domingo, 26 de janeiro de 2014

[SGM] O Holocausto esquecido de Winston Churchill

Chandak Sengoopta

The Independent, 03/09/2010

 
“Não me tornei o Primeiro Ministro do Rei para comandar o fim do Império Britânico,” declarou pomposamente Winston Churchill em 1942. A paixão pelo império não se refletiu, contudo, na missão de proteger as vidas dos súditos distantes do Rei, especialmente os indianos, “um povo bestial com uma religião bestial.” Em 1943, enquanto milhões estavam morrendo de fome em Bengala, Churchill não somente se recusou a ajudar mas preveniu outros de fazê-lo, comentando que os indianos “se reproduzem feito coelhos.” Os defensores de Churchill, mais interessados na dentadura do grande estadista do que em seus crimes de guerra, têm feito de tudo para manter essa estória estarrecedora em total silêncio.

As narrativas populares da Segunda Guerra Mundial publicadas na Europa e na América do Norte tendem a focar nas aventuras heroicas das nações aliadas enquanto elas lutavam contra a ameaça do fascismo. Todos os anos, editoras lançam dezenas de livros sobre a Batalha da Inglaterra, El-Alamein, Dia-D, Iwo Jima e outros episódios militares dramáticos da guerra. As narrativas centradas em batalhas tendem a diminuir, ou mesmo apagar, os efeitos duradouros da guerra já que são vistos como acontecendo longe dos principais teatros de conflito, especialmente nas colônias.

Muito tem sido escrito sobre a fome em Bengala na Índia e América, mas a maioria se concentra em fatores locais. A Guerra Secreta de Churchill, de Madhusree Mukerjee, direciona o desastre em seu contexto imperial, mostrando como a estória da fome está conectada com a história do movimento “Libertem a Índia” de Gandhi e com as atitudes e prioridades de Churchill e seu gabinete de guerra. Ele mostra como Churchill e seus associados poderiam ter facilmente impedido a fome com poucos envios de grãos, mas se recusou, apesar dos apelos repetidos de dois vice-reis sucessivos, do próprio Secretário de Estado de Churchill para a Índia e mesmo do presidente dos Estados Unidos.

Epidemias de fome, que nunca foram vistas na Índia, tornaram-se gradativamente letais durante o Raj[1] por causa da exportação de grãos e a substituição de safras de alimentos por índigo ou juta. A Segunda Guerra tornou as coisas piores, especialmente após as forças japonesas ocuparem a Birmânia em 1942, cortando as importações indianas de arroz. Então, um ciclone destrutivo atingiu a costa de Bengala justamente quando as colheitas de inverno cruciais estavam amadurecendo e o arroz remanescente foi destruído por doença. Funcionáris do Raj, temendo uma invasão japonesa, confiscaram tudo que poderia ajudar a força invasora – barcos, mapas, veículos motorizados, elefantes e, mais crucial, todo arroz disponível. Os japoneses nunca invadiram, mas um público em pânico – e muitos empresários – imediatamente começou a estocar arroz e a comida popular desapareceu dos mercados.

Os estoques estatais foram liberados, mas somente para o povo de Calcutá, especialmente empresários britânicos e seus empregados, trabalhadores de ferrovias e portos e funcionários do governo. Lojas controladas foram abertas para cidadãos menos importantes de modo que a população urbana de Calcutá não sofreu muito. As massas rurais, contudo, foram deixadas às moscas. Isto aconteceu quando Churchill poderia ter feito a diferença ao enviar trigo ou arroz para Bengala, e não seria preciso grandes quantidades. O objetivo seria acumular produtos pouco lucrativos e, como o vice-rei Lorde Linlithgow percebeu, “o mero conhecimento das importações iminentes” teria baixado o preço do arroz.

Churchill e seu gabinete de guerra, entretanto, decidiram reservar o embarque reserva disponível para levar comida à Itália no caso dela cair nas mãos aliadas. O nacionalista indiano Shbhas Chandra Bose, então lutando ao lado das forças do Eixo, ofereceu enviar arroz da Burma, mas os censores britânicos sequer cogitaram relatar essa oferta. A Austrália e o Canadá estavam ansiosos para enviar trigo, mas virtualmente todos os navios mercantes localizados no Oceano Índico moveram-se para o Atlântico no sentido de levar comida para a Grã-Bretanha, que já possuía uma situação confortável de estoques.

Assim, centenas de milhares morreram nas vilas de Bengala e, em meados de 1943, hordas de pessoas famintas fluíam para Calcutá, a maioria morrendo nas ruas, frequentemente em frente às lojas ou restaurantes servindo refeições saborosas. O clima da metrópole, um jornalista notou, estava cheio daquele “odor ácido característico que as vítimas exalam quando estão próximas do fim.”

Em Londres, o conselheiro adorado de Churchill, o naturalista Frederick Alexander Lindemann (Lorde Cherwell) era impassível. Um crente convicto da teoria malthusiana da população, ele culpava a alta taxa de nascimento indiana pela fome – enviar mais comida pioraria a situação ao encorajar os indianos a se reproduzir mais. O Primeiro Ministro compartilhava da mesma opinião e a expressou de forma tão doce que Leo Amery, Secretário de Estado para a Índia, explodiu de raiva, comparando sua atitude à de Hitler.

Os simpatizantes de Churchill sempre negaram que seu ídolo tivesse tido condições de aliviar a fome em Bengala. O embarque, eles afirmam, era raro e não era possível enviar comida para Bengala. Mukerjee detona esta “inexatidão terminológica” com precisão. Havia possibilidade de embarque no verão e outono de 1943, graças à transferência de navios cargueiros americanos para o controle britânico. Churchill, Lindemann e seus associados próximos simplesmente não consideraram as vidas indianas dignas de serem salvas.

Mukerjee pesquisou este holocausto esquecido com grande cuidado e rigor forense. Pesquisando uma grande variedade de fontes, ela não somente lança luz sobre a responsabilidade imperial na questão da fome, mas em uma série de assuntos relacionados, tais como o florescimento do nacionalismo nos distritos atingidos pela fome, a fúria de Churchill sobre o crédito financeiro que a Índia estava conseguindo em Londres ou a situação terrível nas vilas mesmo após a epidemia de fome estar tecnicamente encerrada. Seu relato emocionante da brutalidade imperial envergonhará os admiradores do Maior dos Bretões e assustar todos os outros.   

Nota do tradutor: estima-se o número de vítimas entre 1,4 e 4 milhões de pessoas.


Nota:

[1] período de dominação britânico, 1858 – 1947

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sábado, 25 de janeiro de 2014

[POL] Cartas de Himmler desaparecidas são reveladas

Die Welt, 24/01/2014

 
Heinrich Himmler foi um dos mais poderosos líderes nazistas dentro do círculo íntimo de Adolf Hitler. Ele foi o organizador cruel do Holocausto, chefe da Waffen-SS, Gestapo e da polícia – responsável pelos campos de concentração e pela morte de milhões de pessoas. Os documentos privados de Himmler estiveram perdidos por décadas. Somente agora, centenas de cartas particulares, notas e fotos da coleção particular do homem que teve o papel decisivo no extermínio em massa dos judeus foram reveladas.

O Die Welt obteve cópias dos documentos previamente desconhecidos que foram guardados na casa de um judeu israelense por um longo tempo. Eventualmente, elas foram parar em um arquivo particular e agora estão guardadas em um cofre de banco em Tel Aviv. Além das cartas que Himmler escreveu para sua esposa Margarethe (Marga) de 1927 até cinco semanas antes de seu suicídio em 1945, há muitas fotografias previamente desconhecidas, o espólio do filho adotivo de Himmler e outros documentos, tais como livro de receitas.

De acordo com a avaliação de especialistas do Arquivo Federal Alemão (Bundesarchiv) há evidência concreta de que os documentos são autênticos. O presidente Michel Hollmann disse ao Die Welt: “Estamos certos sobre estes documentos.” Na opinião da instituição mais importante do mundo que estuda o legado escrito do Terceiro Reich, ela diz: “Não há razão para duvidar da autenticidade dos documentos em Tel Aviv.”

Existe prova conclusiva que rastreia o material até suas origens. As cartas são frequentemente assinadas como “Dein Heini” (seu Heini) ou “Euer Pappi” (seu papai) e a caligrafia bate perfeitamente com documentos conhecidos de Himmler. Suas cartas também complementam exatamente as cartas de sua esposa, que estão mantidas no Arquivo Federal alemão por muitos anos.

O historiador e especialista em nazismo berlinense Michael Wildt descreve o achado como “um corpo denso de documentos privados. Não há nada como isso por parte de outros membros da liderança nazista.” Adolf Hitler e seu vice oficial Hermann Göring não deixaram virtualmente nenhum registro pessoal. O ministro da propaganda Joseph Goebbels, o quarto no escalão, deixou um inventário volumosos de diários manuscritos e ordens diárias. Mas eles são quase, sem exceção, material para propaganda futura e não realmente documentos íntimos.

As centenas de páginas da correspondência particular entre Heinrich Himmler e Marga parecem ser somente mundanas à primeira vista. Especialmente nos primeiros anos de sua relação, quando Himmler ainda não fazia parte do alto escalão nazista, eles escreveram muitas cartas de amor aparentemente comuns. Mas de vez em quando apareciam sinais do imenso antissemitismo de Himmler e de sua obcessão nestas primeiras cartas dos anos de 1927 e1928. Os documentos não mudam a imagem conhecida do reino do terror nazista, mas elas certamente acrescentam inúmeros detalhes desconhecidos e ajudam a dar uma ideia melhor de que tipo de pessoa era o líder da SS, sua vida diária e seu círculo de amigos.

Himmler nasceu em outubro de 1900, como o filho do meio de um professor secundário bávaro. Como soldado, Himmler tentou desesperadamente servir na frente de batalha da Primeira Guerra Mundial. Ele nunca conseguiu isso e compensou a “oportunidade perdida” com um comprometimento radical com os círculos nacionalistas bávaros: ele se filiou ao partido nazista como membro número 42.404. Durante o golpe do salão da cervejaria em novembro de 1923[1], Himmler serviu como guarda em um obstáculo colocado em frente ao Ministério da Guerra bávaro em Munique. Após a tentativa de golpe falhar, o agrônomo começou a divulgar suas ideias nacionalistas por meio de um alto-falante. Após o restabelecimento do partido nazista e de suas subdivisões no começo de 1925, ele tornou-se membro do ramo paramilitar do NSDAP (SA) mas logo mudou-se para a menor SS, a organização paramilitar de segurança. Ele se filiou com o número 168.

Como funcionário integral mal pago, Himmler encontrou a enfermeira divorciada Margarete Siegroth, que comandava um pequeno asilo em Berlim. Através de suas cartas para Marga, é possível pela primeira vez compreender como sua relação se desenvolveu até eventualmente eles se casarem em 3 de julho de 1928. A correspondência contém muitos detalhes desconhecidos sobre a ascensão de Himmler como funcionário e porta-voz nazista, assim como sua indicação de vice-chefe da SS em 1927 a Reichsführer SS (comandante supremo) em 1929.

Há grandes lacunas na correspondência nos anos 1930 e o destino destes documentos é desconhecido. Entretanto, o diário de Marga lança uma luz sobre a vida privada nada glamorosa  da família Himmler. Himmler manteve praticamente sua família fora dos holofotes públicos. Isto é um contrate com Hermmann Göring, que casou com a atriz Emmy Sonnemann em 1935 com grande pompa e Joseph Goebbels, cuja esposa Magda era a “Primeira Dama” da Alemanha de Hitler.

 
As cartas também mostram o casal se distanciando. De 1938 em diante, o líder da SS teve um caso com sua secretária particular. Contrariamente à crença dos biógrafos de Himmler, as cartas mostram claramente que o Reichsführer SS manteve contato próximo com sua esposa e filha de 1941 a 1945.

À medida em que ficou claro que o Terceiro Reich sofreria uma derrota desastrosa na Segunda Guerra Mundial, Himmler ainda manteve firme sua crença numa “vitória final” contra adversários superiores. Ele acreditava nisso mesmo quando tentava garantir sua sobrevivência entrando em contato confidencialmente com os Aliados ocidentais.

Mas isso nunca aconteceu: Himmler fugiu pouco antes da rendição, arrumou um nome falso e tornou-se prisioneiro de guerra em 20 de maio de 1945, como um soldado regular. Ele se revelou e cometeu suicídio três dias depois com uma cápsula de veneno enquanto era revistado em busca de pílulas de suicídio. Neste momento, os soldados americanos ocupando a casa da família Himmler em Gmund am Tegemsee já tinham confiscado seus documentos particulares. Quase sete décadas depois grande parte daquele material está agora acessível ao público pela primeira vez.


Nota:

[1] As Origens do NSDAP e o Golpe no Salão da Cervejaria   


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segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

A nova natureza da guerra

Estadão, 19 de janeiro de 2014

 


As mudanças na natureza da guerra moldam profundamente tanto a maneira como o Estado é organizado quanto as leis. Um exemplo disso é como a adoção da pólvora no campo de batalha e o surgimento de pequenos exércitos permanentes ajudaram a produzir as monarquias absolutistas dos séculos 16 e 17. O recrutamento em larga escala pelos Exércitos revolucionários de Napoleão, por sua vez, ajudou a explicar o começo do fim dessas monarquias. A necessidade de construir e sustentar forças cada vez maiores levou também à criação dos aparatos do Estado moderno, como censo, tributação universal e educação básica.

Estamos num outro ponto de inflexão importante, no qual a tecnologia está reformulando a maneira como as guerras são travadas. O futuro da guerra será moldado pelo papel de aviões não tripulados cada vez menores, robôs no campo de batalha, capacidade de guerra cibernética, capacidades extraordinárias de vigilância tanto no campo de batalha quanto de indivíduos particulares, maior dependência de forças especiais em conflitos não convencionais, a militarização do espaço e o avanço tecnológico no campo da biotecnologia - que tem implicações importantes para a construção de armas de destruição em massa.

Cientistas já podem fabricar organismos vivos, incluindo novos vírus. Essas inovações são úteis para cientistas, mas também, potencialmente, para terroristas e Estados inescrupulosos.

No caso dos drones, eles permitem assassinar indivíduos a grande distância por controle remoto e estão se proliferando de maneiras inesperadas. O breve monopólio que EUA, Grã-Bretanha e Israel detiveram já se evaporou. A China surpreendeu os EUA em 2010 quando anunciou 25 modelos de drones numa feira aeronáutica, alguns deles capacitados a disparar mísseis. No ano passado, os chineses anunciaram que haviam planejado assassinar um notório chefão da droga que estava escondido numa área remota de Mianmar com um drone armado, mas acabaram optando pela sua captura.

Do mesmo modo como o governo americano justifica os ataques com drones no Paquistão e no Iêmen, com o argumento de que estão em guerra com organizações terroristas como a Al-Qaeda, pode-se imaginar a China atacando separatistas uigures, chineses exilados no Afeganistão, sob o mesmo pretexto. O Irã - que alega possuir drones armados - poderia atacar nacionalistas baluchi ao longo de sua fronteira com o Paquistão.

Ainda assim, o Pentágono, com sua característica mentalidade de curto prazo e com enfoque excessivo na "prontidão" e não suficiente na "prevenção", parece recuar de uma adoção plena dos drones, cortando gastos neles apesar de continuar dedicando bilhões de dólares a aviões de guerra tripulados.

Já o "cerco cibernético" é uma técnica em potencial no novo mundo da guerra, como determina Sascha Meinrath, da New America Foundation. Atualmente, concebemos a maioria dos ataques de hackers como oportunistas, significando que eles se concentram nos alvos mais desprotegidos. Entretanto, Meinrath prevê que um inimigo que elimine funcionalidades básicas de nossos sistemas de computadores pode prejudicar nossa sociedade, cada vez mais dependente da tecnologia, e isso conduziria então a um ciberataque mais invasivo e de longo alcance.

A fabricação científica de vida, a proliferação de drones e a crescente oportunidade de cercos cibernéticos são apenas a ponta do iceberg. A evolução de tecnologias de vigilância, de armas espaciais e de sistemas não tripulados autônomos de todos os tipos também está transformando a guerra.

Novas tecnologias também democratizaram a violência, permitindo que atores não estatais usem e ameacem usar força letal numa escala anteriormente associada somente a Estados. Os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 abalaram o pressuposto confortável de que os EUA só teriam de enfrentar adversários convencionais. Desde o 11 de Setembro, os EUA lutaram em conflitos de vários tipos contra uma variedade de redes como a Al-Qaeda e seus aliados no Afeganistão, no Iraque, no Paquistão, na Somália e no Iêmen.

Tomadas em conjunto, as mudanças recentes tanto nos equipamentos tecnológicos da guerra como nos inimigos apagaram as fronteiras entre o que consideramos tradicionalmente como "guerra" e "paz", militar e civil, estrangeiro e doméstico, nacional e internacional.

Essas alterações borraram as linhas entre a lei militar e a legislação penal, fazendo os EUA entrarem em conflito sobre a forma ideal de processar membros da Al-Qaeda que são parte de uma organização criminosa que, ao mesmo tempo, está em guerra contra os EUA e seus aliados.

Borraram as linhas entre papéis militares e civis, como o fornecimento de ajuda e desenvolvimento. Considere o caso dos membros das equipes de reconstrução provincial em zonas de guerra como o Afeganistão, onde eles são basicamente assistentes sociais armados.

Borraram as linhas entre público e privado. Empreiteiros privados agora lidam com um número considerável de funções militares que anteriormente seriam de funcionários públicos. Isso suscita questões legais e contábeis espinhosas. Por exemplo, um funci0nário terceirizado envolvido no programa de drones da CIA pode ser acusado de assassinato se um civil for morto num ataque com esse avião?

Borraram as linhas entre os militares e a comunidade de inteligência. Quase não se comenta mais que a CIA virou uma espécie de organização paramilitar que, por estimativas conservadoras, matou cerca de 3 mil pessoas com ataques de drones no Paquistão e no Iêmen apenas durante o governo do presidente Barack Obama.

Borraram as linhas entre interno e externo. A agência de espionagem mais bem financiada do Pentágono, a NSA, foi montada para conter as ameaças de uma União Soviética com armas nucleares.

Essas mudanças corroeram conceitos tradicionais de soberania. Com cada vez mais Estados desenvolvendo tecnologias que lhes permitem "chegar ao interior" de outros Estados com um risco pequeno (seja usando tecnologias de drones, sistemas de vigilância ou ferramentas cibernéticas), a natureza e significado de soberania está mudando.

Como observou o historiador Charles Tilly: "A guerra fez o Estado, e o Estado fez a guerra". Se a guerra está mudando, o Estado mudará e também as organizações não estatais que desafiam cada vez mais esses Estados e as organizações internacionais que buscam canalizar o comportamento do Estado. Como evoluirão essas mudanças é difícil de prever, mas elas provavelmente serão tão profundas quanto a transformação do mundo pré-Vestfaliano no mundo moderno de Estados-nação.

sábado, 18 de janeiro de 2014

[SGM] Dormindo com o Inimigo

Daily Mail, 17/07/2008


Paris no mês de maio estava repleta de exuberância afrodisíaca.

As garotas desfilavam pelas avenidas com suas saias curtas e estampadas, seus cabelos fluindo vigorosamente para trás.

No rádio, o cantor Tino Rossi – a versão francesa de Rodolfo Valentino – apresentava seu último sucesso romântico.

Porém, poucas semanas depois, em 14 de junho de 1940, o exército alemão marchou sobre a capital e a ocupou por quatro anos.

A França jamais esqueceu essa humilhação – ou seu espanto – em ter que se ajustar a uma vida íntima com seu velho inimigo, com todo o ressentimento, culpa e, o pior de tudo, os segredos.

Todos ficaram surpresos que os altos e loiros invasores não partiram para a violência sexual contra a população. Ao invés disso, eles trouxeram pão e tortas.

Além disso, eles eram mais simpáticos e bravos do que os soldados franceses beberrões que se renderam durante o combate.

Logo, toda criança francesa queria ser alemã, enquanto que toda garota francesa procurava os invasores, vistos como aliados e não inimigos, oferecendo-lhes laranjas e observando o interior luxuoso de suas limusines.

E as donas de casa francesas, privadas de companhia enquanto seus maridos soldados eram mantidos prisioneiros, ficavam felizes em dormir com o inimigo.

Os franceses por muito tempo tentaram esconder estes aspectos da ocupação, afirmando que atos heroicos de resistência durante o período foram realizados quando, na verdade, eles não eram mais do que colaboradores.

Agora, com uma coragem incomum, Patrick Buisson, diretor do Canal de História da França, TF1, escreveu um livro, cujo título excitante - 1940 – 1945: Os Anos Eróticos – mostra a extensão na qual seus queridos compatriotas na verdade apreciaram sua experiência de guerra.

A revelação vem numa época em que Paris está sendo questionada por causa de uma série de memórias perturbadoras da era.

Uma exibição de fotografias em exibição na Biblioteca de História da cidade apresenta os parisienses como apreciando imensamente a vida durante a ocupação – e algumas pessoas ficaram distintamente irritadas.

De fato, o vice-prefeito de Paris disse que ele preferia ficar doente a ter que ver fotos de cidadãos bem vestidos fazendo compras em um mercado repleto de frutas e vegetais, confrontando com a imagem que a França vende de que os anos de guerra foram difíceis.

Uma fotografia mostra apostadores se reunindo em clubes noturnos. Outras mostram mulheres vestindo maiôs brincando à beira de piscinas, ou usando chapéus elegantes em pistas de corridas.

Tudo dá a impressão de que, longe se ser uma época de fome, medo e resistência, a vida durante a guerra era uma grande festa.

E, apesar de uma foto mostrar dois judeus vestindo a obrigatória Estrela de David amarela, tornada obrigatória pelo governo de Vichy em 1941, não existe consciência de que os franceses enviaram 76.000 judeus para a morte enquanto seus compatriotas estavam se divertindo.

O exemplo para este comportamento, de acordo com o livro de Buisson, veio do alto.

O idoso Marechal Petain, que comandava o governo de Vichy, foi preso por colaboração após a guerra, mas ele foi autorizado a dar à sua libido de 84 anos controle total, vergonhosamente seduzindo sua equipe mais jovem, enquanto recomendava o lema “trabalho, família, país” para o resto da nação.

Buisson afirma que as esposas deixadas para trás na Paris ocupada tiveram uma atitude semelhante.

Elas não se cansavam dos bárbaros nórdicos, e muitos fatores conspiraram para ajudá-las.

Primeiro, havia um toque de recolher entre as 23:00 e as 05:00, obrigando todo mundo a ficar em casa.

Além disso, Paris foi imediatamente mergulhada no verão alemão, que – junto com o blecaute e o racionamento da energia elétrica – garantiu que ela ficava no escuro duas horas antes do que o usual.

Então houve o rigor particular do primeiro inverno após a ocupação, quando a cama era o melhor lugar para ficar.

Mas foi mais complicado que isto. As duas nações usaram o sexo tanto como arma de guerra quanto meio de sobrevivência.

Na Renânia, prisioneiros franceses apreciavam casos com garotas locais como uma forma de vingança, enquanto que em casa suas esposas e namoradas faziam amizade íntima com oficiais alemães, ou com qualquer um que pudesse dar-lhes suprimento de comida, calor e roupas quando havia escassez.

De acordo com Buisson, jovens garotas francesas casamenteiras provavelmente sucumbiriam à tentação de se envolver com seus chefes, vizinhos ou mesmo o verdureiro se elas lhes devessem dinheiro e se tornassem adeptas da fuga dos olhos vigilantes de suas madrastas ou qualquer outro bisbilhoteiro de seus prazeres ilícitos na comunidade.

Muitos destes ocorriam nas salas de cinema. Durante os quatro anos de ocupação, o país inteiro estava indo ao cinema pelo menos uma vez por semana em números surpreendentes, deixando as crianças por sua própria conta em casa.

Logo, o número de espectadores estava atingindo novos recordes – 224 milhões de ingressos foram vendidos em 1941, atingindo 310 milhões em 1943 enquanto os franceses se agarravam ao escapismo, a tepidez e as aventuras eróticas que o cinema oferecia.

Era muito mais barato que um quarto de hotel e mais privado que em casa. Mesmo o metrô oferecia uma oportunidade para o sexo durante o blecaute. Não é de surpreender que estes foram chamados “os anos sombrios”.

Naturalmente, houve consequências inevitáveis. Enquanto a taxa de nascimento caiu durante os dias sombrios da Blitz, a taxa de nascimento francesa elevou-se após a chegada dos alemães, apesar do fato de que mais de dois milhões de homens franceses estivessem presos em campos de prisioneiros de guerra.

Até 30% dos nascimentos eram ilegítimos em algumas partes de Paris. Isto deu às autoridades francesas uma dor de cabeça particular. Por um longo tempo, eles lamentaram que a França estava subpovoada; agora, eles não sabiam se ficavam alegres ou deploravam cada novo parto.

E não somente houve um aumento robusto nos nascimentos, mas também nos abortos ilegais – em 1941, quase 20% de corpos femininos chegaram ao necrotério criminal em Paris em virtude de intervenções ilegais.

A análise de Buisson da vida sexual ativa de seus compatriotas enquanto a Europa estava em combate dificilmente emociona seus leitores franceses, mas seu academicismo de 500 páginas está repleto de evidência comprobatória.

Paris mudou assim que os alemães chegaram e plantaram em todos os velhos pontos conhecidos, incluindo hotéis luxuosos como o Crillon e o Ritz, a bandeira nazista.

As primeiras pessoas a tirar vantagem dos recém-chegados foram as prostitutas. Logo, mesmo a intelectual Simone de Beauvior não podia ignorar sua presença em locais previamente sobrevalorizados no intelectual La Rive Gauche (n. do t.: margem sul do rio Sena).

Mesmo assim, nem todas as mulheres oferecidas eram prostitutas antes da guerra. Algumas eram respeitáveis donas de casa e mães, e afirmavam que elas estavam se prostituindo apenas para comer.

Para os alemães, este comportamento só podia ser esperado. Em sua imaginação popular, a França era imoral, libertina e devassa – e no final de seu primeiro verão em Paris, eles estavam certos de tal reputação.

Os recém-chegados trouxeram seu formidável talento para a organização, incluindo as avaliações médicas e o tratamento compulsório para doenças venéreas nos mais famosos bordéis da cidade, incluindo o favorito de Eduardo VII (n. do t.: rei da Inglaterra, 1901 – 1910), o Le Chabanais, próximo do Louvre.

Enquanto isso, seus oficiais frequentavam entusiasticamente os clubes noturnos e cabarés mais famosos, enquanto os nativos reagiam frequentando salões de dança ilegais que se espalharam em garagens e atrás dos bares.

Uma das primeiras coisas que os franceses aprenderam dos alemães foi o culto à juventude e ao corpo.

Seu símbolo mais conhecido para isto era o tenista e campeão de Wimbledon Jean Borota (sempre lembrado neste lado do Canal como “o Basco limitado”).

Ele foi recrutado para uma campanha publicitária estimulando a nação francesa a vestir roupas esportivas e fazer os bons exercícios alemães – natação, corrida e salto – de modo que os educadores tradicionais começaram a reclamara de que as escolas francesas estavam abandonando seus padrões intelectuais em favor da força física.

Podemos pensar que um país sob o domínio da força teria reagido contra ao excesso de veneração ao herói da mente masculina, mas os franceses foram surpreendentemente arrastados para os atributos masculinos, enquanto embarcavam em uma viagem pela busca de sua alma, perguntando-se se um homem derrotado poderia ainda ser um homem.

Seu exército havia desistido de lutar, mas o país estava cheio de movimentos juvenis tentando imitar as características da Juventude Hitlerista.

Por outro lado, as mulheres não tinham tais crises de identidade. Intoxicadas entre as guerras pela cultura americana, elas fumavam, vestiam desafiadoramente saias curtas e acreditavam na libertação da mulher.

Com outra guerra, elas ficaram na delas, usando toda sua inventividade para apresentarem-se glamorosamente ao mundo, mesmo quando as roupas finas estavam racionadas.

“As mulheres francesas nunca vestiram tão pouco quanto elas fizeram nos anos da guerra, e elas nunca estiveram tão lindas,” observou um comentarista.

Logo, com seus homens longe, elas também invadiram os guarda-roupas masculinos, vestindo as calças de seus maridos, dando a si mesmas poderes para viver como homens e de forma bem sucedida derrubando os decretos da Igreja Católica Romana e do governo contra modismos masculinos – e liberaram o comportamento que vinha com isso.

Os jovens também, privados em muitas famílias da mão firme da orientação paterna, aproveitaram a oportunidade para quebrar as regras – e aparentemente não havia nada que pudesse ser feito.

Um pai que castigou suas duas filhas por terem dormido fora de casa no sul da França foi condenado por um juiz pela sua atitude excessiva e ordenou que ele pagasse uma fiança elevada. Mesmo as autoridades, isso parece, não podiam esperar para se libertar delas.

Entre os rebeldes mais espetaculares estavam os “zazous”, os jovens boêmios unisex.

Distintos pelo seu senso de moda extravagante, que consistia em casacos de pelúcia para os homens, usados ​​com sapatos de sola grossa e cabelo comprido oleoso, e saias curtas e meias listradas para as mulheres, acompanhadas de grandes óculos de sol, cabelo loiro tingido e batom vermelho, eles foram inspirados pelo jazz e pela música swing dos EUA, que muitas pessoas ainda achavam decadente.    

O “zazous” emprestou seu nome e senso de moda do estilo de roupa do músico afro-americano Cab Calloway (n. do t.: traje com ombros largos, paletó muito comprido, calças amplas, mas muito estreitas embaixo) e sua famosa canção Zah Zuh Zah. Eles assombravam as avenidas e cafés de St. Germain, vivendo um estilo de vida hedonista que desapareceu da história.

O campeão do movimento era o cantor Charles Trenet, que mais tarde compôs o sucesso Beyond the Sea, eternizado na voz de Bobby Darin (1936 – 1973).

Gay numa época quando os homossexuais eram agressivamente perseguidos pelos nazistas – embora a prática tenha se tornado conhecida na França como “o vício alemão” por aqueles que viam a invasão como uma metáfora para penetração sexual – ele escondeu suas preferências casando-se com a herdeira americana do tabaco Doris Duke, entre outras.

Muitas outras personalidades gays protegiam-se por meios mais duvidosos. O escritor ganhador do Prêmio Nobel Andre Gide, que havia sido apresentado ao homossexualismo por Oscar Wilde, não se incomodava em esconder sua orientação sexual.

Ao invés disso, ele viveu no sul da França, bem longe do avanço da Wehrmacht, afirmando abertamente que estava encantado por Hitler.

Ele achava que o Führer terminaria como líder da Europa, trazendo grande progresso e que a única falha de sua política – sua atitude em relação aos judeus – era perdoável.

Ironicamente, muitos dos cineastas e artistas que atravessaram a tênue linha entre a colaboração e a resistência são os nomes que o mundo agora se lembra.

Enquanto os outros estavam lutando, a França estava trilhando um caminho alternativo, que seria retomado após a guerra em Nova York e Londres – especialmente quando as novas ideias foram tornadas respeitáveis pelos filósofos Simone de Beauvoir e Jean Paul Sartre, que tornaram digno o modo de vida “vale tudo” como o novo credo definitivo: existencialismo.

Como o próprio Sartre disse após ele ser libertado de um campo de prisioneiros por motivos de saúde, ele nunca se sentiu tão livre quanto nos anos de guerra, enquanto que de Beauvoir considerou o sexo como uma obrigação positiva que ajudava as pessoas a se sentirem vivas quando todo o mundo ao redor estava se destruindo. Isto, de fato, foi o início da época moderna.


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domingo, 12 de janeiro de 2014

[SGM] Organização da Kriegsmarine (Marinha de Guerra)

Histórico

A Marinha de Guerra alemã não pode ser considerada “tradicional” se for comparada com a britânica, cuja origem remonta ao reinado de Alfredo, o Grande (849 – 901). A Marinha alemã é, inclusive, considerada moderna; foi criada em meados do século XIX.

Os numerosos e pequenos estados, dispersos ao longo do litoral do Mar do Norte e do Báltico, não tinham suficientes recursos para manter uma frota capaz de enfrentar-se a outras grandes potências europeias, e menos se um dos inimigos fosse a Marinha britânica.

Assim, foi preciso contratar navios corsários para combater a pirataria, atrasando ainda mais o desenvolvimento de uma estrutura que pudesse organizar a futura Marinha de Guerra.

Em 1848, a situação começou a mudar quando a Assembleia Nacional alemã (Bundestag) reuniu-se em Frankfurt para criar uma marinha de guerra. No entanto, sua presença na história militar é discreta e essa marinha foi dissolvida em 1852. Um ano depois, foi fundado o almirantado da Real Marinha prussiana, o primeiro órgão com direção independente, mas que ainda desempenhava um papel modesto – não tinha navios de primeira linha e sua principal tarefa era o transporte de tropas.

Após a criação do Império Alemão em 1871, também se constitui a Marinha de Guerra alemã, sob as ordens diretas do imperador. Mas não foi até 1888, com a ascensão de Guilherme II ao trono – um monarca entusiasmado com o poder naval -, que a força passou de ter um punhado de navios de cabotagem a contar com uma grande frota de guerra.

De acordo com o novo empenho expansionista, decidiu-se optar por um modelo parecido ao da Grã-Bretanha, a maior potência marítima da época e futura rival da Alemanha – a maior parte dos especialistas daquela época tinham os olhos postos no apogeu do Império Britânico.

Depois da derrota na Primeira Guerra Mundial e da assinatura do Tratado de Versalhes, o desenvolvimento naval alemão foi interrompido. Mas, em 1921, o novo parlamento, democraticamente eleito, decretou a lei de serviço militar, na qual se inclui a decisão de formar a Marinha Nacional alemã (Reichsmarine).

O Alto Comando, presidido pelo almirante Paul Behnke (substituído em 1924 por Hans Zenker; e este por Erich Raeder, quatro anos depois), tinha de se enfrentar às duras restrições impostas pelo Tratado de Versalhes – que estipulava as restrições impostas às Marinhas de Guerra derrotadas – e pelo Tratado de Washington – que determinava os novos pactos internacionais.

Os termos de Versalhes eram muito rígidos, sobretudo no que se referia à limitação quantitativa da tripulação – limitava-se o número de marinheiros, o que dificultava o cumprimento de todas as tarefas. Desse modo, a Marinha Nacional alemã teve de recrutar marinheiros e oficiais entre os antigos reservistas. Foi a única maneira de contar com homens experientes a um custo razoável. Ao longo da década de 1920, calcula-se que para cada posto da Armada havia cerca de cinquenta candidatos, gerando, entre os selecionados, a ideia de que pertenciam a um grupo de elite.

A Kriegsmarine

Em 24 de março de 1933, o então Chanceler Adolf Hitler obteve plenos poderes do presidente da república, Paul Von Hindenburg, dando lugar à formação do Terceiro Reich. O novo governo realizou imediatamente várias mudanças que afetaram as Forças Armadas.

Em 1935, coincidindo com o fim das sanções do Tratado de Versalhes, a Marinha Nacional alemã converteu-se na Marinha de Guerra (Kriegsmarine).

A mudança indicava, sem dúvida alguma, a intenção política e estratégia do novo regime. A nova lei de serviço militar determinava que o Chanceler e o chefe de Estado também assumiam a chefia das Forças Armadas (Wehrmacht) e da Armada (Reichswehr). Alguns anos depois, Hitler criou em Berlim o Alto Comando das Forças Armadas (OKW, Oberkommando der Wehrmacht), sob o seu comando.

Além disso, mudanças significativas foram realizadas na organização das forças navais. A mais importante foi a eliminação do almirantado anterior e a criação do Alto Comando Naval (OKM, Oberkommando der Kriegsmarine), controlado pelo Comando Supremo da Marinha (ObdM, Oberbefehlshaber der Kriegsmarine).

A partir de sua posse no cargo, no final da década de 1920, o almirante Erich Raeder, promovido a grande almirante em 1939, desempenhou um papel decidivo na nova orientação estratégica da Marinha de Guerra alemã. Hitler – que tinha poucos conhecimentos sobre a guerra em alto-mar – aceitou as propostas de Raeder, mas manteve sua autoridade dentro da instituição.

Bandeira de Guerra das Forças Armadas alemãs (criada por Hitler)
 
O Tratado Naval Anglo-Germânico

Em junho de 1935, o Tratado Naval Anglo-Germânico foi assinado. Tendo renunciado às limitações do Tratado de Versalhes em março, a Alemanha obtinha formalmente o direito de aumentar sua marinha até atingir 35% dos efetivos da Marinha Real britânica. Também se concordou com o renascimento do setor de submarinos. O Tratado foi uma obra-prima de propaganda que anunciava ao mundo que a Alemanha não tinha intenções de desafiar a Grã-Bretanha para outra “corrida naval”. Mas, passados apenas 11 dias da assinatura, o U-1 foi incorporado à esquadra, em Kiel. Por volta de janeiro de 1936, mais onze submarinos haviam sido incorporados – e todos eles já estavam em construção meses antes da assinatura do Tratado.

Teve início a seguir a construção da frota de batalha propriamente dita. Primeiro vieram dois couraçados com três torres de três canhões de 11 polegadas, em vez das duas torres de três canhões de 11 polegadas encontradas nos couraçados-de-bolso. Eles também tinham armamento secundário pesado, de canhões de 5,9 polegadas e podiam alcançar 32 nós. Anunciou-se que deslocavam 26.000 toneladas, mas na verdade ambos deslocavam 32.000 toneladas, grande parte devida à pesada couraça protetora. Foram batizados com os nomes dos cruzadores que o almirante Graf Von Spee venceu a esquadra britânica na cidade chilena de Coronel, em 1914: Scharnhorst e Gneisenau.

Em 1936, iniciou-se a construção dos dois mais poderosos couraçados de que se tem notícia até que a Marinha Imperial japonesa apareceu com os supercouraçados da Classe Yamato: Bismarck e Tirpitz, armados com canhões de 15 polegadas. Uma vez mais, as autoridades alemãs atenuaram seu verdadeiro deslocamento, anunciando 35.000 toneladas para ambos (o Bismarck deslocava 41.700 e o Tirpitz 42.900). Dois outros cruzadores leves, o Leipzig e o Nürnberg, já se haviam unido à frota, e um sexto, o Königsberg, foi lançado ao mar em 1937, juntamente com os dois primeiros cruzadores pesados, o Admiral Hipper e o Blücher, armados com canhões de 8 polegadas.

A Estrutura do Alto Comando Naval (OKM)

Em novembro de 1938, pouco antes do início da Segunda Guerra Mundial, a Marinha de Guerra alemã organizou-se da seguinte maneira: sob o comando de Hitler e do marechal de campo Keitel estava o comandante supremo da Marinha e do Alto Comando Naval, o almirante Erich Raeder.

O seguinte oficial na hierarquia do OKW era o comandante em chefe e chefe do Estado Maior naval, o vice-almirante Otto Schniewind. Na figura 1, descreve-se detalhadamente a estrutura do OKM a partir de agosto de 1939.

A segunda cadeia de comando inclui as diferentes regiões navais, representadas pelos comandantes chefes do Mar Báltico e do Mar do Norte, bem como pelos representantes das frotas do Este, sob o comando do almirante Hermann Böhm.

Böhm também comandava os oficiais dos navios de combate, reconhecimento e lanchas torpedeiras, liderados pelo vice-almirante Günther Lütjens, além dos oficiais das lanchas draga-minas e do comandante chefe da frota submarina, o comodoro Karl Dönitz.


Recrutamento

Até em tempos de guerra, a Marinha alemã somente aceitava voluntários que se comprometiam a servir como mínimo quatro anos.

Os suboficiais, no entanto, deviam manter-se ativos durante um período de doze anos. Entre 1935 e 1936, exigia-se que os candidatos tivessem entre 17 e 23 anos, estatura mínima de 1,60 m, fossem alemães e tivessem determinadas características físicas para o serviço militar em alto-mar (tônus muscular e rápida capacidade de reação).

Os recrutas tampouco podiam ter antecedentes criminais e, de acordo com as leis de pureza racial promulgadas pelo regime nazista, deviam ostentar sua ascendência ariana. Valoravam-se os candidatos que tivessem prestado o serviço de trabalho nacional (Reichsarbeitsdienst), mas, se não o tivessem feito, podiam apresentar um documento com as razões que justificavam a falta.

Como era de se esperar, os candidatos tinham de ser solteiros e os menores de 21 anos necessitavam da autorização dos pais. Depois de superar um exame, tinham de esperar que o período de recrutamento se iniciasse.

Classes e Patentes

Classes Inferiores

Em linhas gerais, distinguiam-se em: marinheiros, marinheiros de primeira classe, cabos, cabos de primeira classe e cabos maiores.

Nos graus inferiores, era comum que um marinheiro de tropa fosse promovido primeiro a marinheiro de primeira classe depois de nove meses em serviço. Depois de um ano, convertia-se em cabo e, dois anos depois, em cabo de primeira classe.

A hierarquia foi unificada em 1938. Antes, na Marinha alemã havia o posto de fogoneiro, o mais baixo. Excetuando os suboficiais, os postos menores eram reconhecidos pela denominação terminada em gast (homem), como por exemplo, funkgast (operador de rádio).


 
 


Suboficiais

A introdução de novos dispositivos (armas ou sistemas de governo e comunicação) requeriam a participação de pessoal qualificado, com formação e experiência específicas para a realização das tarefas.

Dividiam-se em dois grupos: suboficiais sem espada e suboficiais com espada.

Os suboficiais sem espada ocupavam-se de diversas tarefas especializadas. Em geral, dividiam-se em três grupos: encarregados das tarefas a bordo; dedicados aos trabalhos administrativos; integrantes da equipe médico-sanitária. O acesso a esse grau obtinha-se após vários anos de serviço, depois que o interessado tivesse concluído o período de formação e demonstrado ter a experiência necessária.

Os suboficiais com espada possuíam um distintivo no antebraço, que formava parte tanto da roupa de trabalho como do uniforme de gala. Na base deste grupo, encontravam-se os sargentos, que se podiam converter em sargentos de primeira classe depois de dois anos de serviço e obter um certificado de aptidões. Os sargentos de primeira classe que tivessem permanecido 11 anos ou mais no cargo, de acordo com seus méritos e formação, podiam chegar a brigadas. Depois estavam os subtenentes. A promoção a esse grau era especial. Em princípio, podiam chegar a esse grau os suboficiais melhor preparados após um ano de serviço e, se superavam a fase de formação, eram imediatamente promovidos.





Oficiais

Na Marinha de Guerra alemã, o termo oficial, derivado do latim officium, aplica-se a partir do grau de tenente. Sua origem remonta à época dos Grandes Eleitores (1620 – 1688), quando os príncipes alemães tinham o privilégio de escolher o imperador do Sacro Império Romano-Germânico. Naquela época, a patente era aplicada apenas aos exércitos de terra, visto que a força naval era recente na história militar da Alemanha.

Os candidatos que desejavam seguir a carreira de oficial deviam cumprir alguns requisitos mínimos, exigidos também aos marinheiros de qualquer outro posto. Deviam ser alemães e apresentar um certificado que demonstrasse que tinham concluído o Ensino Médio (Abitur, na Alemanha) ou que tinham um grau equivalente reconhecido pelo Estado.

Os candidatos deviam ter, no mínimo, 1,65 m; no máximo, 24 anos de idade; boas condições físicas, sobretudo no que se refere à agudeza visual e predisposição para os esportes. As avaliações dos candidatos eram feitas pelas divisões da Reichsjugend ou pela própria Marinha de Guerra.

Depois de aprovar o teste de aptidão e sua inscrição ter sido aceita, o candidato comprometia-se a permanecer em serviço por tempo ilimitado. No início, devia submeter-se a um período de formação de três meses, durante o qual levaria um distintivo dourado – uma estrela de cinco pontas se fosse um oficial da Marinha de Guerra, ou uma roda dentada se fosse um engenheiro – na manga esquerda do uniforme. Terminado o período de formação, permanecia como cadete a bordo do navio-escola mais um semestre.

Concluída a formação e o estágio em um navio, o cadete podia ser promovido a aspirante de segundo grau (Oberfähnrich), um grau que na prática correspondia ao suboficial maior e que podia chegar a guarda-marinha. Passados dois anos, podia chegar a alferes de fragata (Leutnant).

O alferes de navio (Oberleutnant) era um oficial de primeira classe e usava duas divisas na manga e uma platina (ombreira) prateada, com cordões paralelos trançados e uma estrela. O tenente de navio (Kapitänleutnant) pertencia à categoria de oficiais de segunda classe; levavam três divisas na manga e uma platina prateada com duas estrelas e cordões paralelos trançados.

Os oficiais de terceira classe eram os capitães de corveta (Korvettenkapitän); usavam um distintivo com três divisas na manga e platinas prateadas com cordões trançados. Depois, estavam os capitães de fragata (Fregattenkapitän); tinham quatro divisas na manga e platinas prateadas com um cordão trançado e uma estrela.

A patente mais alta era de capitão do navio (Kapitän zur See); utilizava quatro divisas na manga e platinas prateadas com um cordão trançado e duas estrelas.

Em seguida, os oficiais superiores, começando com o contra-almirante, que usava na manga uma divisa larga e outra mais fina, além de platinas com um cordão trançado prateado e um botão dourado. Ao vice-almirante correspondia uma divisa larga e duas estrelas, além de platinas parecidas, adornadas com uma estrela.

O almirante distinguia-se dos demais pelo galão com uma divisa larga e três estreitas na manga; as platinas eram parecidas com as de seus subordinados imediatos, mas com duas estrelas. A patente de almirante geral, criada em 1936, não era identificada pelos galões – idênticos aos do almirante -, mas pelas três estrelas nas platinas.

Por último, o grande almirante, patente criada em 1939, ostentava divisa larga e quatro estreitas; e nas platinas, em lugar das estrelas, dois sabres de prata cruzados.

O termo comodoro, usado nos informes de guerra, não se refere a uma patente especial, mas ao cargo do máximo responsável por uma unidade naval. Sua função era meramente conjuntural e isso se refletia no distintivo que utilizava na manga do uniforme: uma única divisa.
 
 

 
 
 Fontes:

Construa o Bismarck. © 2012. Salvat do Brasil Ltda.
 
A Marinha alemã: a esquadra de alto mar. Richard Humble. Editora Renes, 1974.