terça-feira, 10 de julho de 2018

Revolução Consitucionalista: A Guerra Civil Brasileira



Depois de um dia de tensas deliberações, Getúlio Vargas pegou seu diário para fazer a entrada do dia. Nele escreveu, datando de 9 de julho de 1932: "Parece que a crise passou".

O presidente provisório - ou dictador, como preferiam chamar em São Paulo, na grafia da época - havia sido informado, através de telegramas dos estados, São Paulo inclusive, que tudo estava em ordem. Ele e o Brasil poderiam dormir em paz. Vargas tomou seu jantar aliviado. E saiu, como costumava fazer, para um passeio na praia.

Só então notou um funcionário do palácio correndo esbaforido em sua direção. E, provavelmente, sentiu o chão se abrir sob seus pés. São Paulo estava em rebelião. O Brasil entrava em guerra civil.

Abaixo a dictadura!

 

A história registrou o conflito entre São Paulo e Brasil pelo desengonçado nome de Revolução Constitucionalista. Esquisito não só pela quilométrica palavra como também porque uma revolução que perde é revolta.

E também injustiçada, vista meio que por cima nas escolas, resumida a uma interpretação maniqueísta e superficial. Algo como: "Velhas elites paulistanas conspiraram contra os avanços sociais de Getúlio Vargas, o povo não aderiu".

Os poderosos paulistas definitivamente patrocinaram e insuflaram o movimento. Mas o povo estava dentro. O estado de São Paulo passou o 9 de julho tomado por manifestações de rua pró-revolução.

Mas o que essas pessoas queriam? E como achavam possível vencer o resto do país inteiro? É um tanto difícil de imaginar a população brasileira clamando nas ruas por cada sílaba de "constitucionalização". O que eles diziam era bem mais simples e direto: "Abaixo a dictadura!".

Ditadura para os paulistas era o governo provisório de Getúlio Vargas - e, a chave para entender a popularidade do movimento, uma ditadura anti-São Paulo. Vargas estava onde estava por um golpe contra um presidente eleito paulista, Júlio Prestes, contra quem havia perdido as eleições de 1º de março de 1930.

Orgulho ferido

 

Tudo começou com o último presidente da República Velha. Findo seu mandato, o paulista Washington Luís deveria apoiar um candidato mineiro como sucessor. Honrando a "política do café com leite", um acordo informal que vinha garantindo o revezamento entre o Partido Republicano Paulista (PRP) e o Partido Republicano Mineiro (PRM). Com exceção do Marechal Hermes da Fonseca (1910-1914), pelo Partido Republicano Conservador, do Rio, todos os presidentes foram eleitos por essas agremiações (ou sua coligação no Partido Republicano Federal, em 1894).

O PRP resolveu romper o acordo nas eleições de 1930. Diferentemente dos mineiros, os paulistas não eram mais influenciados exclusivamente pelo setor agrícola. A rápida industrialização e o consequente poderio econômico alcançado levaram os paulistas a não ver mais razões para entregar o poder aos mineiros sem disputa. Washington Luís escolheu como sucessor o conterrâneo Prestes.

Sentindo-se traído, o PRM rompeu com o PRP e uniu a oposição, inclusive em São Paulo, com o Partido Democrático Paulista (PDP). A união dos partidos contra Prestes foi chamada de Aliança Liberal e lançou o gaúcho Getúlio Vargas como candidato.

Prestes venceu com pouco mais de 57% dos votos. Derrotada, a Aliança Liberal rejeitou o resultado da eleição alegando fraude e, em outubro de 1930, liderou um golpe de Estado que impediu a posse de Prestes e instituiu um governo provisório. Vargas assumiu com plenos poderes executivos e legislativos, extinguindo o Congresso Nacional e revogando a Constituição de 1891.

"Revogar a Constituição" não significa abolir uma lei qualquer: o efeito disso é remover qualquer garantia de cidadania, como a de não ser preso sem acusação formal ou de ter direito a um julgamento imparcial. A promessa de Vargas era uma nova Constituição, que garantiria democracia plena, não a democracia para poucos e com o sistema eleitoral viciado da República Velha.

Democracia foi o grito de guerra dos paulistas, mas havia um fator que não pode ser subestimado: bairrismo. Os interventores nomeados por Vargas - em ordem: João Alberto Lins de Barros, Laudo Ferreira de Camargo e Manuel Rabelo Mendes - não eram paulistas. Só em março de 1932 um paulista ascenderia à cadeira, o septuagenário Pedro Manuel de Toledo. Viessem de onde viessem, nenhum dos interventores podia governar livremente. As interferências eram constantes, incluindo a nomeação dos secretários estaduais.

Havia também a questão econômica. Com a instituição de uma taxa de 2% sobre as exportações, os paulistas deixaram de poder decidir o que fariam com o café, uma humilhação imperdoável. "A grande causa que levou à guerra foi a perda da autonomia imposta pelo governo Vargas logo após a vitória em outubro de 1930", afirma a historiadora Vavy Pacheco Borges, autora do livro Tenentismo e Revolução Brasileira.

Da imprensa às conversas de esquina, o clima em São Paulo era vitriolicamente antivarguista. "Só se falava nisso. A capilaridade da discussão política alcançava todos os setores da sociedade. A discussão não estava restrita a uma pequena elite", afirma o historiador Marco Antônio Vila, professor aposentado pela Universidade Federal de São Carlos e autor dos livros 1932: Imagens de uma Revolução e A Revolução de 1932: Constituição e Cidadania.

Isso significa guerra

 

Getúlio, hábil político que era, estava plenamente informado da panela de pressão com que lidava e tratou de tentar criar válvulas de escape.

Em 24 de fevereiro saiu o Código Eleitoral provisório, marcando as eleições para a Assembleia Nacional Constituinte para 4 de maio de 1933. Em 7 de março, um paulista foi posto no cargo de interventor. E, finalmente, em 23 de maio, seria anunciado um secretariado paulista totalmente livre de intromissões do governo federal.

Em tese. A notícia da chegada do ministro da Fazenda, Oswaldo Aranha, no dia 22, deixou os paulistas em polvorosa. A imprensa e os políticos afirmavam que ele estava lá para intervir no secretariado, acabando com o breve respiro de autonomia de São Paulo, e tentar separar os paulistas. O ministro é cercado e hostilizado em seu caminho pela cidade. Protestos são reprimidos pela cavalaria. Ele acaba decidindo por voltar para o Rio.

"A cidade vivia anteriormente em clima de protesto. Qualquer motivo dava margem para uma manifestação popular", explica a doutora em história social pela Universidade de São Paulo Ilka Stern Cohen.

No dia seguinte, os protestos são para comemorar a derrota do "emissário do dictador". A Associação Comercial pede a todos os estabelecimentos que fechem por 24 horas. Os manifestantes se concentram na Praça da República, onde ficava o quartel-general da Legião Revolucionária, força paramilitar que apoiava o governo federal. Nas imediações, na Rua Barão de Itapetininga, ficava a sede das tropas leais a Vargas.

No início da noite, a multidão cercou a rua em duas esquinas, a da rua Dom José de Barros e a da Praça da República. A reação foi forte. Qualquer um que entrasse pela rua era recebido a tiros. E ambos os lados atiraram, já em clima de guerra. "Na época, era comum no Brasil achar que divergências políticas se resolveriam no campo militar", afirma Marco Antonio Villa.


O violento conflito terminou com 13 mortos e mais de 60 feridos, mas quatro deles se tornaram emblemáticos: Mário Martins de Andrade, Euclydes Bueno Miragaia, Dráuzio Marcondes de Souza e Antônio Américo de Camargo. "Esses quatro foram pinçados como mártires da revolução", diz Ilka Stern Cohen.

As iniciais dos nomes pelos quais eles eram conhecidos foram adotadas pelo movimento que encabeçou a revolução iniciada 50 dias depois, o MMDC, uma sociedade secreta cujas atividades incluíam treinamento militar para uma guerrilha paulista que começou a se formar a partir do incidente na Praça da República.

São Paulo era um tigre ferido. Só seria apaziguado pelo sangue. "Os líderes focaram no orgulho paulista ferido pelas decisões de Getúlio Vargas", afirma Ilka Stern Cohen. Deu certo. Nos dias seguintes, não apenas a guerrilha viu um grande número de voluntários se alistar nos postos distribuídos por todo o Estado como também viu o sucesso da campanha "Doe ouro para o bem de São Paulo", que arrecadou mais de 400 quilos do metal preciso, que serviu de lastro para a moeda própria cunhada pelo Estado.

Às armas, bandeirantes

 

Rudemente interrompido em seu passeio na praça ao anoitecer, Getúlio não estava recebendo informações atrasadas. Já era noite do dia 9 de julho de 1932 quando integrantes do MMDC tomaram, à força, postos do correio e estações telegráficas da cidade de São Paulo. O objetivo, óbvio, era cortar a comunicação do inimigo e garantir a própria.

O presidente provisório levou a ameaça extremamente a sério. Segundo Lira Neto, autor da série de livros Getúlio, ele chegou a pensar em suicídio. "Sobre a mesa, havia um envelope fechado, onde se podiam ler as seguintes palavras: "À Nação Brasileira". E, enquanto Getúlio continuava a caminhar de um lado para outro, o general Góes Monteiro pôde perceber, saindo de um dos bolsos externos do paletó escuro que o chefe de governo vestia, o inconfundível cabo branco de madrepérola de um revólver."

Enquanto isso, em ação coordenada, a Força Pública e tropas da 2ª Região Militar assumiram o controle de outros pontos estratégicos do estado, de onde poderiam seguir rumo ao front.

O estado começou semidesarmado. Ao perceber indícios de oposição em São Paulo, Getúlio Vargas havia ordenado a retirada gradual de armamentos pesados dos quartéis paulistas. "São Paulo, além de não contar com aliados (apenas o Mato Grosso aderiu à causa), foi privada de sua artilharia, aviação e outros aparatos bélicos, confiscados pelo governo provisório após a Revolução de 1930", afirma o pesquisador Expedito Carlos Stephani Bastos, autor do livro Blindados no Brasil. Além disso, faltava treinamento: dos 30 mil combatentes das forças revolucionárias, estima-se que 70% eram voluntários, sem nenhum treinamento de guerra.

Mas havia um trunfo para os paulistas: seu moderno parque industrial. Em pouco tempo, conseguiram produzir uniformes, capacetes, munições, armamentos leves e pesados, granadas, morteiros, veículos blindados, máscaras de gases, instrumentos ópticos e suprimentos de primeiros socorros.

Como voluntárias, mulheres costuraram uniformes. Quatro fábricas forneceram os capacetes de aço que se tornaram características marcantes do uniforme revolucionário, junto com o lenço vermelho de pescoço. A Escola Politécnica contribuiu com a produção de bombas de até 60 quilos, a serem lançadas de aviões.

O plano era simples: ir até o Rio para derrubar Vargas. Tomar o poder do Brasil. Com uma revolução armada às pressas, os paulistas traçaram como objetivo prioritário a conquista da cidade de Resende, no Rio de Janeiro. Seria a porta de entrada para a capital, onde destronariam o "dictador". As tropas se moveram para a fronteira e começaram a atacá-la com artilharia.

Outra das ações iniciais foi a tomada do Túnel da Mantiqueira. Com cerca de 1 quilômetro de extensão, fazia a ligação ferroviária entre as cidades de Cruzeiro, São Paulo e Passa Quatro, Minas Gerais. A posição era considerada estratégica para a movimentação de tropas, porque viabilizava a travessia por sob o terreno acidentado da Serra da Mantiqueira, que impossibilitava o trânsito de veículos e o transporte de carga. As tropas paulistas ocuparam o local já no segundo dia da guerra e defenderam a posição contra o ataque de duas unidades do Exército e 1.500 policiais mineiros.

A primeira contraofensiva veio pelo ar. Em 13 de julho, aviões do Exército realizaram o primeiro bombardeio a uma cidade brasileira. O município de Cachoeira Paulista, no Vale do Paraíba, era o alvo. Na sequência, Campinas, Cubatão e Itapira, entre outras, sofreram bombardeios. A capital não estava livre de ataques. Em 29 de julho, aviões Waco, apelidados de "vermelhinhos", bombardearam o Campo de Marte, na zona norte da cidade, base da força aérea dos revoltosos paulistas.

Em meio a isso, o país tinha uma grande baixa: Santos Dumont. Em 23 de julho, ele se suicidou no Grand Hôtel La Plage, no Guarujá. Ficou chocado com o poder destrutivo do que considerava a contribuição máxima de sua vida. "A visão de duas aeronaves do Exército em voo rasante atacando um navio, segundo consta, teria sido chocante demais para o sensível coração do aviador. Angustiado, tomado por uma depressão profunda, o criador do 14 Bis tiraria a própria vida, enforcando-se com a gravata no banheiro do hotel", relata Lira Neto.

Corações e mentes

 

Ambos os lados se valeram dos jornais, das rádios e de fotografias para manipular informações, demonstrar superioridade e colocar em descrédito as intenções inimigas. Os jornais paulistas não apenas omitiam a inferioridade da força militar do movimento revolucionário como o noticiário da guerra era totalmente ideológico. "O rádio, desde o início um poderoso instrumento de mobilização popular nas mãos dos insurgentes, passara a ser a derradeira trincheira dos paulistas", afirma Lira Neto. "Só mesmo as ondas eletromagnéticas se mostravam capazes de furar a solidez do bloqueio militar imposto pelo Governo Provisório aos rebeldes."

Do outro lado, a propaganda do Governo Provisório espalhou a ideia de que o levante paulista era, essencialmente, separatista. Segundo o historiador Jeziel de Paula, autor do livro 1932: Imagens Construindo a História, muitos voluntários nordestinos lutaram com as tropas federalistas porque acreditavam estar lutando pela liberdade do estado de São Paulo, que estaria sob o "governo paralelo de italianos comunistas e separatistas".

"Os discursos varguistas propagavam um regionalismo excessivo de São Paulo, identificando como "paulistas" todos os inimigos do governo, contribuindo para a criação de mito separatista", afirma Jeziel.

Sim, alguns grupos se aproveitaram da guerra civil para lutar pela independência de São Paulo. "Houve em São Paulo grupos regionalistas, bairristas e separatistas, mas não se pode exagerar a força dessa corrente nem menosprezar os seus ideais nacionalistas", diz Jeziel. Afinal, a revolta queria ir ao Rio derrubar o presidente. Conquistar o Brasil.

Derrota anunciada

 

Em que se pese a riqueza relativa de São Paulo, era uma ofensiva quixotesca e não planejada. O estado esperava que outros aderissem à sua causa, não que tivesse que lutar em três fronts.

Ao final, nem o ouro arrecadado, reforçado com 10 milhões de réis doados, foi suficiente para armar São Paulo para uma guerra com o Brasil inteiro. Nesses quase três meses, ficaria evidente a inferioridade das forças armadas paulistas, que ainda resistiram graças à estratégia defensiva, a uma boa dose de criatividade e ao moderno parque industrial, que foi capaz de fornecer com rapidez certa quantidade de suprimentos bélicos.

O avanço em Resende não daria em nada. Com a escassez de armas, ficaria na artilharia. A infantaria paulista nunca cruzaria a fronteira. E, em pouco tempo, restava apenas uma estratégia: a defesa do território contra as tropas federais.

No final de agosto, o avanço das tropas federais chegava ao Morro do Gravi, em Eleutério, fronteira com Minas. Armadas com cerca de 80 fuzis, as forças revolucionárias defenderam a cidade por aproximadamente duas semanas. Em 30 de agosto, a cidade foi evacuada. Por volta de 800 voluntários foram levados para Campinas, restando apenas 300, que montaram a última linha de defesa em trincheiras cavadas às pressas, em três dias. "Nossa tropa extenuada está impossibilitada de continuar a luta. Chove torrencialmente e falta munição, e mesmo com esta e sem tropa fresca não poderemos resistir e seremos vencidos", dizia um telegrama enviado pelo comandante João Dias, de Mogi Mirim, ao comandante Herculano Silva, em São Paulo. O pedido por resgate não pôde ser atendido: em 4 de setembro, com suporte aéreo, tropas federais tomaram o morro.

Em setembro, ao sul, a batalha era em Chavantes, cidade localizada na divisa entre São Paulo e Paraná. Os paulistas haviam bloqueado a ponte pênsil Alves Lima, que cruza o Rio Paranapanema em uma travessia de 164 metros até a cidade paranaense de Ribeirão Claro, onde a coluna legalista que vinha do Rio Grande do Sul montou seu quartel-general.


A princípio, os paulistas tentaram invadir o território inimigo, mas foram reprimidos e recuaram. Diante do avanço sulista, se viram obrigados a dinamitar a ponte e impedir a passagem dos inimigos. O sucesso na defesa da posição, contudo, não impediu os federalistas de encontrar outra passagem, no município de Itararé, a 160 quilômetros de distância, e invadir o estado. Uma sentença de morte para o movimento que queria derrubar o presidente. Em 1º de outubro de 1932, a cidade de São Paulo foi ocupada por tropas leais a Getúlio Vargas.

Ao custo de mais de 3 mil vidas de combatentes em ambos os lados - mais de seis vezes os 471 militares brasileiros mortos na Segunda Guerra - e um número desconhecido de civis, não caiu o governo nem a democracia veio imediatamente. Getúlio apenas cumpriria uma promessa já feita. A eleição para a Assembleia Nacional Constituinte aconteceu na data marcada e a carta magna foi promulgada em 1934.

A democracia duraria meros três anos, até o autogolpe do Estado Novo, com Getúlio criando um regime de inspiração fascista. Que, para deixar bem claro a que vinha, ordenou cerimônias em que as bandeiras dos estados - São Paulo inclusive - foram queimadas.

Os temores dos revolucionários de 1932 haviam se concretizado. No Estado Novo, Vargas se tornava, sem sombra de dúvida, um ditador. Mas, desta vez, não haveria resistência. A breve democracia havia dividido os partidos paulistas novamente. O precedente da derrota não incentivava ninguém a propor uma nova aventura.

Oitenta e seis anos depois, os fantasmas de 1932 ainda rondam as ruas da capital paulista. Ninguém mais fala em bandeirantes, mas ela segue sendo o centro do poder econômico. O obelisco do Ibirapuera celebra os mortos de 1932. Os quatro mártires do MMDC ainda são chamados de "heróis" em publicações oficiais.

Duas das avenidas principais são a 23 de maio e a 9 de julho. Não existe Avenida Getúlio Vargas em São Paulo.


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A estranha morte da Europa

Bruno Garschagen


A Europa, tal como a conhecemos, está condenada a desaparecer? Pelo que apresenta em seu conjunto, o novo livro do jornalista Douglas Murray mostra que, do ponto de vista cultural, o continente é um suicida que não pretende interromper o seu intento de tirar a própria vida.

São as elites políticas e intelectuais as responsáveis pela Estranha Morte da Europa que dá título ao livro, análise que se concentra nos problemas da imigração, identidade e Islã. Que a edição portuguesa publicada pela editora Saídas de Emergência tenha substituído “Islã” por “religião” no subtítulo só atesta a tese do autor.

Decretos de morte de uma cultura, de uma nação, de uma ideologia, não são novidades na história intelectual. O que Murray faz no livro é mostrar as tentativas recorrentes de suicídio da cultura europeia perpetradas por pessoas que odeiam o capital cultural dos seus próprios países e que, quando ascendem ao poder ou conquistam alguma influência, são implacáveis no seu intento.

Talvez a forma mais rápida e eficaz de fazê-lo seja por meio de políticas públicas e pela legitimação intelectual destinadas a promover imigração descontrolada de muçulmanos que odeiam a Europa tanto quanto aquelas elites políticas e intelectuais, que na Inglaterra, país de Murray, são representadas pelos trabalhistas (com destaque para o governo de Tony Blair) e seus apoiadores e, na Alemanha, por Angela Merkel, a líder do governo que tem sido protagonista na aceitação irresponsável da imigração em massa para a Europa.

Num artigo que escrevi para a Gazeta do Povo em março de 2017, citei a confissão do jornalista conservador Peter Hitchens, um ex-marxista que colaborou na criação do problema, segundo a qual a esquerda britânica incentivou o multiculturalismo e apoiou a imigração em massa de pessoas oriundas de países muçulmanos não porque gostasse dos imigrantes, mas porque não gostava da Grã-Bretanha.

Sem atacar a imigração per se, mas um tipo específico de política imigratória, Murray, mostra, no entanto, que se é verdade que governos trabalhistas foram decisivos, governos conservadores foram omissos e pagaram para ver. Como escrevi àquela altura, sucessivos governos Tory Labour ignoraram a profundidade e os perigos da questão – ou não quiseram assumir os riscos políticos de propor uma solução enérgica. O resultado foi catastrófico: diversos atentados terroristas, 3 mil muçulmanos suspeitos eram monitorados 24 horas por dia e, desde 2016, é alta a probabilidade de ocorrer ataques no Reino Unido.

A morte cultural da Europa tal como a conhecemos tem sido justificada com base na tirania da culpa. Segundo Murray, “os europeus de hoje esperam, muito antes de alguém levantar a questão, suportar uma culpa histórica específica que compreende não só a culpa da guerra, e especificamente a culpa do Holocausto, mas todo um leque de culpas anteriores”, que incluem “a culpa permanente do colonialismo e do racismo” (p. 161 da edição portuguesa).

Em Portugal, onde estou há 20 dias, os preparativos para o suicídio vêm sendo organizados gradualmente. A grande questão não é (ainda) a imigração islâmica, mas os inimigos internos (e externos) da tradição e cultura portuguesas.

Um debate motivado pela tirania da culpa foi sobre o espaço em Lisboa que se chamaria Museu das Descobertas. A rejeição barulhenta de uma minoria estridente com força política e acadêmica levou à mudança do nome. O museu deverá se chamar “A viagem”, nome que certamente atrairá aqueles que só tinham como destino final a cidade de Amsterdã.

Os mais de cem acadêmicos de Portugal e de outras partes do mundo (incluindo professores brasileiros da USP, Unicamp, UFBA e UFF), que usaram o prestígio de suas credenciais para legitimar o objetivo comum, rejeitaram o nome porque este designaria uma “incorrecção histórica”. Num abaixo-assinado sobretudo ideológico, representação inequívoca da “culpa permanente do colonialismo” citado por Murray, os acadêmicos não escondem a que vieram:

Apesar do vocábulo ‘descobrimento’, no singular e no plural, ter sido utilizado nos séculos XV e XVI para descrever o facto de se terem encontrado terras e mares desconhecidos na Europa, a verdade é que, na quase totalidade dos casos, ele apenas se refere à percepção da realidade do ponto de vista dos povos europeus. É inquestionável que Vasco da Gama descobriu o caminho marítimo para a Índia, para quem, naquela altura, vivia na Europa Ocidental. Precisamente porque um dos aspectos que resultou deste e de outros episódios de ‘expansão’ foi o contacto entre povos de culturas muito diversas, é que é tão importante considerar o ponto de vista e a percepção de todos os envolvidos. Para os não europeus, a ideia de que foram ‘descobertos’ é problemática.

No fundo, eles querem que Portugal deixe de ser o que é ao renegar a sua história, que, como toda história, é constituída por elementos positivos e negativos. Rejeitar um termo historicamente consolidado que descreve o passado é promover uma higienização histórica, intelectual e linguística que passa por uma autoimolação destinada a prestar contas da parte menos nobre do que aconteceu.

O que essas pessoas sabem e rejeitam é que Portugal é o que é – e a Europa é o que é – também pelos erros que foram cometidos e cujas responsabilidades não podem ser atribuídas à sociedade do presente. Os equívocos devem servir de aprendizado, não como justificativa idiota para posições estúpidas.

Os abortistas também fazem parte do grupo dos inimigos internos de Portugal. Mesmo num país católico, conseguiram em 2007 o apoio político e a anuência de parte da sociedade para aprovar em plebiscito, e depois no Parlamento, a legalização do aborto. Desde então, além das hipóteses já previstas em lei (má formação do feto, estupro e risco de morte para a mãe), o abortou passou a ser permitido até as dez primeiras semanas de gravidez por decisão única da mulher sem que seja necessário apresentar qualquer justificativa que não a vontade individual de se livrar do filho.

Outro exemplo de ataque à cultura católica portuguesa foi a proposta para descriminalização da eutanásia. Em maio de 2018, por pouco, o Partido Socialista (PS) e o Bloco de Esquerda (BE) falharam em aprovar a mudança na lei. Não conseguiram os votos nem do Partido Comunista Português, que ainda segue a antiga cartilha segundo a qual só um Estado comunista deve ter o privilégio de matar. Para PS e BE, a perda da batalha não significou, entretanto, a derrota na guerra. Os partidos já afirmaram a disposição para recolocar o projeto em votação após as eleições de 2019. Considerando a vitória no aborto, a aprovação da eutanásia não parece ser uma luta tão difícil.

Os projetos sobre aborto e eutanásia são importantes temas de políticas públicas dos partidos de esquerda porque se tem uma coisa que socialistas e comunistas entendem é morte em grande escala. Se conseguirem alterar por lei uma agenda contrária à Igreja Católica, conseguirão mudar o comportamento e a mentalidade dos católicos portugueses sem que eles sequer percebam.

A destruição da religiosidade, dos valores, das tradições, da história, dos hábitos por meio de mudanças na lei do país atende ao propósito de retirar quaisquer obstáculos à engenharia social que fundamenta o projeto revolucionário. É fato: o assassinato da cultura católica num país católico significará a morte de Portugal tal qual o conhecemos.

Se os portugueses quiserem saber antecipadamente quais são as implicações culturais dessa revolução em curso basta olhar para o Brasil de hoje, país cujo estranho suicídio cultural vem sendo tentado desde o dia 15 de novembro de 1889. Felizmente, estamos a experimentar aqui e agora uma reação cultural, ainda incipiente, mas que já tem dado frutos. Enquanto ainda há tempo, que os portugueses aprendam conosco, precisamente, o que fazer e o que não fazer.


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