Não percebe o
quanto tenho raízes profundas na Alemanha? Minha vida seria muito triste sem
minha pátria, sem a maravilhosa arte alemã, sem a crença no passado poderoso da
Alemanha e do futuro glorioso que a espera? A senhora acha que posso me afastar
tudo isso do meu coração? A senhora acha que não tenho uma obrigação com meus
pais, com meu irmão que mostrou seu amor pela pátria morrendo como herói no
campo de batalha? Algum dia, quero ser um alemão entre alemães e não um cidadão
de segunda classe somente porque minha adorável mãe é judia.
As Leis de Nuremberg, criadas para
definir quem era judeu e quem era ariano continham muitos erros. Elas estavam
erradas não apenas por causa da separação “racial” que elas pretendiam criar
entre judeus e não-judeus, mas porque elas falharam em tornar claro o que fazer
com os Mischlings*.
A palavra Mischling significa “mestiço” ou “híbrido”. O termo foi aplicado
originalmente a pessoas com pai ou mãe branco ou negro nas colônias africanas
da Alemanha. Alguns alemães na época chamavam estas crianças de “bastardos de
Rehoboth”** Nos anos 1920,quando soldados coloniais franceses tiveram relação
com mulheres nos territórios da Alemanha que eles ocuparam, as crianças
resultantes foram chamadas de Mischelings. Hitler acreditava que os judeus
trouxeram esses franceses negros para a Alemanha para infectar a “raça branca”.
Em 1935, as Leis de Nuremberg criaram
duas novas categorias “raciais”: o meio-judeu (Mischeling de primeiro grau) e o
quarto-judeu (Mischeling de segundo grau). Um meio-judeu tinha dois avós
judeus; o quarto-judeu tinha apenas um. Desde que a política racial nazista
declarava qualquer membro da religião judaica um judeu completo,
independentemente da ancestralidade, a maioria era por definição cristãos.
Os nazistas estavam confusos sobre os
Mischlings, desde que eles eram tanto judeus quanto alemães. Adolf Eichmann, o
tenente-coronel da SS e chefe do Departamento de Evacuação Judaica da Gestapo,
ciente da posição racial ambígua do Mischling, temporariamente os protegeu.
Para os nazistas, Mischlings eram também metade ou três quartos alemão e,
assim, 50 ou 75% valiosos.
O status confuso dos Mischlings
resultou em respostas ainda mais confusas. Werner Eisner, um meio-judeu e
severamente ferido veterano da Wehrmacht foi deportado para Auschwitz por ter
mantido relações com uma mulher ariana. O Dr. Hans Serelman, um judeu alemão,
também foi enviado a um campo de concentração. Seu crime foi ter doado sangue
para um paciente não-judeu.
Na prática, a cidadania alemã dos
Mischlings foi retirada. Era-lhes negado acesso a certas universidades para
cursos mais concorridos como Direito e Medicina. Eles também foram recusados em
retiros de férias e empregos públicos, além de posições de chefia sobre
arianos. Eles foram excluídos de algumas igrejas, mesmo quando fossem cristãos
batizados. Eles eram socialmente esquecidos.
Ser 50% judeu, ou semente 25%, não
protegia os Mischlings. Restrições “raciais” crescentes gradativamente criaram
um futuro incerto para eles. O repentino agrupamento dos Mischling com os
judeus logicamente deveria ter criado um laço comum de simpatia e apoio mútuo
entre eles, mas não foi isso o que aconteceu.
A maioria dos Mischlings não se
identificava com a comunidade judaica. Muitos cresceram como cristãos batizados
e mesmo alguns eram eles próprios antissemitas. Eles preferiam pensar em si
próprios como normais, como parte de todo o tecido social alemão, como parte do
povo (Volk). Sua língua, sua cultura,
as relações sociais e vida escolar tinham todas sido alemãs. Mesmo para aqueles
que cresceram sabendo que eles tinham um pai ou mãe judeu, eles preferiam não
ser identificados como judeus. Eles ansiavam, trabalhavam e faziam qualquer
coisa dentro de seus limites para provar que eram membros bons e leais dos
povos germânicos. Eles precisavam mostrar ao mundo alemão que seu sangue alemão
era a força dominante que fluía por suas veias.
Muitos judeus serviram nos exércitos
alemão e austríaco durante a Primeira Guerra Mundial. Dezenas de milhares
morreram no conflito, dando suas vidas ao Kaiser e ao Imperador. Um grande
número de judeus alcançaram postos superiores, especialmente no exército austríaco.
Milhares de judeus, em ambos os exércitos, foram condecorados por bravura com
as mais altas honras. O serviço nas forças armadas, durante a Primeira Guerra
Mundial, tornou-se um meio de ganhar aceitação, oportunidade e uma chance para
provar sua lealdade às coisas germânicas.
À medida que as máquinas de guerra e
de propaganda política nazistas se infiltravam na vida e no rearmamento,
somente 15 anos após o fim da Primeira Guerra Mundial, a existência para os
judeus e para os Mischlings tornou-se mais ameaçadora e tênue. Para o judeu,
pouco se podia fazer em virtude da onda racista. Os Mischlings, contudo,
enfrentavam um paradoxo. Durante a guerra, muitos se sentiram compelidos a
pertencer à comunidade, recuperar o orgulho perdido e protegerem-se a si mesmos
e às suas famílias através do serviço militar e, portanto, servir a Hitler.
O serviço na Wehrmacht, nos anos
iniciais da guerra, protegeu-os da Gestapo. Ilse Korner escreveu de seu
falecido marido, o meio-judeu e tenente Hans Joachim Korner, “Ele queria
distinguir-se por meio da bravura e desejo de lutar como um soldado e, assim,
escapar da perseguição dos nazistas.”
A maioria acreditava que seu serviço
meritório convenceria seus camaradas e a sociedade a aceitá-los como “normais”.
Os Mischlings arriscavam suas vidas no campo de batalha desproporcionalmente e
muitos foram condecorados com as mais altas honras militares da Alemanha
Nazista, incluindo 20 que receberam a Cruz de Ferro de Primeira Classe***.
A mãe do soldado da Wehrmacht Helmut
Kruger era judia. “Ele fez tudo o que podia para provar sua lealdade à Alemanha
ao mostrar sua bravura no campo de batalha. Ele ganhou as Cruzes de Ferro de
Segunda e Primeira Classes e a Medalha de Ouro de Ferido.” Seu irmão,
Reinhardt, afirmava que ele foi um soldado corajoso apenas porque era um
MIschling e tinha medo de ser chamado de “judeu covarde”. O paradoxo irônico;
Kruger afirmou que se não fosse por sua mãe judia, ele teria se filiado ao
Partido Nazista e à SS.
Os Mischlings, com a ajuda de suas famílias,
tentaram mudar a oficial classificação de quem eles eram. Eles queriam ser
reconhecidos como alemães. Um dos métodos era obter isenções legais (Genehmigungs),
garantidas pelo oficialato alemão – uma tolerância de seus status de Mischlings
por causa de seu serviço e benefício ao Reich. A solução legal mais procurada
para desqualificação Mischling era por meio da revisão legal e determinação de
sangue puro, desvinculando-se racialmente do sangue judeu (Deutschblutigkietserkarung).
Herrmann Göring dizia que ele decidia
quem era judeu ou não. A realidade, a decisão final de quem era judeu somente
era decidida por Adolf Hitler. Hitler revisava cada situação pessoalmente. Com
o uso de meios legais, Mischlings classificados previamente eram despojados de
sua contaminação judaica. Assim, eles poderiam galgar altas posições
administrativas e militares.
Em 1933, Frau Clara Milch procurou se
afilhado, Fritz Heinrich Hermann, presidente da polícia de Hagen e depois
general da SS, e lhe deu uma declaração afirmando que seu tio falecido, Carl
Brauer, ao invés de seu marido judeu Anton Milch, era o pai de seus seis
filhos. Após o coronel da SA (Tropa de Choque do Partido Nazista) denunciar
Erhard Milch para Göring, este levou o testemunho da mãe de Milch para Hitler.
Em 1935, Hitler aceitou a declaração de Clara e instruiu Göring a pedir ao Dr.
Kurt Meyer, chefe do Centro de pesquisa Genealógica do Reich, a emitir toda a
documentação. Em 7 de agosto de 1935, Göring escreveu a Meyer para mudar o pai
de Milch em seus documentos e emitir nova documentação certificando sua
ascendência pura ariana. Após a guerra, de acordo com um dos interrogadores de
Göring, John E. Dolibois, Göring estava orgulhoso de sua ação em ajudar o
meio-judeu Milch a permanecer na Luftwaffe. Milch acabou se tornando o Marechal
de Campo que conduziu a Luftwaffe em termos de planejamento, produção e
estratégia. A filha de Milch era casada com um general da SS.
Dos estimados 150.000 Mischlings,
meio-judeus e um quarto judeus, nas forças armadas, a maioria jamais alcançou
os postos de oficiais.
O soldado da Wehrmacht Joachim Lowen
contou sua estória. “Meu próprio irmão (Heinz) foi à Gestapo e afirmou que
minha mãe era uma vagabunda e tinha sido uma prostituta. A Gestapo revisou
nosso caso e nos declarou de sangue alemão (Deutschblutig).”
Mamãe ficou arrasada – Heinz morreu no front russo, ele era primeiro-sargento (oberscharfürher) da Waffen-SS.
Mesmo assim, alguns Mischlings e suas
famílias se recusaram a abandonar suas raízes, porém foram abandonados pelo
mundo judeu. Das muitas ironias da vida na existência de 12 anos da Alemanha Nazista e até no período pré-nazista, as
atitudes dos judeus em relação ao Mischlings foram igualmente confusas. O
historiador Brian Mark Rigg em seu livro As Crianças de Hitler entrevistou
1.671 Mischlings, 60% eram judeus halachá+. Ele comentou sobre eles e quem
tinha identificação com o judaísmo:
Meio-judeus
com pais judeus eram mais propensos a sentir uma conexão com o judaísmo do que
aqueles com mães judias, que pelo Halachá eram judeus. Este fato mostra que o
Halachá estava fora de sincronia em muitos aspectos com a realidade social – ou
seja, que as convicções religiosas do pai influenciavam a educação da criança
mais do que a da mãe. Talvez isto acontecesse por causa da natureza patriarcal
da maioria dos lares alemães. Isto foi corroborado pelo fato de que a maioria
neste estudo que foi circuncidada tinha pais judeus.
O tradicionalismo judaico franzia a
testa em relação ao casamento interracial.
Helmut Kopp lembrou como, em algumas
ocasiões em que viu seu avô nos anos 1920, Louis Kaulbars, bateu nele com um
chicote e o chamou de gói (não-judeu ou gentio). Apesar de ter uma mãe judia,
seu avô não o considerava judeu. Um dia, sua avó reclamou deste tratamento,
dizendo ao seu marido, “Ele é filho de nossa Helena!” O avô replicou, “Não, ele
é filho do gói Wilhelm!” Kopp disse em 1995, “Minha alma estava destruída.” A mãe
morreu em 1925, e ele foi viver com seus tios judeus. Ele foi educado em uma
escola ortodoxa e teve o bris milá++. Ele entrou na Wehrmacht em 1941.
Como os recursos para ajudar os judeus
na Alemanha se tornaram restritos, as respostas judias tornaram-se também
distorcidas.
Quando a jovem Hannah Klewansky procurou
a Gestapo na manhã seguinte à Kristallnacht para saber onde estava seu pai, um
funcionário informou que o Centro da Comunidade Judaica estava processando esses
pedidos. Ela foi lá e enfrentou uma longa fila de pessoas ansiosas procurando
seus familiares e amigos. Quando chegou sua vez, o secretário judeu pegou o
arquivo de sua família. “Seu pai é cristão?,” perguntou o funcionário. Ela
disse que ele era convertido ao judaísmo. Então, o funcionário perguntou se ela
era judia. Ela então respondeu que sua mãe não era judia e ela tinha sido
educada como cristã. O secretário mandou Hannah embora dizendo, “Não fazemos
nada por gente do seu tipo.” Ela voltou à Gestapo, foi conduzida a uma sala e
estuprada por dois membros da polícia política.
Após a guerra, os Mischlings voltaram
para casa. Todos eles, assim como a população em geral da Alemanha e da Europa,
afirmaram não saber nada do Holocausto. Muitos dos Mischlings conheciam boatos
e estórias. Eles deveriam saber alguma coisa, enquanto suas famílias eram
exterminadas. De maneira uniforme, eles escolheram ignorar o fato. Nenhum
admitiu estar envolvido em atrocidades contra os judeus, mas alguns Mischlings
de altas patentes estavam cientes dos crimes e mesmo ajudaram administrativamente
na logística do processo.
Os Mischlings tentaram aprender sobre
sua ancestralidade judaica. Alguns lutaram por Israel na Guerra da
Independência. Alguns converteram-se, muitos visitaram Israel. O filho do
meio-judeu Werner Eisner, Michael, não somente emigrou para Israel como também
serviu no exército israelense. O Mischling Hanns Rehfeld disse a Riggs:
Tenho sido
discriminado em minha vida por três coisas que estavam fora do meu controle.
Primeiro, meus parentes judeus me discriminaram por ter uma mãe cristã.
Segundo, os alemães me discriminaram por ter um pai judeu. E, depois da guerra,
fui discriminado por ser alemão.
O legado e o pensamento nazista ainda continuam
a influenciar a visão de alguns Mischlings sobre os judeus. Walter Schonewald
disse, “o judaísmo é apenas uma religião, o resto é Hitler, todo o resto é
racismo.” Schonewald afirmou que Israel tem suas próprias leis raciais nos
tribunais rabínicos que previnem casamentos de judeus com não-judeus e não
reconhecem os movimentos reformistas ou conservadores.
Riggs nota que alguns judeus ortodoxos
receberam bem as Leis de Nuremberg, já que elas preveniam o casamento
interracial e a assimilação.
Em virtude de suas experiências com
alguns judeus ortodoxos, muitos Mischlings culpam os judeus pelo
antissemitismo. O um quarto judeu Fritz Binder afirmou que os judeus ortodoxos
, ao sustentar que eles são os escolhidos, que seu estilo de vida é o melhor,
tornaram-se parecidos com os nazistas. O meio-judeu Bergmann disse, “O fato de
que os ortodoxos rezam todos os dias agradecendo a Deus por não tê-los tornado
gentios é revoltante.” O um quarto judeu Horst Von Oppenfeld, descendente da
família judia Oppenheim, que foi capitão da Wehrmacht e ajudante do coronel
Stauffenberg disse que os judeus enfrentam muitos problemas por não se
assimilarem. “O problema é que eles querem ser diferentes. Assim, muitos Mischlings
evitam contatos com eles,” disse ele.
Notas:
* Leis de segregação racial não foram
criadas pelos nazistas, como muita gente supõe. Nos EUA, medidas de segregação
racial foram tomadas logo após a Guerra Civil, ainda no século XIX. Em 1913, o
presidente Woodrow Wilson (o mesmo que colocou os EUA na Primeira Guerra
Mundial), decretou a segregação no serviço público federal. Os nazistas
copiaram essas leis e as aplicaram aos judeus, já que estes eram o grupo
minoritário de maior importância. As leis de segregação racial nos EUA só
acabaram em 1964.
** Rehoboth é uma cidade da Namíbia,
fundada por um missionário alemão em 1845 e habitada por mestiços de
colonizadores holandeses e mães africanas a partir de 1870.
*** ver artigo “A Cruz de Ferro”
+ Halachá
é o nome do conjunto de leis da religião judaica,
incluindo os 613 mandamentos que constam na Torá e os posteriores mandamentos
rabínicos e talmúdicos relacionados aos costumes e tradições, servindo como
guia do modo de viver judaico.
++ Bris milá é o
nome dado à cerimônia religiosa dentro do judaísmo na qual o prepúcio
dos recém-nascidos é cortado ao oitavo dia como símbolo da aliança entre
Deus e o povo de Israel.
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