no presente. Essas preveem grandes movimentos insurgentes, eclodindo em áreas rurais e urbanas, profundamente enredadas na política local e disfrutando da simpatia – se não do apoio – das populações locais. Iraque, Afeganistão e Somália têm sido caracterizadas como intervenções ocidentais de larga escala que antagonizaram povos, ameaçaram interesses escusos e foram marcadas por mal elaboradas tríades de fins, modos e meios.

Mesmo nos casos em que o intento não é a intervenção deliberada, é possível que, no curto prazo, as tentativas de levar ajuda humanitária a uma população em meio à guerra – ou uma missão de manutenção da paz mal conduzida – poderiam produzir complicações e obrigações similares.

Como a capacidade militar convencional dos Estados Unidos é tão superior e o confronto nuclear é algo tão inimaginável, muito acreditam que todos os futuros adversários do Ocidente irão empregar guerra irregular ou não convencional. Alguns afirmam que as guerras "por procuração" serão mais comuns [8].

Alguns desses "procuradores" poderão não ser forças militares convencionais, variando de companhias militares privadas a corporações e instituições financeiras transacionais.

Os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 contra os Estados Unidos sugerem que os ataques futuros a alvos ocidentais serão dirigidos a pontos fracos específicos. Esses serão invariavelmente não militares, como a população civil, embaixadas e a infraestrutura. E são exatamente essas vulnerabilidades que devem ser a preocupação das Forças Armadas ocidentais, até porque as agências civis não têm capacidade para protegê-las.

Para enfrentar essas fraquezas, é possível que seja necessária uma reavaliação radical do papel e das funções dos exércitos, juntamente com a nova constatação de que o ambiente operativo futuro tem probabilidades iguais de estar no estrangeiro e na esfera interna [9].

A ansiedade acerca das vulnerabilidades ocidentais tem produzido muita especulação acerca da "e-guerra", de cenários de contraterrorismo, de batalhas inter-robóticas e do futuro do poder aéreo não tripulado para conduzir ataques a distância. O problema é que esses instrumentos podem não caracterizar a guerra do futuro, ainda que sejam confortavelmente previsíveis para aqueles que os advogam ou criticam.

Os analistas militares ocidentais são rápidos em identificar os padrões com os quais eles estão familiarizados, mesmo nas ocasiões nas quais tendem a serem seletivos e a exagerar as ameaças e ignorar futuras oportunidades. Muito disso é cultural. Noções Clausevitianas de poder decisório – a política da decisão – e resultados rápidos são altamente atraentes, mesmo considerando que a guerra pode ser, em essência, não decisiva, prolongada, dinâmica e imprevisível.

Uma característica corrente da guerra, podemos notar, é a crescente digitalização, com ênfase nas métricas de busca de alvos, fogos, vigilância e efeitos. A firme evolução deste fenômeno tem sido obscurecida pelos recentes debates sobre técnicas de contrainsurgência. Ainda assim, os temas são intimamente relacionados, pois, no nível tático, os insurgentes empenham-se em sobrecarregar esses sistemas superiores com inúmeros alvos e várias formas para atacar, incluindo ações suicidas. As equipes de forças especiais ainda precisam realizar vigilância cerrada para permitir que armas computadorizadas possam engajar seus alvos.

E eles frequentemente devem estar mesclados à população local ou recrutar colaboradores, empregando pessoas com alto grau de empatia e entendimento das necessidades de atores não estatais e de suas agendas [10].

Apesar das tentativas de eliminar a fricção no contraterrorismo e na contrainsurgência com as novas tecnologias, a tropa e os seus sistemas high-tech ainda estão vulneráveis ao cansaço, às falhas técnicas e às decisões erradas tomadas por comandantes cansados, estressados e cada vez mais escrutinizados. A névoa da informação pode ser um obstáculo menor na guerra convencional, mas insurgentes sempre tentarão subverter os sistemas informacionais – confundir, mantendo-se ocultos.

O ritmo enormemente acelerado da guerra convencional adequa-se bem aos sistemas tecnológicos ocidentais, mais isso não acontece com a guerra no meio do povo por períodos prolongados, uma vez quem nestes casos, a fricção impõe-se de modo mais enfático.

A principal suposição, muitas vezes repetida, considera que as operações ocidentais no futuro serão expedicionárias, já que não existem estados capazes de ameaçar os Estados Unidos ou o continente Europeu. Os que desejam evitar o caráter prolongado típico das operações terrestres – como no Afeganistão – defendem a necessidade de operações aéreas e navais ou, no máximo, uma estrutura de força terrestre mais leve.

Os advogados dessa postura raramente reconhecem as limitações do poder aéreo que foram recentemente expostas nas operações no Kosovo. Os "navalistas", ansiosos por enfatizar o modo como os governos poderiam manter sua liberdade de ação sem ficarem enredados em campanhas terrestres, dão menor atenção às vulnerabilidades do poder naval em litorais congestionados ou ao fato de que, no passado as decisões das guerras ocorreram tanto em terra quanto no mar.

Os que vislumbram forças terrestres leves engajando-se em operações de manutenção da paz parecem não levar em conta as consequências que adviriam se tais missões entrassem em dificuldades, o que poderia resultar em acirramento do combate e no risco de uma derrota catastrófica.

A lógica ocidental [por trás da decisão] de manter forças leves para os combates nos anos 2001-03 era [justificada pela] manutenção de agilidade, redução da cauda logística e para evitar o antagonismo do povo local contra qualquer presença militar ostensiva de larga escala. Os Estados Unidos visaram especificamente a evitar qualquer ideia de ocupação do Afeganistão, para que não se repetissem os erros soviéticos de 1979. Em 2001, havia uma crença considerável na capacidade do poder aéreo em produzir resultados sem [que houvesse] empenho terrestre substancial [11].

Na verdade, o raciocínio que defende forças terrestres menores conduz a maior vulnerabilidade e menos inteligência, o que só poderia ser compensado por uma grande disponibilidade de poder aéreo. Ainda assim, apesar do advento dos ataques de precisão e da melhoria dos sistemas de busca de alvos, apostar no poder aéreo tem causado aumento no número de baixas civis.

Esta solução provou ser contraprodutiva na sequência das operações, nas quais as forças ocidentais se viram envolvidas na condução de política local [a reconstrução do país – N. do T.]. O poder aéreo não pôde, sozinho, proporcionar a segurança para o estabelecimento de um novo governo. A partir das operações na Líbia, em 2011, ressurgiu o entusiasmo pelas operações aéreas como forma de evitar o emprego de forças terrestres.

Ataques limitados com mísseis foram postulados nas operações contra o regime sírio em 2013. Tem levado algum tempo para que os governos ocidentais percebam que seus métodos de guerra e de estabilização, bem como seus planejamentos para as campanhas e suas doutrinas não podem ser considerados superiores. Eles têm sido obrigados a mudá-los constantemente, à medida que as operações evoluem no tempo.

Novas tecnologias – de veículos remotamente pilotados à robótica – e novos métodos – como a negação de serviço ou a interrupção cibernéticas – não podem garantir a vitória, como não pode a crença no poder aéreo e naval nos primórdios do século XXI. A novidade proporcionada por tecnologias nunca garantiu o sucesso por si só – é a integração do novo com os métodos e os meios efetivos que possibilita a vantagem tática ou estratégica.

Este tem sido particularmente o caso das aeronaves não tripuladas dotadas de mísseis. Tem havido muito debate sobre o caráter legal e ético de matar alvos em países que não estão em guerra com o Ocidente – como o Iêmen e o Paquistão – e em torno da remoção de insurgentes do campo de batalha por meio de prisões extrajudiciais, ou, ainda, da apreensão de suspeitos de serem combatentes [12].

A verdade é que inimigos do Ocidente subvertem as leis ocidentais; atacam enquanto estão misturados à população civil local, não têm compromisso com a verdade em suas operações de informação e declaram abertamente que sua intenção é infringir baixas em massa àqueles que não se submetem às suas ideias. A preocupação ocidental de proteger as populações, internalizada profundamente a partir do advento dos bombardeios maciços durante as guerras mundiais, não está entre as prioridades de muitos dos beligerantes não ocidentais.

Ainda que sejam [soluções] perturbadoras e não palatáveis segundo os [padrões] ocidentais, em geral é a intimidação, o medo de retaliação e o poder militar esmagadoramente superior que têm obrigado populações a submeterem-se, e não o ético engajamento seletivo, tão valorizado pelo Ocidente [13].

Ainda assim, as inconsistências podem ser exploradas [negativamente]. Os ataque com drones, sem que haja regras de engajamento claras, provoca uma erosão dos limites entre guerra e paz, alimentando e facilitando a argumentação de grupos não estatais de que eles também têm o direito de contra-atacar no cenário internacional.

Ambientes urbanos e periféricos, nos quais o controle governamental não é exercido ou não está claro, apresentam-se como os maiores problemas para as forças de segurança e, em algumas situações, forças militares podem assumir temporariamente o papel de autoridade governamental, com os poderes legais para isso. Pensar em segurança interna é algo menos atraente às forças terrestres ocidentais do que conduzir guerras além das fronteiras de seus países.

A segurança interna é vista como uma forma de policiamento e não como uma atividade militar. O triste histórico relacionado à segurança interna e à coerção de populações, ainda que tenha sido um papel tradicional dos exércitos antes do século XIX, podem parecer um anátema ao profissionais das armas.

De qualquer modo, é preciso dar mais ênfase ao objetivo de trazer os adversários à mesa de negociação como um parâmetro para medir o sucesso. As negociações devem ser vistas como norma, e não a exceção, no conceito de guerra total militar, que considera a vitória [somente] com a destruição dos meios que permitem [ao inimigo] resistir [14].

Tratar a guerra como a continuação da política por outros meios significa dizer que a vitória é uma correlação entre fins, modos e meios... e que é um processo contínuo, não um estado-final.

Acima de tudo, a inabilidade para prevermos o futuro com confiança pode nos ajudar a explicar porque temos o desejo de procurar pelo novo enquanto nos prendemos àquilo que nos é familiar, quando estamos planejando hipóteses de guerra. Ainda assim, em um ambiente operativo do futuro, novos e antigos conceitos de guerra irão coexistir.

Enquanto alguns contendores estarão empregando novos sistemas de armas e operações de informação, outros estarão atacando infraestruturas e tentando cooptar populações por meio de ressentimentos religiosos. E haverá aqueles que estarão cavando trincheiras e travando combate corpo-a-corpo. Não haverá padrão previsível, pois cada conflito terá seu próprio contexto.

O discurso sobre a guerra do futuro está repleto de tentativas de encontrar padrões e as incertezas do presente são projetadas para o amanhã, geralmente de modo exagerado [15].

Avaliações menos sensacionalistas não possuem o mesmo apelo, atraem menor atenção e, quando provadas errôneas, são tomadas como exemplos da complacência [de quem as produziu]. Tendências históricas de longo prazo são difíceis de identificar: ninguém pode estar certo de que a tendência identificada é correta. Ademais, é impossível ignorar as características das guerras do presente.

Parece que o mundo, por enquanto, vive um período de conflitos não convencionais. E as projeções são confrontadas com os padrões identificados – o que ajuda a explicar porque os que empregam estatísticas para provarem suas teses sobre a guerra do futuro se sentem tão confiantes quanto os catastrofistas.

As contradições inerentes a essas análises nos sugerem que, na verdade, não há garantias de que os padrões ou trajetórias sejam confiáveis. Não é uma verdade inexorável que as guerras não convencionais de baixa intensidade de hoje irão se repetir, até mesmo no futuro próximo. É possível [até mesmo] que aconteçam episódios de guerra interestatal de grande intensidade e altamente destrutivas, talvez incluindo uma limitada troca de agressões com armas nucleares táticas.

Como indica David Kilcullen no seu recente "Out of the Mountains: the Coming Age of the Urban Guerrilla" ("Saindo das Montanhas: a próxima Era da Guerrilha Urbana!", em tradução livre), [a dificuldade] não está na falta de familiaridade e na imprevisibilidade das tendências de mudança, mas no ritmo com que essas mudanças ocorrem [16].

Ele argumenta que as atuais instituições, estados, governos e forças armadas estarão sobrecarregados pela magnitude da instabilidade das novas megacidades e pelo ritmo da nova conectividade. Mais especificamente, ele argumenta que o futuro ambiente operativo serão as cidades e não os estados, com os conflitos do futuro provavelmente concentrados na periferia de grandes centros urbanos litorâneos nos países em desenvolvimento, onde grupos armados não estatais – como cartéis, gangues de rua e caudilhos – estejam disputando recursos e influência.

Além disso, Kilcullen ilustra como a conectividade moderna – como as redes sociais – apresentam tanto desafios quanto oportunidades nesse novo ambiente operativo. Essas ferramentas podem mobilizar manifestantes como na Primavera Árabe, manter uma economia informal em Mogadíscio, treinar soldados e armeiros sem experiência e serem utilizadas por estudantes do ensino médio para identificar posições de atiradores de elite do regime líbio. Essa conectividade se apresenta tanto no nível local quanto no internacional e irá sobrecarregar forças militares convencionais e instituições de governo.

Quando defendemos uma tese sobre qual será o ambiente operativo do futuro, podemos perder de vista o [sindícios de] continuísmo. Se é verdade que as cidades serão potencialmente o berço das agitações populares, também é possível afirmar que essas concentrações urbanas são dependentes das áreas do interior. O fato é que as cidades podem ser desbordadas ou contidas, tanto quanto podem se tornar parte do espaço de batalha.

São todas interdependentes com outras cidades, portos, infraestrutura de transporte e seu entorno, o que, como afirma Kilcullen, significa que o sistema urbano consiste não apenas do ambiente construído, mas das redes que o sustentam e servem.

Indo mais além, é preciso reconhecer a importância dos aspectos legais e ideológicos do ambiente operativo, uma vez que é grande a possibilidade de produzirem restrições à forças de segurança, particularmente se elas tiverem que enfrentar ataques terroristas em massa como o de Mumbai, uma contaminação em massa, ou operações de baixa intensidade contra populações pobres e carentes, que se manifestem com violência contra as privações a que estão submetidas.

Kilcullen reitera que é pouco provável que ansiedades históricas geradas por recursos, ameaças e reputações deixem de ser fatores causadores de guerras. É provável que as finalidades das guerras permaneçam previsíveis, mas que os modos e meios para conduzi-las sejam transformados significativamente. Ainda assim, o modo tradicional de conduzir a guerra continuará a existir.

O uso da força como um instrumento da política – o que parece inevitável – ainda pode ser estratificado em guerra limitada, ameaça de guerre a l‘outrance (em termos de armas de destruição em massa) e tentativas de neutralizar um inimigo por meio da derrota de sua estratégia. Entretanto, novos meios [que irão surgir] durante este século podem abrir novas possibilidades e novos modos para atingir os fins estratégicos.

No futuro, ao invés de uma única crise global, haverá variados enfrentamentos por recursos e pressões populacionais, diferentes em cada região [17]. Algumas delas, por sua escala, poderão acelerar rapidamente. Suprimentos limitados e a exaustão ou os altos custos de extração de recursos – como energia, água e alimentos – também irão afetar as regiões com intensidade variada; provavelmente mais o mundo em desenvolvimento do que o mundo desenvolvido.

O Global Environment Outlook de 1999 previu conflitos por água no norte da África e no Oriente Médio entre os anos 2000 e 2025, ainda que os conflitos ideológicos e de governança tenham predominado naquelas regiões até agora [18].

As pressões financeiras também provaram ser muito mais do que isotrópicas: a falta de crédito nos países em desenvolvimento os deixa vulneráveis à agitação interna. Há muitos que preveem que a desigualdade e o desemprego de jovens irão aumentar nos próximos trinta anos, o que pode gerar um correspondente aumento do número de grupos descontentes que optem por adotar ações violentas.

Ainda assim, há um risco de que [toda essa argumentação] esteja sendo exagerada: ataques terroristas à infraestrutura têm efeito limitado no tempo e não são capazes de destruir sistemas na sua totalidade. A verdadeira vulnerabilidade do Ocidente seria exposta por um colapso econômico da China, a partir de uma agitação social, e por uma estagnação do comércio e do intercâmbio financeiro globais. No entanto, a revolução digital promete aumentar o Produto Interno Bruto global em ritmo e extensão muito maiores do que durante a revolução industrial.

É provável que o ritmo acelerado das mudanças tecnológicas produza tanto benefícios significativos quanto resultados indesejados. Enquanto o mapeamento do genoma humano em 2000 consumiu cinquenta milhões de dólares e vários anos para ser concluído, hoje podemos obtê-lo em um dia, ao custo de menos de mil dólares [19].

Essa pesquisa médica avançada permitiu aos Estados Unidos obterem uma vantagem estratégica significativa, nas relações mundiais. O mesmo é válido para a revolução da informação que está em curso. Mais informações são geradas a cada dois dias do que o total produzido ao longo dos últimos dois mil anos [20].

A consequência é que as insatisfações serão amplificadas mais rapidamente a um público maior do que antes. Mas também haverá soluções que poderão ser obtidas mais rapidamente. Essas possibilidades sugerem que haverá maior volatilidade nos domínios informacional, físico, de infraestrutura e de ideias.

Tendências para a Guerra do Futuro

O caráter das guerras irá mudar com tanta frequência no futuro quanto mudou no passado, mas haverá continuísmos marcantes, como o terrorismo e os protestos de massa violentos. Haverá, quase certamente, um aumento significativo de guerras irregulares nas cidades e guerras sistêmicas.

Há dez tendências para a guerra do futuro: ações irregulares em áreas urbanas, que exploram vulnerabilidades da infraestrutura; porosidade; dispersão; profundidade; furtividade (stealth, no original, em inglês); miniaturização do poder de combate; privatização da violência; descentralização; operações sistêmicas nodais; e precisão.

Nas grandes cidades, imagina-se que o terrorismo de baixa intensidade possa ocorrer com maior probabilidade. Conflitos prolongados necessitam de significativa mão de obra militar e policial e operações de mídia controladas. Na guerra do futuro, as milícias urbanas talvez obtenham acesso a armamento mais letal, incluindo misseis terra-ar, armas anticarro e contaminantes químicos e biológicos.

No combate urbano, as forças militares encontrariam a autoridade civil colapsando, várias agências trabalhando em suas agendas dentro do mesmo espaço físico e uma população civil vulnerável esperando por ajuda.

A guerra sistêmica é igualmente não-convencional, pois envolve ataques ao sistema financeiro, desgastando economias locais para criar regiões e povos dependentes, participações difusas e de massa em ações contra os estados e os governos, operações de informação, crimes cibernéticos, bloqueios cibernéticos, ações disruptivas de guerra eletrônica, ataques biológicos seletivos em porções da sociedade, colapsos energéticos e contaminação de água e comida.

Cada tipo de ação é caracterizada por uma ênfase na natureza sistêmica de suas consequências: são concebidos para interromper, degradar, desacreditar ou destruir sistemas dos quais dependem os estados e as populações.

Os processos de engajamento [de alvos] têm afetado o campo de batalha desde o início da era industrial, na medida em que armamentos mais letais e com maior precisão e alcance os tornaram mais abrangentes. Enquanto, em 1863, [a batalha de] Gettysburg ocorreu em um espaço de poucas milhas, a Segunda Guerra Mundial foi caracterizada como um conflito que se estendeu a vários teatros por todo o mundo, requerendo a mobilização de economias domésticas e de suas populações. Desde 1945, o mundo tem sido afetado tanto por guerras não-convencionais quanto por guerras convencionais e ostensivas.

A natureza interconectada da economia e do sistema de comunicações mundiais significa que mesmo o menor dos ataques terroristas alcança toda a população mundial. Intimamente ligada à ideia de dispersão está o ocultamento – ou a furtividade – com pequenas organizações operando fora das vistas, ou tentando permanecer ocultas em meio à população ou em partes remotas do território.

Curiosamente, apesar das afirmações de que organizações clandestinas são particularmente ameaçadoras ao Ocidente, assinaturas digitais estão cada vez mais difíceis de esconder. As forças estatais modernas ficaram muito mais expostas e vulneráveis e, no futuro, a camuflagem nos conflitos no meio do povo irá requerer completa miscigenação.

Desde a revolução industrial, a engenharia de precisão tem permitido surgir menores e mais eficientes sistemas de armas, enquanto os avanços na física e na química têm aumentado seu poder explosivo. Ao mesmo tempo, tem sido possível desenvolver plataformas que são menores, mas que carregam o mesmo ou maior poder de combate.

Metralhadoras – antes grandes e desajeitadas – agora são portáteis. Depois da bomba atômica, foram desenvolvidas novas gerações de artefatos nucleares até que se tornou possível produzir um dispositivo nuclear tão pequeno quanto uma granada de artilharia. Pode-se imaginar que, no futuro próximo, haverá sistemas de armas de grande magnitude que serão transportáveis por indivíduos. Dessa tendência pode-se deduzir que cada cidade, porto ou província é potencialmente um espaço de batalha.

É provável que o combate se torne cada vez mais individualizado no futuro próximo, à medida que grupos cada vez menores passem a reclamar o direito de recorrer à guerra, equipando-se com poder de combate significativo. O aumento do número de empresas de segurança e de companhias militares privadas, tanto no ambiente interno, quanto nas missões de segurança expedicionárias parece ser uma tendência que irá se manter.

Esse fenômeno torna mais fácil a condução de guerras "por procuração", com grupos e indivíduos de fachada equipados e treinados tanto por agentes estatais quanto não estatais. Combatentes irregulares assameses, cartéis de droga mexicanos, piratas somalis e combatentes do delta do Niger têm conseguido conduzir campanhas prolongadas contra seus governos, interesses nacionais e grandes companhias, nos seus próprios termos.

A propagação do poder e das comunicações ocorrida no ocidente desde o final do século XIX – e que agora alcançou todo o globo – causou reflexos no modo como se conduz a guerra.

O desenvolvimento da tecnologia e das comunicações – antes reservado à elite e ao estado – chegou à população e tornou-se um elemento importante para o desenvolvimento de conflitos de natureza irregular.

A descentralização também trouxe mais poder às forças do estado: rádios portáteis e comunicações móveis permitem que pequenas frações e indivíduos isolados desfrutem de consciência situacional avançada, tanto para localizar alvos quanto para manobrar no terreno. Maior especialização significa maior conectividade. Interoperabilidade e descentralização são essenciais para uma entrega de efeitos eficaz.

O desenvolvimento tecnológico continua a ampliar a precisão e a superioridade com os quais se conduzem os ataques à distância com efeitos considerados aceitáveis. Meios mais precisos irão demandar mais combatentestécnicos, aptos a utilizar esses recursos tanto na ofensiva quanto na defensiva. Entre os exemplos estão a nova geração de antimísseis e os veículos semiautônomos.

Deverá haver plataformas multiuso, capazes de operar em solo, no mar e no ar, com capacidade eletrônica, bem como equipes de Forças Especiais em menor número, altamente treinadas e muito bem equipadas – cuja vulnerabilidade poderá ser compensada por uma ampla gama de opções de apoio (em transporte, inteligência, fogos, especialização e logística).

Mas em todas as operações conduzidas pelo estado, a ênfase será na precisão, juntamente com a dissimulação, a dispersão e a adaptação às ameaças geradas por grupos não estatais e de fachada que se utilizam de ataques clandestinos. Novos sistemas serão  necessários para atuar com precisão em ambientes urbanos, em arranhas-céus, no subsolo, sob a água e no espaço.

No futuro, se as forças pretendem estar aptas a destruir forças terroristas mescladas ou operando junto às populações, terão que dispor de precisão ainda maior do que na atualidade e, o que é mais importante, de maior velocidade na aquisição da alvos.

A habilidade de impor degradação nodal ou sistêmica ao inimigo, afetando sua capacidade de resistir, comandar ou de comunicar-se, será a característica marcante da guerra do futuro, envolvendo a paralisia das comunicações e grande ênfase nas guerras psicológica-informacional, cibernética e, até mesmo, neurológica.

Irá representar uma forma de "e-envolvimento"; furtivo e clandestino. Esses modais serão parte de uma gama mais ampla de operações contra as principais ameaças geradas por inimigos situados entre as populações domésticas.

Implicações para as Forças Armadas Contemporâneas

Deduzir é algo difícil e, em um artigo curto como este, as deduções são necessariamente seletivas. Ainda assim, a superficialidade e as afirmações impactantes podem provocar o pensamento crítico; e será mediante intercâmbio fundamentado [de ideias] que poderemos desafiar as pressuposições, redefinir nossas conclusões e permanecer alertas para os erros de avaliação.

É com esse espírito que as conclusões a seguir são oferecidas. No futuro, as forças farão uso da furtividade, operando sistematicamente por redes de comunicações e pela exploração das vulnerabilidades da sociedade. Farão emprego da guerra da informação para espalhar o medo e o pânico, mas também irão conduzir o combate cinético em meio às populações.

Seus objetivos serão a destruição dos sistemas financeiros, da infraestrutura e da vontade de manter a resistência. Esse tipo de guerra não convencional será muito mais frequente do que as guerras prolongadas e de alta intensidade do passado – apesar de que estas ainda poderão ocorrer.

E a militarização do espaço parece ser algo iminente. Para enfrentar essas ameaças, os estados devem identificar suas próprias vulnerabilidades e adotar ações para minimizá-las, mesmo que isso signifique reorganizar suas Forças Armadas. Preparar-se para essa forma de combate difusa, dispersa e clandestina também significará adotar novas medidas para a defesa civil.

No conflito antiterror do futuro, as operações psicológicas e de informação serão essenciais. É possível que a preparação [das tropas] em tempo de paz ocorra em meio a operações de segurança de longa duração (por vezes em ambiente doméstico), a operações de manutenção da paz ou a operações de combate ao terrorismo ou de contrainsurgência.

É provável que as forças sejam desdobradas em resposta a informações específicas obtidas pela inteligência, em ações de grande mobilidade e com duração excepcionalmente rápida. Os ataques serão semelhantes a incursões.

A inteligência será o esteio das operações, mas alvos de oportunidade irão surgir de modo fugaz, exigindo resposta rápida e precisa. A aplicação inteligente dos conceitos da tática será tão crítica para o sucesso quanto a capacidade [das tropas] de se comunicarem com toda sorte de agências civis.

As atuais tendências de guerra fornecem um guia incompleto sobre o ambiente operativo futuro, mas nos dão certos indícios sobre qual direção seguirmos. As questões relacionadas à porosidade, à dispersão, à profundidade, à furtividade, à miniaturização do poder de combate, à privatização da violência, à descentralização, à precisão, às operações nodais sistêmicas e à vulnerabilidade da infraestrutura irão afetar vários domínios: físico, ideacional, informacional e de infraestrutura, particularmente em relação às cidades e aos sistemas. A gramática da guerra, nessas áreas, mudou.

Os comandantes que forem capazes de compreender as cidades e suas áreas periféricas, sua morfologia, suas conexões e suas vulnerabilidades terão significativa vantagem para o emprego de seus meios, seja em operações regulares, irregulares ou "por procuração".

A habilidade para entender a nova inter-relação que rege os vários sistemas – sejam eletrônicos, urbanos, baseados em recursos ou informacionais – irá definir a "alfabetização militar", no futuro.

As forças militares serão forçadas a se adaptarem ao novo ambiente – ou terão que encarar a derrota. Uma forma de aumentar a capacidade de adaptar-se é enfatizando a importância da inovação, da improvisação e da adaptação, usando o passado como um guia fundamental para o desenvolvimento educacional e a mudança institucional.

NOTAS:

[1] Robert D. Kaplan, "The Coming Anarchy", (The Atlantic, February 1994), disponível em http://www.theatlantic.com/ideastour/archive/kaplan.mhtml, publicada no Brasil como "À Beira da Anarquia" (Ed. Futura, 2000); Francis Fukuyama, "The End of History and the Last Man" (New York: Free Press, 1992), publicada no Brasil como "O Fim da História e o Último Homem" (Ed. Gradiva, 1999); Samuel B. Huntington, "Clash of Civilizations and the Remaking of the World Ordem" (New York: Simon and Schuster, 1996), publicada no Brasil como "O Choque das Civilizações e a Recomposição da Ordem Mundial" (Rio de Janeiro: Ed.
Objetiva, 1997); David Kilcullen, "Out of the Mountains" (London: Hurst & Co., 2013).

[2] Martin van Creveld, "The Fate of the State", Parameters 26, no. 1 (Spring 1996): p. 4-18; Philip Bobbit, "The Shield of Achilles!" (New York: Penduin, 2003).

[3] Rupert Smith, "The Utility of the Force" (Londres: Allen Lane, 2005), publicado no Brasil como "A Utilidade da  Força – A Arte da Guerra no Mundo Moderno" (Ed. Edições 70, 2008); Ministério da Defesa da Grã-Bretanha, "The
Future Character of Conflict" (MOD, DCDC Strategic Trends Programme, February 2, 2010).

[4] Steve Pinker, "The Better Angels of Our Nature: Why Violence Has Declined" (New York: Viking Books, 2011); Andrew Mack, "More Secure World" – palestra na ANU, fevereiro de 2011; Havard HEgre et al "Predicting Armed Conflit, 2010-2050", International Studies Quarterly 55(2) (2013): p. 1-21.

[5] Veja Antulio J. Echevarria II, "Imagining Future War: The West‘s Technological Revolution and Visions of Wars to Come 1880-1914" (New York: Praeger, 2007).

[6] Para uma visão alternativa, veja Christopher Coker, "The Improbable War: China, the United States and the Logic of Great Power Conflict" (Londres: Hurst, 2014).

[7] Akbar Ahmed, "The Thistle and the Drone: How America‘s War on Terror Became a Global War on Tribal Islan"(New York: Brookings, 2013).

[8] Andrew Mumford, ?Proxy Warfare?(Cambridge: Polity, 2013).

[9] As implicações são que as Forças Policiais podem ser compelidas a desenvolver mais capacidades paramilitares ou, talvez, que as forças militares sejam levadas a executar tarefas de ajuda militar à governabilidade civil com mais frequência e, ainda, a imiscuir-se em tarefas policiais.

[10] Diane E. Davis and Anthony W. Pereira, eds., "Irregular Armed Forces and their Role in Politics and State Formation" (Cambridge University Press, 2003), 149-177; Austin Long, "Going Old School – US Army Special Forces Return to the Villages", Foreign Policy, July 21, 2010, disponível em http://afpak.foreignpolicy.com/posts/2010/07/21/going_old_school_us_army_special_forces_return_to_the_villages ; Charles Tilly, "Teh Politics of Collective Violence"(Cambridge University Press, 2003), p. 19.

[11] D. M. Drew, "US Airpower Theory and the Insurgent Challenge: A Short Journey to Confusion", Journal of Military History, 62 (1998): 809-32.

[12] Kenneth Roth, "What Rules Should Govern US Drone Attacks?" The New York Review, March 25, 2013, p. 16-18.

[13] Os mais bem documentados e mais extensivos exemplos de emprego de terror contra insurgências incluem a aniquilação bolchevique da resistência branca na guerra civil russa e a destruição nazista das atividades da resistência
francesa no centro e no sul da França, durante a Segunda Guerra Mundial.

[14] Richard Hobbs, ?The Myth of Victory: What is Victory in War? ?(Boulder, CO: Westview, 1979).

[15] Até agora, as mudanças na história da humanidade têm sido progressivas, com eventos periódicos e episódicos que causam ruptura, subsequentemente interpretados como "pontos de virada". Para Clausewitz e Jomini, o grande ponto de virada de seu tempo foi a Revolução Francesa. Mas, para muitos historiadores militares, esses momentos foram identificados ou como batalhas decisivas ou como tecnologias de impacto, ou, ainda, como conquistas individuais de determinados comandantes. Esses determinismos são desafiados pela corrente principal da história e da ciência social, mas parecem ter conseguido certa longevidade no meio militar. Veja Jeremy Black, "Rethinking Military History"(Londres: Routledge, 2004).

[16] David Kilcullen, "Out of the Mountains: The Coming Age of the Urban Guerrilla" (Oxford: Oxford UniveristyPress, 2013).

[17] Em um trabalho recente, McKinsey and Company afirmam que as mudanças demográficas e o crescimento de mercados emergentes irão pressionar os recursos globais a um nível sem precedentes. Os preços dos alimentos crescerão em 40 % até 2030 e haverá um déficit de 30% entre a energia disponível e as demandas por petróleo e gás. É provável que haja um déficit em torno de 40% entre o suprimento e as demandas de água. O consumo de carne irá crescer no mundo, aumentando a pressão na busca por terras.

[18] Michael T. Klare, "Resource Wars: The New Landscape of Global Conflict" (New York: Metropolitan Owl, 2001). Os estados mais vulneráveis a conflitos são: Somália, República Democrática do Congo, Sudão e Sudão do Sul. Áreas com risco significativo incluem: Chade, Iemêm, Afeganistão, Haiti, República Centro-Africana, Zimbabwe, Iraque, Costa do Marfim, Paquistão, Guiné, Guiné-Bissau e Nigéria.

[19] Palestra de McKinsey na Universidade de Oxford, 28 de novembro de 2013.

[20] Ibid.


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Guerra Híbrida

Frederico Aranha

Defesanet, 30 de Abril, 2015


Roger Trinquier, Coronel do Exército Francês (originalmente um Colonial – Infantaria da Marinha Francesa) foi um notável operador de guerra irregular. Em 1953, o Major Trinquier era o responsável por todas as operações atrás das linhas inimigas na Indochina. Comandava mais de 20.000 nativos e regulares franceses do GMI (Groupement Mixte d’Intervention), engajados em guerra sem quartel às forças comunistas num teatro de operações de milhares de quilômetros quadrados de território inimigo.

Após o desastre de Dien Bien Phu, a Convenção de Genebra selou o fim da formidável operação.  Proibia à França suprir as forças partisan que permaneciam de qualquer modo lutando contra as forças comunistas no norte.

No relatório final, Trinquier, amargurado, lamenta a sorte da sua gente: A total supressão do apoio logístico ... resultará na progressiva liquidação dos nossos elementos (infiltrados). Não há a menor esperança dos líderes do nosso maquis escaparem da “clemência” do Presidente Ho Chi Minh. Após uma estada na França no Centro de Paraquedismo do Exército é promovido a Tenente Coronel e transferido para a 10ª Divisão de Paraquedistas, na Argélia, assumindo a área de inteligência da unidade.

O alto comando francês ordenou à Divisão que ocupasse Argel com a missão de limpar a cidade dos terroristas que infernizavam a vida dos cidadãos e desestabilizavam a autoridade, praticando atentados com bombas, assassinatos seletivos, sequestros e extorsão. Trinquier planeja, organiza e opera o desmantelamento de toda a estrutura da FLN (Front Nationale de Libération) na cidade, mediante o emprego (também) de métodos não convencionais de investigação e operação policial (entre eles tortura e ações de caça e extermínio).

Essa operação ficou plasmada em relatórios, estudos acadêmicos e militares, livros e filmes como A Batalha de Argel. Apesar do amplo sucesso da ofensiva, erradicando o problema, o destino da Argélia já estava traçado. De Gaulle apenas bateu o martelo da independência da colônia.  Com base na sua intensa experiência de guerra irregular, identificou uma dicotomia entre a guerra praticada até a IIª GM, a que chamou de guerre traditionale, e a surgida posteriormente – guerra subversiva ou guerra revolucionária – a que denominou guerre moderne.

Explica: (...) Difere (esta) fundamentalmente da guerra do passado, pois a vitória não resulta do choque de dois exércitos no campo de batalha. Essa confrontação, que em tempos passados ocasionava a aniquilação do exército inimigo em uma ou mais batalhas, não mais subsiste. A guerra é agora um sistema articulado de ações – política, econômica, psicológica, militar – que visa a derrubada da autoridade estabelecida no país e sua substituição por outro regime. Conhecia como ninguém a doutrina revolucionária de Mao Tse Tung, pois não só lutara contra os adeptos dela como até a adotara no comando de forças irregulares. Pode-se dizer que praticou embrionariamente a chamada Guerra Híbrida.
      
Outro inovador, o teórico militar israelense Martin van Creveld prognosticou nos idos de 1980 que o conflito convencional entre forças regulares de Nações-Estado declinaria em freqüência ao passo que conflitos de baixa intensidade, levados a cabo por guerrilhas, milícias religiosas, grupos terroristas e pelo crime organizado cresceriam de forma exponencial no mundo em desenvolvimento.

Suas previsões materializaram-se nas últimas décadas, resultando num desafio direto à ortodoxia dos sistemas militares ocidentais fundados no pensamento de Clausewitz. Saliente-se que o mestre prussiano passou ao largo das Guerras Medievais ao formular sua doutrina. Considerou que foram conflitos de Não-Estados caracterizados pela participação de exércitos de senhores da guerra, de facções religiosas, mercenários e de bandos de criminosos, ausentes, portanto, o Estado e exércitos nacionais. Na visão ortodoxa de Clausewitz o exame dessas guerras não tinha lugar reservado nas grandes questões que sobressaltavam e afligiam estadistas e estrategistas na era pós-Napoleão Bonaparte, período conturbado de transição da história política e militar universal. De fato, a Idade Média presenciou, levando em conta os degraus históricos que os separam, conflitos manifestamente assemelhados aos do cotidiano de hoje em dia.
           
São incontáveis as interpretações de especialistas buscando caracterizar a cognominada Guerra Híbrida: Nathan Freier do CSIS (Center for Strategic and International Studies), supostamente criador do termo, resume a Guerra Híbrida em quatros ameaças:

(1) tradicional ou convencional;
(2) irregular;
(3) terrorismo catastrófico e,
(4) caos.– proporcionando campo aos ativistas para explorar a melhor tecnologia visando contra atacar a superioridade militar.

O Tenente Coronel David Kilcullen (Australian Army, Ret.), conselheiro do Departamento de Defesa Americano e assessor do Gen. David Petraus, antigo Comandante Supremo no Iraque e no Afeganistão, classifica “Guerra Híbrida” como a melhor definição para os conflitos modernos, abrangendo uma combinação de guerra irregular, terrorismo e crime organizado para alcançar objetivos políticos.

Amanda Paul, jornalista investigativa turca de nomeada, afirma que a operação de ocupação e anexação da Criméia é o mais recente exemplo de Guerra Híbrida: (...) Começou com a presença em Fevereiro de 2014 dos ‘little green men’ na península, homens fortemente armados sem insígnia e identificação. Espraiaram-se e tomaram pontos chave da infraestrutura, pavimentando o caminho para a separação da Criméia. Na ocasião, Putin, questionado, insistiu que se tratava de ‘forças de autodefesa locais’. Mais tarde, após a anexação, admitiu que tropas russas estavam envolvidas na operação. A expressão little green men é um eufemismo de active intelligence empregada pelos soviéticos para abertamente cognominar grupo de irregulares (na verdade regulares) comandados e patrocinados secretamente pelo Estado.

O primeiro registro do termo se encontra em memorando de Stalin a Molotov datado de 07 de outubro de 1929, se referindo aos grupos armados de tropas soviéticas sem identificação infiltrados na Manchúria para combater e eliminar as milícias dos Senhores de Guerra chineses ao longo do eixo da Estrada de Ferro Chinesa do Leste, que a União Soviética por fim passou a controlar (Letters Stalin Molotov. 1925 - 1936. Collection of Documents. M., "Young Russia", 1995, str.167-168).

Ao examinarmos essas e outras definições e evidências, verificamos que todas têm em comum a mesma raiz: o conflito descentralizado, disperso (mas capaz de se concentrar rapidamente), caótico e, aparentemente, sem um objetivo estratégico convencional. Na verdade, a Guerra Híbrida não pode ser entendida e explicada à luz dos pensamentos político e militar ortodoxos.          

O país mais sensível às profundas alterações da estratégia conservadora é os EEUU. De acordo com o manual National Defense Strategy, melhorar a capacidade das forças armadas dos Estados Unidos em guerra irregular é a prioridade máxima do departamento de Defesa. Em artigo na Foreign Affairs, o antigo Secretário de Defesa americanoRobert Gates declarou enfaticamente que era hora de fomentar algum pensamento não convencional no Pentágono.
     
Mas, afinal, o que é a Guerra Híbrida? Pode-se cogitar de um conflito no qual os atores, Estado ou Não-Estado, exploram todos os modos de guerra simultaneamente, empregando armas convencionais avançadas, táticas irregulares, tecnologias agressivas, terrorismo e criminalidade visando desestabilizar a ordem vigente.

Essas atividades multimodais podem se realizar por meio de unidades operacionais separadas embora capazes de serem dirigidas e coordenadas de forma operacional e tática no âmbito da batalha principal, de forma a obter efeitos sinergéticos na dimensão física e dimensão psicológica do conflito. Sem embargo, o Coronel Frank G. Hoffman (USMC, Ret.), formulador da teoria da Guerra Híbrida, admite que a guerra híbrida não significa a derrota ou substituição da guerra antiga ou guerra convencional pela nova. Ainda assim, representa um fator embaraçoso para o planejamento da defesa no século 21.

Enfatiza que ocombate futuro premiará as forças versáteis, ágeis, adaptáveis e de mente expedicionária. Se refere, sem dúvida a tropas de elite, forças especiais e congêneres, unidades vistas com reserva por militares conservadores, o grosso dos altos comandos no mundo ocidental. A guerra ainda significa aplicar a força cinética, não importa o apelido que se lhe dê e o meio que se emprega.
       
A mais recente doutrina naval estadunidense reflete a visão de futuro do comando do Corpo de Fuzileiros Navais, do Chefe das Operações Navais e do comandante da Guarda Costeira a respeito: Os conflitos se caracterizam cada vez mais por uma mescla híbrida de táticas tradicionais e irregulares, planejamento e execução descentralizados e agentes que são Não-Estado e que utilizam tecnologias simples e as sofisticadas de forma inédita.

A Guerra Híbrida pode ser uma variação moderna do que se chamou guerra composta – começa com uma força regular e aumenta sua capacidade operacional agregando atividades irregulares ou vice-versa. Na Guerra da Península Ibérica Wellington expulsou os franceses da Espanha conduzindo uma luta convencional contra os marechais de Napoleão enquanto empregava as guerrilhas espanholas em ataques à retaguarda francesa. O Marechal de Campo Allenby operou de igual forma na Palestina contra os turcos na Grande Guerra, lançando um amplo assalto frontal de armas combinadas ao mesmo tempo em que irregulares beduínos e árabes, sob o comando de Lawrence da Arábia, infiltravam-se nas linhas interiores turcas, interrompendo comunicações e linhas de abastecimento e destruindo a infraestrutura.
     
Mao Tse Thung foi o primeiro a entender a alternância entre técnicas de guerra regular e as de guerra irregular. O líder chinês deduziu a teoria original da guerra revolucionária como o emprego de um misto de técnicas de guerra. Estabeleceu que a guerra revolucionária é, antes de mais nada, política, não militar, e que a primeira fase do conflito sempre envolve técnicas de guerra irregular. Não obstante, a vitória só será alcançada por meio do combate regular com forças convencionais. Destarte, sem cunhar o termo, o conceito da Guerra Híbrida nascia. Ho Cho Min empregou-a com sucesso contra japoneses, franceses, vietnamitas do sul e norte-americanos.
      
O plano operacional da Guerra Híbrida de que tratamos, inicia com a guerra irregular – as forças irregulares aumentam sua capacidade com armas convencionais. O termo em si captura a essência do problema ao definir sua organização e meios. Como já se viu neste século, essa situação cria um novo nível de ferocidade, combinando o fanatismo da guerra irregular com a capacidade militar convencional. Um bom exemplo é o Hezbolah na sua luta contra o Estado de Israel, acionando forças regulares as quais acresce grupos irregulares aptos a operar armas sofisticadas e atuando de forma independente com comando descentralizado.


Pode ocorrer também quando uma Nação-Estado converte suas formações regulares em combatentes irregulares como fez Saddam com seus fedayens em 2003. Exemplo marcante é o das forças regulares chechenas do antigo Exército Soviético transformadas em facções irregulares independentes, agindo em pequenas unidades e impondo derrotas contundentes ao Exército Russo.
      
Ron Tira, do Jaffa Center de Israel, observa que os atores híbridos são geralmente imunes à aplicação da força convencional, como o fazem os EEUU e Israel: empregar o conceito Schock and Awe e o método operacional de resultados contra uma organização guerrilheira do tipo Hezbolah, usando força alheia às circunstâncias, aos fatos e à natureza da guerra, é como tentar quebrar os ossos de uma ameba.
      
É, talvez, a assimetria moral o maior diferencial no campo de operações da Guerra Híbrida. Insurgentes taliban, iraquianos e soldados do Hezbolah, entre tantos outros irregulares, lutam, de um modo geral, por sua terra, sua religião e sua família, e mostram uma determinação de assumir ações de risco e morrer, o que tem alta significação tática.
      
O que parece perdido neste e em outros debates em que há empenho constante para reinventar princípios e teorias de guerra é o fato de ambos terem permanecido constantes, embora com nuances resultantes do desenvolvimento tecnológico, da ordem e desordem econômica e política, das ideologias e da alteração do quadro de poder mundial.
      
O criador e formulador da Teoria da Guerra de Quarta Geração, uma das variantes que pretende conceituar os conflitos contemporâneos, Coronel Thomas X. Hammes (USMC, Ret.), após o 11 de Setembro ponderou a respeito: Não há nada de misterioso com relação à Guerra de 4ª Geração. Assim como todas as guerras, objetiva alterar a posição política do inimigo. (...) Como todas as guerras reflete a sociedade de que faz parte. (...) Como todas as prévias gerações da guerra, evolui em consonância com a sociedade como um todo. Evolui porque gente prática resolve problemas específicos relacionados com suas metas políticas e com as lutas contra inimigos mais poderosos. Frente a adversários que não podem bater empregando a guerra convencional, adotam outra conduta.
      
O famigerado Tenente–General confederado Nathan Bedford Forrest, considerado por muitos historiadores militares o mais destacado comandante de cavalaria da Idade Moderna, tinha razão: Guerra quer dizer lutar e lutar quer dizer matar.
      
Os denominados paradigmas revolucionários da arte da guerra não podem alterar esta realidade.


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terça-feira, 19 de maio de 2015

[SGM] Como ações em Lisboa mudaram os rumos da Segunda Guerra Mundial

Dejan Stankovic

Galileu, 19/05/2015


Quando os aliados desembarcaram na Normandia, na França, o coronel norte-americano George Taylor disse: “Só dois tipos de homens ficarão nesta praia: os mortos e aqueles que vão morrer”. Era dia 6 de junho de 1944, data que entrou para a história como o Dia D.

Os militares não estavam tão confiantes. Afinal, era difícil ser discreto numa região dominada por 156 mil soldados em 7 mil embarcações, 20 mil veículos e 13 mil aviões nazistas. Por garantia, um dia antes, o então general Eisenhower até escreveu uma carta assumindo a culpa em caso de fracasso.

Os alemães sabiam do ataque. Mas esperaram pelo inimigo em Pas-de-Calais, a mais de 300 quilômetros do lugar certo. Hitler baseou-se na mensagem de um espião, o espanhol Juan Pujol García. O Führer só não sabia que o espião era agente duplo, mentor da maior mentira do século 20. E ele não foi o único a atuar em Lisboa durante a Segunda Guerra.

No início do conflito, Portugal apressou-se a declarar “neutralidade equidistante”. A simpatia do ditador António de Oliveira Salazar estava com os alemães, mas ele precisava honrar a aliança com os ingleses — a mais antiga em vigor no mundo, de 1373. 

Com o fechamento dos portos, Lisboa tornou-se o único ponto de saída da Europa, como bem sabiam Humphrey Bogart e Ingrid Bergman, no filme Casablanca. Enquanto os outros países se digladiavam, Portugal permaneceu um oásis de paz, e a proximidade física mostrou-se ideal para as atividades dos serviços secretos.

James Bond da Vida Real

O Hotel Palácio ficava perto da capital portuguesa, na luxuosa região do Estoril. Em 1940, hospedou-se lá o iugoslavo Duško Popov. Festeiro, ele era o estereótipo do boêmio mulherengo. Ou seja, o exato oposto da figura discreta de um espião.

Na verdade, Popov era agente duplo. Além de trabalhar para a Abwehr, a agência de informação alemã, ele também era funcionário do governo britânico. Em uma viagem aos Estados Unidos, namorou estrelas de Hollywood, gastou quantias obscenas e não recolheu nenhum dado útil para os alemães. A única informação digna que conseguiu foi para os norte-americanos: ele previu o ataque japonês a Pearl Harbor. Infelizmente, a informação foi ignorada por J. Edgar Hoover, então diretor do FBI, que o considerou pouco confiável depois de saber que seu codinome era Triciclo, porque gostava de ménage à trois. Mas a previsão mostrou-se verdadeira. A avaliação errada de Hoover — que gostava de se vestir de mulher e frequentar orgias, segundo a biografia Official and Confidential (“Oficial e confidencial”, em tradução livre), escrita por Anthony Summers — custou muitas vidas norte-americanas.

Na autobiografia Spy — Counterspy (“Espião — contraespião”, em tradução livre), Popov narra a ocasião em que cruzou com Ian Fleming, autor de James Bond, no Casino Estoril. À mesa de bacará estava um lituano de má figura, metido a gastador. Como Popov já o conhecia, quis dar-lhe uma lição: tirou do bolso um maço de US$ 30 mil, que recebera dos alemães para viajar aos Estados Unidos, e colocou tudo sobre o pano verde para aposta.

Seguiu-se um momento de silêncio e tensão. Ninguém cobria a aposta. O lituano não tinha como se safar de maneira honrosa. Popov, então, recolheu o dinheiro, dirigiu-se ao bar e, mesmo tendo ganhado muito, resmungava contra a política pouco séria do cassino. Ao passar por Fleming, captou uma inconfundível expressão de admiração.

Há quem afirme que Fleming modelou o caráter de James Bond pensando nesse episódio. Não há provas. Mas alguns críticos consideram que a cena mais marcante da bibliografia do inglês é uma de seu primeiro romance, Cassino Royale, na qual ele descreve um jogo de bacará com 007. Anos depois, o escritor afirmou que foram essas noites no Estoril que lhe serviram de inspiração.

Depois do fim da guerra, Popov casou-se várias vezes. Um integrante da sua família revelou que, na infância, fora certa vez com os pais para a Provença, na França, visitar o velho tio James Bond. Encontraram-no sentado na soleira de casa, doente, magro e tomando sol com um casaco de pele. A uns outros amigos meus ficou devendo dinheiro. No fim da vida, sempre tinha frio. E assim morreu em 1981.

Meu Nome é Fleming

Durante a guerra, o escritor Ian Fleming prestava serviço no departamento de informações da marinha de guerra do Reino Unido — era um espião. Mas, como o trabalho era de natureza administrativa, sua dedicação pouco contribuiu para a vitória dos aliados.

No início do conflito, o escritor foi encarregado de desenvolver um plano de defesa de Gibraltar, para o caso de o ditador espanhol Francisco Franco decidir entrar na guerra ao lado de Hitler e invadir esse estratégico território ultramarino britânico, que liga o sul da Espanha ao norte do Marrocos. O nome da operação era Goldeneye.

Com essa missão, Fleming passou por Lisboa. Mas, dos relatórios, depreen­de-se que ele fazia que sua vida imitasse a ficção, como na ocasião em que, sem motivo plausível, alugou um avião de Tânger, no Marrocos para Lisboa, pagando uma fortuna e enfurecendo seus superiores.

Impossibilidade Necessária

Em 1940, apareceu na embaixada britânica de Madri um sujeito meio calvo. Pediu para falar com alguém do serviço secreto e foi atendido. Disse ser Juan Pujol García, da Catalunha, e oferecia seus serviços como espião, mas não conseguiu a vaga.

Um ano antes, a Inglaterra declarara guerra à Alemanha. A solidariedade de Pujol intensificou-se quando ele soube dos campos de concentração. “Meus instintos humanistas não me permitiriam fechar os olhos para o sofrimento causado por esses psicopatas”, escreveu o agente no livro Operation Garbo.

Foi com esse humanismo aguçado que ele surgiu pela segunda vez na embaixada britânica para tentar uma vaga como espião. Foi novamente dispensado. Nessa época já não restava dúvida: tratava-se de um louco.

Dois anos depois, em 1942, através das mensagens inimigas interceptadas, os ingleses souberam que os alemães tinham uma rede de agentes secretos em solo britânico. E iniciaram uma busca.

No meio da comoção provocada por aquela informação, apareceu na embaixada britânica, desta vez em Lisboa, um sujeito meio calvo. Pediu para falar com alguém do serviço secreto e foi atendido. Disse ser Juan Pujol García, o chefe da rede de espiões procurada na Inglaterra. Na verdade, seus relatórios eram fictícios e estavam sendo enviados de Lisboa, não de Londres.

Pujol explicou então que, em 1940, depois de ter sido rejeitado pelos ingleses em Madri, decidira aproximar-se dos ale­mães com a mesma proposta. Convencera a Abwehr e, sob o codinome Arabel, recebera formação básica em técnicas de espionagem e cerca de US$ 900 para ir à Inglaterra.

Passando por Lisboa, única rota possível para Londres, Pujol decidiu ficar. Inventou uma rede de subagentes secretos imaginários e começou a enviar seus relatórios falsos, que se baseavam em pesquisas nas revistas da Biblioteca Nacional e nas notícias que chegavam a Portugal. Às vezes acertava alguma informação por sorte, o suficiente para tornar-se um nazista confiável. Sem sequer ter saído de Lisboa.

Mas Pujol não queria trabalhar para Hitler. Encantados com seu esquema, os britânicos lhe ofereceram um emprego. Por considerarem-no um grande ator, atribuíram-lhe o sobrenome da diva sueca Greta Garbo. E Garbo tornou-se agente duplo.

“Os mortos e aqueles que vão morrer”

Graças aos aviões de reconhecimento alemães que sobrevoavam a França, Hitler sabia que a Inglaterra estava preparando alguma coisa. Então, um novo plano começou a ser pensado pelos ingleses. Se Hitler acreditasse que um ataque à França (dominada pelos nazistas) aconteceria em determinado ponto, os aliados poderiam desembarcar em outro lugar e chegar de surpresa. O problema era movimentar 156 mil soldados em segredo. Para resolver o impasse, a rede de espiões imaginários de Garbo entrou em ação.

De acordo com Stephan Talty, no livro Agent Garbo, os aliados não economizaram esforços para fazer os alemães acreditarem que eles atacariam Pas-de-Calais, o ponto mais próximo entre a França e a Inglaterra, e não a Normandia. Criou-se um exército falso chamado First United States Army Group (“Primeiro Grupo das Forças Armadas dos Estados Unidos”, em tradução livre), ou Fusag, bem como uma estrutura inventada, com pistas de pouso, hospitais e acampamentos de madeira, tudo produzido por equipes de cinema. A encenação era levada tão a sério que, toda noite, um grupo de soldados era encarregado de mover os tanques de guerra infláveis para simular um movimento real.

Em posições estratégicas, os agentes falsos de Garbo relatavam a preparação cada vez mais intensa de um iminente ataque inglês.Os alemães não tinham dúvida de que o Fusag era real e de que o ataque aconteceria perto de Pas-de-Calais. Assim, o batalhão dos aliados chegou à praia de Omaha, na Normandia, sem ser percebido, na manhã de 6 de junho de 1944. 

Depois da guerra, Pujol temia represálias dos nazistas sobreviventes. Com a ajuda dos ingleses, viajou para Angola, onde fingiu a própria morte por malária. Às escondidas, mudou-se para a Venezuela e lá abriu uma livraria. Em 6 de junho de 1984, 40º aniversário do Dia D, o ex-agente foi convidado para a grande celebração nas praias da Normandia. Lá, fez sua última apresentação teatral: quando os sobreviventes vieram agradecer-lhe por ter ajudado, Garbo desatou a chorar. Chorou por não ter feito mais. Ele morreu em Caracas, em 1988.