terça-feira, 22 de setembro de 2015

[POL] A Aposta de Hitler

Adam Tooze

History Today, Vol. 56, Nº 11, Novembro 2006



Às 6 horas de uma manhã fria de março em 1939, Adolf Hitler destruiu a frágil paz europeia quebrada seis meses antes na Conferência de Munique ao enviar a Wehrmacht através da fronteira do que restou da Tchecoslováquia. Este ato de agressão iniciou uma escalada internacional dramática, que levou diretamente ao início da guerra em setembro de 1939. Após semanas de ocupação de Praga, Grã-Bretanha e França lançaram garantias formais de segurança da Polônia, Romênia e Grécia. Ao mesmo tempo, Londres entrou em conversas sem precedentes com Moscou em busca de uma aliança militar. A Alemanha foi confrontada com uma possível ressurreição da aliança Entente da Primeira Guerra Mundial e Hitler e Goebbels responderam elevando a propaganda de guerra a novo nível. Em 1º. de abril de 1939, durante o lançamento do encouraçado Tirpitz em Wilhelmshaven, Hitler discursou para uma enorme plateia sobre os horrores do bloqueio e da perfídia de Albion[1]. Enquanto isso, diplomatas alemães trabalharam duro para persuadir a Itália e o Japão para forjar uma ameaça tripla real ao Império Britânico. No final, nenhum lado estava capaz d alcançar sua desejada coalizão. O Japão se recusou a ser arrastado a uma aliança ofensiva contra a Grã-Bretanha. Stalin desconfiava de Chamberlain. Assim, em agosto, em uma extraordinária reviravolta, Molotov e Ribbentrop concluíram o Pacto Nazi-Soviético. Hitler lançou suas tropas contra a Polônia em 1º. de setembro, tranquilo em saber que a União Soviética receberia seu quinhão da conquista. Dois dias depois, obedecendo suas declarações de seis meses antes, França e Grã-Bretanha declararam guerra à Alemanha.

Com relação a essa descrição básica não há desacordo entre os historiadores. Mas por que Hitler escalou a tensão internacional até este ponto permanece uma questão controversa. Há aqueles historiadores – notavelmente Richard Overy e Ian Kershaw – que continuam a manter que Hitler não pretendia de fato provocar uma guerra geral com a Polônia no outono de 1939. Eles citam o discurso fanfarrão de Hitler de 22 de agosto de 1939 para os militares alemães, no qual ele afirmava que “os homens de Munique” encolheriam diante de uma guerra contra a Polônia. Ian Kershaw fala de um “erro de cálculo”. Mas isto não é universalmente aceito. Entre os historiadores britânicos era uma visão mais oposta de forma amarga pelo falecido Tim Mason, que nas páginas de Passado e Presente em 1989 se envolveu em uma disputa furiosa com Overy na questão de se Hitler havia sido ou não direcionado a uma guerra devido a uma crise econômica inevitável. Em um tom mais comedido mas não menos determinado, a tese de uma “guerra não pretendida” foi consistentemente rejeitada por Gerhard Weinberg, a maior autoridade americana na política externa de Hitler. É claro que ninguém questiona que Hitler teria preferido ocupar a Polônia sem se envolver com as potências ocidentais. E isto era claramente um desejo fervorosamente compartilhado pela maioria dos líderes militares alemães. Entretanto, como Weinberg e outros argumentam, desde o início da crise dos Sudetos em maio de 1938 em diante, Hitler sabia que ele eventualmente confrontaria as potências ocidentais. E em outono de 1939 ele atacou a Polônia porque ele decidiu que estava disposto a arriscar uma guerra maior mais cedo do que tarde.

Mas o que empurrou Hitler nesta agressão implacável e, no final, autodestrutiva? O principal biógrafo alemão de Hitler, Joachim Fest, argumenta que foi o crescente senso de mortalidade do Führer que o convenceu que ele não tinha tempo a perder. O caso Weinberg-Mason, pelo contrário, está fundamentado em considerações de balanço de poder num sentido mais amplo. Albert Speer mais tarde lembrou que no outono de 1939 Hitler estava assombrado pela ideia de que ele poderia perder uma oportunidade estratégica crucial. Ele tinha que atacar mais cedo ao invés de depois porque ele sabia que a vantagem militar que a Alemanha na época desfrutava sobre seus inimigos estava desvanecendo. E ele deixou claro isto explicitamente na correspondência com Mussolini na primavera de 1940. Da primavera de 1939 em diante, os “círculos decisivos no governo britânico” haviam se posicionado para a “eliminação” dos “estados totalitários”. A introdução sem precedentes do alistamento obrigatório por Chamberlain e a aceleração de gastos com a RAF (Força Aérea Real) tinham implicações diretas para os planos estratégicos de Hitler. “Tão longe quanto a Wehrmacht estava preocupada,” escreveu Hitler, “em virtude do rearmamento forçado da Inglaterra, um desvio significativo no balanço de forças a nosso favor era mal concebível. E em direção do leste a situação poderia somente se deteriorar.” É claro, para Overy isto cheira a racionalização ex post. Nesta visão, Hitler estava certamente preparando a Alemanha para guerra contra Grã-Bretanha e França, mas em uma época tão longe quanto 1942. A Polônia não seria uma confrontação, mas uma “ação política”.

Desde a troca de farpas entre Overy e Mason no final dos anos 1980, as posições permaneceram quase as mesmas. Enquanto outras áreas da historiografia do Terceiro Reich moveram-se adiante nas últimas duas décadas, um clima de tédio estabeleceu-se em torno da questão da guerra e do estado da economia de armamentos no final dos anos 1930. Como romper esse atoleiro intelectual? À luz da natureza contraditória das elocuções de Hitler ao longo de 1938 e 1939, o dogmatismo claramente não é convocado. Contudo, referência a nova evidência documental pode ser capaz de romper o equilíbrio das probabilidades, permitindo um esforço novo para relacionar hipóteses sobre a política externa de Hitler para nossa compreensão da história mais ampla de seu regime. Em particular, precisamos explorar as conexões entre a outra principal obsessão de Hitler – a “guerra racial” – e sua avaliação da situação estratégica da Alemanha em 1939.

O arquivo diplomático do Terceiro Reich foi extensamente estudado. Mas o mesmo não se pode dizer do material pertencente aos aspectos econômicos e industriais do rearmamento. Se seguirmos o curso do rearmamento alemão no final dos anos 1930 através dos olhos de seus administradores militares, torna-se claro que Hitler não estava com conversa fiada quando ele se referiu a 1939 como uma janela de oportunidade estratégica. Documentos previamente negligenciados sobre o esforço do gerenciamento dos armamentos alemães mostram precisamente isso. Na primeira metade de 1939, no momento que Grã-Bretanha e França estavam acelerando seus esforços de rearmamento, o muito alardeado rearmamento do Terceiro Reich estava em problemas sérios.

Em 19 de junho de 1939, o general Walther Von Brauchitsch, comandante-em-chefe do Exército alemão, enviou cartas desesperadas a Hitler e seu colega Wilhelm Keitel, chefe do Alto Comando da Wehrmacht. A carta a Keitel começava:

Caro Keitel

A provisão atual de matéria-prima para o Exército... está insuportável... O chefe do Departamento de Armas do Exército reportou-me a perspectiva do impacto em matéria de contratos. Olhando como um todo, significa uma total liquidação do esforço de armamento do Exército... se as reduções em rações anunciadas pelo estafe econômico militar da Wehrmacht fossem implantados, uma grande parte da indústria de armamentos do Exército entraria, num período curto de tempo, em total colapso... Estas preocupações sérias levaram-me a direcionar minha carta pessoal ao Führer em 19 de junho de 1939, uma cópia da qual foi enviada a você.

Brauchitsch não estava simplesmente tentando obter concessões para o Exército exagerando o drama da situação. Teria sido extremamente perigoso fazer isso. Após seus confrontos com a liderança do exército em relação à crise dos Sudetos em 1938, Hitler proibiu os oficiais de estafe de bombardeá-lo com previsões pessimistas da situação do armamento. Quando, umas poucas semanas após a carta de Brauchitsch, Hitler solicitou uma avaliação atualizada da produção de munição e seu desenvolvimento possível nos próximos dezoito meses, o oficial responsável pessoalmente checou duas vezes os cálculos para garantir que eles não haviam sido embelezados pelo pessimismo de conveniência. O número apresentado a Hitler mostrou uma linha reta, que pelo verão de 1940 era 70% abaixo da capacidade ótima considerando um complemento real de cobre e aço.

Nem os problemas estavam confinados ao Exército. A indústria aeronáutica estava sofrendo dos mesmos cortes severos nas alocações de matérias-primas. O rápido aumento na produção do novo bombardeiro de médio alcance Junkers 88, a peça central do planejamento da Luftwaffe no final dos anos 1930, foi somente preservado cortando a produção planejada de todas as outras aeronaves, incluindo o famoso bombardeiro de mergulho Stuka – Ju 87. Em virtude dos cortes severos na alocação de cobre e alumínio, a Luftwaffe foi obrigada a adotar um programa de aquisição ainda mais arriscado, trocando modelos de combate testados por aviões que apenas tinham passado no teste de qualificação de voo.

A causa deste revés perigoso na produção de armamentos na primeira metade de 1939 foi o problema que ele assombrava os gestores da economia alemã desde o início dos anos 1930 – o equilíbrio entre a necessidade por alimentos e matérias-primas importadas do país e sua habilidade em vender bens manufaturados como exportação.

As exportações alemãs no período entre-guerras não foram da mesma magnitude que tinham sido antes de 1914, ou que se tornariam após 1945. Ao longo do período entre-guerras, o Reichsmark estava cronicamente sobrevalorizado, tornando as exportações não competitivas e os produtos importados desproporcionalmente baratos. O problema foi agravado após a ascensão de Hitler ao poder pela reação internacional ao tratamento dispensado à população judaica[2] e a moratória forçada da Alemanha do pagamento das dívidas internacionais. Para ficar ainda pior, a partir de 1934, o Reichsbank praticamente estava sem reservas com as quais poderia fornecer cobertura temporária para qualquer escassez nas exportações. Em 1939, mesmo permitindo que grandes quantidades de ouro e moedas estrangeiras tomadas na Áustria e Tchecoslováquia, o Terceiro Reich conseguiu com moeda estrangeira reservas de menos de um sétimo daquelas disponíveis no Banco da Inglaterra. Não é coincidência que o conhecido Reinhardt Heyndrich tenha provado ele mesmo a Göring – o homem que mais tarde deu-lhe a ordem para a execução da Solução Final – como chefe de uma unidade policial especial encarregada de rastrear as últimas reservas pessoais de ouro e moeda estrangeira na Alemanha, tanto de proprietários arianos quanto de judeus.

Três vezes entre 1933 e 1939, o regime de Hitler acelerou dramaticamente o passo da recuperação econômica e rearmamento somente para descobrir que poderia enfrentar uma potencialmente perigosa escassez de moeda estrangeira. Em 1934, 1936-37 e 1939, ele flertou com a crise. Toda vez a crise era resolvida, mas às custas de corte de um ou outro aspecto da expansão econômica. A famosa citação de Göring entre “canhões ou manteiga” não foi feita em 1936, na época do anúncio do Plano Quadrienal, mas dois anos antes durante a crise de moeda estrangeira de 1934, que forneceu o pano de fundo para os eventos conhecidos como “A Noite das Longas Facas”. Assim que a liderança da SA foi eliminada para garantir o controle do Exército sobre o programa de rearmamento, as prioridades dos militares também foram brutalmente asseguradas na esfera econômica. A escolha posterior não era entre canhões e manteiga. No início de 1937 e novamente no início de 1939 era o programa de armamentos que suportou o peso dos esforços do regime nazista para conviver com a restrição do balanço de pagamentos. A produção de armamentos foi cortada, primeiramente para reduzir as demandas por matérias-primas importadas, mais notavelmente cobre e aço, e ao mesmo tempo liberar capacidade industrial, trabalho e matérias-primas para a produção de bens exportáveis. Na sua forma mais crua, o trade-off envolveu exportar armas planejadas para a Wehrmacht ou máquinas-ferramentas necessárias para produzi-las, para pagar a importação de alimentos e matérias-primas.

Ninguém deve pensar que o Führer estava desligado desses assuntos supostamente “técnicos”. Hitler era o produto de seu tempo. Sua consciência política foi formada na economia oprimida pelo bloqueio da Primeira Guerra Mundial, quando os problemas de moeda estrangeira e importação de matérias-primas eram a bola da vez nas discussões políticas. Após ele tomar o poder em 1933, ele foi diretamente envolvido na decisão da moratória da dívida externa alemã. Durante o auge da crise financeira de 1934, ele pessoalmente autorizou a decisão do Ministro da Economia Hjalmar Schacht de cortar gastos na importação de bens através do chamado “Novo Plano”. Dois anos depois, foi Hitler que tomou a decisão final sobre a resolução dos problemas cambiais renovados e lançar o Plano Quadrienal de Göring. Mais importante, do outono de 1937 e possivelmente antes, nenhuma realocação de aço e racionamento de matérias-primas seria executada sem a aprovação do Führer. Em 1939, como vimos, ele estava bem informado das dificuldades experimentadas pelo Exército e Força Aérea como resultado do racionamento de matérias-primas. De fato, Hitler escolheu um de seus discursos mais significativos de toda sua carreira, o discurso celebrando o sexto ano da tomada de poder pelos nazistas em 30 de janeiro de 1939 para alertar os problemas financeiros do país.

O discurso de 30 de janeiro de Hitler é hoje extensamente conhecido como o momento decisivo na história do seu regime, pois ao longo de duas horas e meia ele fez um dos pronunciamentos públicos mais enfáticos sobre a “Questão Judaica”. “Se,” ele declarou, “a judiaria financeira internacional dentro e fora da Europa estiver mais uma vez decidida a instigar uma guerra mundial, então o resultado será não a vitória dos judeus, mas a destruição da raça judaica na Europa.” O termo-chave aqui é “guerra mundial”, que fornece uma pista para quem o discurso foi direcionado. Poucas semanas antes, em 4 de janeiro, em seu Discurso sobre o Estado da União, o presidente Roosevelt desafiou Hitler diretamente. Após o Anschluss, a crise dos Sudetos e a Noite dos Cristais, Roosevelt declarou que qualquer nação que não respeitasse a religião, democracia ou a “boa-fé internacional” apresentar-se-ia como uma ameaça à segurança dos Estados Unidos. Era a Roosevelt que Hitler estava respondendo em 30 de janeiro. A estrutura principal do discurso de Hitler deixa isso claro, com longas e inexplicáveis passagens sobre o financiamento das igrejas na Alemanha, projetadas para desarmar o ataque de Roosevelt contra a irreligiosidade nazista. E isto é crucial porque aponta para um desvio altamente significativo na visão de mundo de Hitler ao longo de 1938. Como resultado da resposta americana à perseguição antissemita que se seguiram ao Anschluss (que culminou no esforço falho de Roosevelt na Conferência Evian para buscar uma solução internacional para o problema dos refugiados judeus), seguido de outro ultraje público em consequência da Noite dos Cristais, Hitler e a liderança da SS convenceram-se que o centro da conspiração judaica mundial deslocou-se pelo Atlântico em direção de Washington e Wall Street. Isto, por sua vez, refletia na situação da Europa, pois da América, os tentáculos da “conspiração” se estendiam para a política externa da Grã-Bretanha e França. Para Berlim, era Roosevelt que estava por trás da crescente hostilidade de Londres e Paris em relação à Alemanha. De fato, dada a insistência de Hitler desde os tempos do Mein Kampf de que a Grã-Bretanha era o parceiro natural do expansionismo alemão, o único modo de explicar o enrijecimento “antinatural” da determinação britânica era pela ação dos belicistas judeus americanos e seus marionetes, particularmente Winston Churchill.

Entretanto, a guerra total foi o último recurso do polvo judaico. Seu principal meio de influência contra a Alemanha era econômico. E é aqui que as duas vertentes desta reinterpretação da estratégia de Hitler em 1939 se reconectam. Poucos historiadores leram o discurso de 30 de janeiro de cabo a rabo. Isto é compreensível. Repleto de grande parte do clichê hitlerista de costume, foi um desempenho desgastante mesmo para seus padrões. Porém, uma inspeção casual do texto é o suficiente para revelar que uma grande parte, até a famosa ameaça à judiaria europeia, foi feita com uma discussão dos problemas econômicos da Alemanha, oferecendo uma justificativa tácita da decisão de Hitler dez dias antes de sacar Hjalmar Schacht, o chefe altamente respeitado do Reichsbank, e substituí-lo por Walther Funk, um bajulador nazista. Esta ação para garantir comando unificado pelo Partido, e consequentemente pelo próprio Führer, foi necessário, de acordo com Hitler, devido à situação delicada em que a Alemanha se encontrava. Após a exaustão da herança austríaca ao longo de 1938, as reservas cambiais da Alemanha estavam novamente em perigo de completa exaustão, um ponto conhecido por Göring ainda em novembro de 1938. Em resposta a essa situação, Hitler exigiu que todo alemão direcionasse suas energias em direção de uma nova motivação que garantiria ao Terceiro Reichfazer a quadratura do círculo: continuar o programa de armamentos e garantir as exportações necessárias. A Alemanha, declarou Hitler, enfrentava uma dura escolha “entre viver – isto é, exportar – ou morrer.” O Führer não tinha falado em tal tom pessimista sobre a situação econômica em qualquer momento desde sua ascensão ao poder, nem em 1934 nem em 1936. E quem eram os principais culpados por esta situação de emergência econômica? Os inimigos da Alemanha no Ocidente, que apoiados pelos seus apoiadores judeus estavam fechando as portas de seus países aos produtos alemães e, por meio da pressão política e econômica, conseguiram negar acesso à Alemanha aos lucrativos mercados da América Latina.

Neste momento crucial do regime de Hitler, foi a ideologia racial que forneceu a ponte entre sua avaliação estratégica e sua compreensão das dificuldades econômicas alemãs. Avaliar os impulsos ideológicos em relação à política externa de Hitler em 1939 pode parecer paradoxal à luz do fato de que Hitler terminou indo à guerra contra a Grã-Bretanha em aliança com a União Soviética, o oposto da aliança que ele havia conclamado no Mein Kampf. Contudo, o núcleo de sua ideologia não era um esquema particular de aliança, mas uma visão de mundo baseada na ideia de uma luta racial implacável. Em 1938, o centro da conspiração antialemã pareceu ter atravessado o Atlântico e tinha acrescentado, por sua vez, uma ameaça ao precário equilíbrio da corrida armamentista e aos problemas crônicos da balança de pagamentos internacionais da Alemanha. Os alemães estavam cientes de que no inverno de 1938-39, militares franceses foram à América inspecionar os bombardeiros da Boeing de última geração. Não era segredo que Roosevelt estava ansioso em conseguir que o Congresso modificasse a legislação restritiva de exportação de armas para as democracias amigas. Por outro lado, as relações econômicas entre os EUA e a Alemanha, antes no topo durante a República de Weimar, estavam em baixa. Elas foram reduzidas ainda mais  em 18 de março de 1939, quando em resposta à ocupação de Praga Roosevelt impôs tarifas proibitivas sobre os produtos importados da Alemanha.

Foi o alinhamento progressivo óbvio da América com as democracias ocidentais, um alinhamento que era mais ideológico do que prático neste ponto, que deu extrema urgência à questão da corrida armamentista. Em maio de 1939, o especialista econômico da Wehrmacht compilou uma avaliação do esforço armamentista geral das principais potências globais que mostravam que com os EUA gastando apenas 2% de seu PIB em armamentos, as “três democracias” estariam superando a Alemanha e Itália juntas. Para qualquer entendido em estratégia convencional este tipo de cálculo sugeriria que qualquer guerra em larga escala seria uma proposta de derrota para a Alemanha. Mas a reação de Hitler às dificuldades econômicas de 1939 não podem ser entendidas em tais termos. Ele via a situação através das lentes de sua ideologia racial. E isto ditou que o conflito era inevitável. Ele poderia ter desejado, como ele sugeriu no famoso memorando Hossbach de novembro de 1937, lutar uma “grande guerra” contra a Grã-Bretanha e França em um momento de sua escolha em algum ponto no começo dos anos 1940, mas no início de 1939 os passos dos eventos tornaram tais planos de longo prazo inviáveis. Com a América, França e Grã-Bretanha aparecendo como aliadas, não havia tempo a perder. Se os inimigos convictos de Hitler estavam improvisando, assim faria ele. Era tempo de, como ele explicou para Göring em agosto de 1939, de colocar tudo em risco, apostar tudo. Do contrário, confrontado por uma coalizão global organizada por seus inimigos judeus implacáveis, a Alemanha enfrentaria a ruína.                                               

       
Notas:

[1] Albion é o nome celta ou pré-céltico da Grã-Bretanha. Atualmente é ainda usado, na linguagem poética, para designar a ilha ou a Inglaterra em particular.

[2] Como é bem conhecido, a comunidade judaica americana organizou um boicote econômico contra a Alemanha Nazista em virtude das medidas antissemitas de Hitler, pedindo para que o público não comprasse produtos alemães. O resultado político foi o “Acordo de Transferência”, quando então o Terceiro Reich fez um acordo com as lideranças sionistas alemãs e permitiu a migração de dezenas de milhares de judeus alemães para a Palestina. Até 1941, 60.000 judeus foram transferidos para a região, levando consigo, a preços de hoje, cerca de U$ 1 bilhão.



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sábado, 19 de setembro de 2015

[SGM] Os Muçulmanos na Guerra de Hitler

David Moadel

History Today, Vol. 65, Nº 9, set/2015


Tunis, 19 de dezembro de 1942. Era o dia da Eid Al-Adha, a festa islâmica do sacrifício. A retirada do exército de Rommel tornou a cidade um enorme campo militar. No final da tarde, uma frota alemã de quatro carros grandes percorreu calmamente a principal rua de Tunis, a Avenida de Paris, deixando a capital em direção da cidade costeira de Hamman Lif. O comboio continha o General de Divisão Hans-Jürgen Von Armin, comandante da Wehrmacht na Tunísia, Rudolf Rahn, o cônsul de Hitler em Tunis e o mais alto funcionário do Reich na África do Norte, e alguns alemães de alta patente. Eles iriam  visitar o governador de Tunis, Muhammad VII Al-Munsif, que permaneceu o governante nominal da Tunísia, para desejar-lhe felicidades pelo feriado sagrado e mostrar seu respeito ao Islã. Em frente ao Palácio de Inverno de Hamman Lif, centenas de populares saudavam o comboio; a guarda tunisiana estendeu-lhes boas-vindas oficiais. Nas conversações com o monarca, os alemães prometeram que o próximo Eid Al-Adha ou Eid Al-Kabir, como é conhecido na Tunísia, aconteceria em uma época de paz e que a Wehrmacht faria tudo para manter a guerra longe da população muçulmana. Mais importante que as consultas, contudo, foi o respeito público alemão para o Islã. De volta ao quartel em Tunis, Rahn entusiasticamente telefonou para Berlim, clamando para o uso propagandístico da “recepção solene” na celebração Eid al-Kabir. Nos dias seguintes, a propaganda nazista espalhou as notícias pela África do Norte, retratando o Terceiro Reich como protetor do Islã.

No auge da Segunda Guerra Mundial, em 1941-42, enquanto as tropas de Hitler marchavam nos territórios habitados por muçulmanos na África do Norte, os Balcãs, Criméia e o Cáucaso e se aproximava do Oriente Médio e Ásia Central, diplomatas em Berlim começaram a ver o Islã como politicamente significativo. Nos anos seguintes, eles fizeram tentativas significativas para promover uma aliança com o “mundo islâmico” contra os supostos inimigos de ambos: o Império Britânico, a União Soviética, a América e os judeus.

Mesmo assim, a razão pelo engajamento do Terceiro reich com o Islã não era somente que regiões habitadas por muçulmanos tornaram-se também zonas de guerra, mas também, talvez mais importante, é que simultaneamente a situação militar da Alemanha havia se deteriorado. Na União Soviética, a estratégia da Blitzkrieg de Hitler falhou. Enquanto a Wehrmacht era pressionada, Berlim começou a buscar coalizões de guerra mais amplas, assim demonstrando um pragmatismo extraordinário. O cortejo dos muçulmanos era para pacificar os territórios ocupados e mobilizar os crentes a lutarem ao lado dos exércitos alemães.

Diplomatas alemães flertaram gradativamente com o Islã desde o final do século XIX, quando o Kaiser governava sobre boa parte das populações muçulmanas em suas colônias do Togo, Camarões e África Oriental alemã. Aqui, os alemães conseguiram empregar a religião como uma ferramenta de controle. Tribunais da Sharia eram reconhecidos. Dotes islâmicos foram mantidos intactos, instituições de ensino mantidas abertas e feriados religiosos respeitados. Diplomatas coloniais governavam por meio de intermediários islâmicos que, por sua vez, davam legitimidade ao Estado colonial. Em Berlim, o Islã era além disso considerado uma oportunidade para exploração no contexto da Weltpolitik gulhermiana. Isto tornou-se mais óbvio durante a viagem ao Oriente Médio de Guilherme II em 1898 e seu discurso dramático, dado após visitar a tumba de Saladino em Damasco, na qual ele declarou-se um “amigo” dos 300 milhões de mamoetanos mundiais e, analogamente, nos esforços de Berlim para mobilizar os muçulmanos vivendo nos impérios britânico, francês e russo durante a Primeira Guerra Mundial. Apesar de todas as tentativas para espalhar a jihad em 1914 tenham falhado, os estrategistas alemães mantiveram um interesse forte na geopolítica do Islã.

Com o início da Segunda Guerra Mundial e o envolvimento das tropas alemãs nas regiões habitadas pelos muçulmanos, diplomatas em Berlim começaram novamente a considerar o papel estratégico do mundo islâmico. Uma instrumentalização sistemática do Islã foi primeiramente proposta no final de 1941 em um memorando do diplomata Ebhard Von Stohrer, o ex-embaixador de Hitler no Cairo. Stohrer sugeriu que deveria haver um “programa extensivo do Islã”, que incluiria uma declaração sobre “a atitude geral do Terceiro Reich em relação ao Islã”. Entre o final de 1941 e final de 1942, o Departamento do Exterior criou um programa do Islã, que incluía o emprego de figuras religiosas, mais ativamente o Mufti de Jerusalém, Amin al-Husayni, que chegou em Berlim no final de 1941. Em 18 de dezembro de 1942, os nazistas inauguraram o Instituto Central Islâmico em Berlim, que tornou-se um ponto central dos esforços de propaganda da Alemanha no mundo islâmico; o jornal do partido, o Völkischer Beobachter, escreveu um título promissor, “Esta guerra poderia trazer liberdade para o Islã!” À medida que a guerra progredia e as tropas alemãs entravam em áreas muçulmanas nos Balcãs e na União Soviética, outros departamentos do Estado nazista seguiram essas políticas.

Diplomatas alemães tendiam a ver as populações muçulmanas sob a rubrica de “Islã”. Uma vantagem de usar o Islã ao invés das categorias étnico-nacionais era que Berlim poderia evitar o assunto espinhoso da independência nacional. Além disso, a religião parecia ser uma política útil e ferramenta de propaganda para acessar populações étnica, liguistica e socialmente heterogêneas. Os alemães viam o Islã como uma fonte de autoridade que poderia legitimar o envolvimento em um conflito e mesmo justificar a violência. Em termos de barreiras raciais, o regime mostrou pragmatismo extraordinário: turcos (não-judeus), iranianos e árabes já haviam sido excluídos de qualquer discriminação racial oficial nos anos 1930, seguindo intervenções diplomáticas dos governos em Teerã, Ankara e Cairo. Durante a guerra os alemães mostraram pragmatismo semelhante quando encontraram muçulmanos dos Balcãs e das minorias turcas na União Soviética. Os muçulmanos, estava claro para todo diplomata alemão do Saara ao Cáucaso, deveria ser tratado como aliado.

Em solo africano, em contato com as populações costeiras, oficiais do exército tentaram evitar problemas. Ainda em 1941, a Wehrmacht distribuiu o panfleto Der Islam para treinar as tropas segundo o correto comportamento em relação aos muçulmanos. No deserto líbio e egípcio, autoridades alemãs cortejavam dignitários religiosos, de forma mais importante os xeiques das influentes ordens Sufi. O problema era que a força religiosa mais poderosa na zona de guerra cirenaica[1], a ordem Sanusi Islâmica[2], era a cabeça de lança da resistência anticolonial contra o domínio italiano e lutavam ao lado do exército de Montgomery contra o Eixo. De qualquer forma, as promessas de Berlim de libertar os muçulmanos e proteger o Islã tornaram-se um contraste gritante com a violência e destruição que a guerra havia trazido para a África do Norte e os alemães, no final, falharam em incitar um maior movimento pró-Eixo muçulmano na região.

Na frente oriental, a situação era bem diferente. Os muçulmanos da Criméia e do Cáucaso setentrional estavam enfrentando o poder central desde a anexação czarista nos séculos XVIII e XIX e a tomada de poder bolchevista conseguiu piorar a situação. Sob Stalin, as áreas muçulmanas sofreram perseguição política e religiosa sem precedentes. A literatura islâmica foi censurada, a lei sharia banida e a propriedade das comunidades islâmicas expropriadas. Membros do partido tomaram o controle das mesquitas, pintaram slogans soviéticas nas paredes, hastearam bandeiras vermelhas em seus mirantes e caçaram porcos no interior de suas salas sagradas. Apesar disso, o Islâ continuou a ter um papel principal na vida social e política. Após a invasão do Cáucaso e Criméia, as autoridades militares alemãs, sedentas em encontrar colaboradores locais para estabilizar as áreas de retaguarda voláteis, não perderam a oportunidade para se apresentar como libertadores do Islã. O general Edwald Von Kleist, comandante do Grupo de Exércitos A, que ocupou o Cáucaso, clamou a seus oficiais para respeitar os muçulmanos e estarem atentos às implicações pan-islâmicas das ações da Wehrmacht: “Entre todos os grupos de exército, o grupo A foi o que avançou mais. Estamos diante dos portões do Mundo Islâmico. O que fazemos, e como nos comportamos aqui será transmitido para o Iraque, Índia, e tão longe quanto as fronteiras da China. Devemos estar constantemente cientes dos efeitos de longo alcance de nossas ações e inações.” Ordens semelhantes foram emitidas pelo general Erich Von Manstein na Criméia. Em sua ordem infame de 20 de novembro de 1941, que exigia que “o sistema judaico-bolchevista seja exterminado de uma vez por todas” e que se tornou um documento-chave usado pela procuradoria em Nuremberg após a guerra, Manstein clamou a suas tropas para tratar a população muçulmana bem: “Respeito pelos costumes religiosos dos tártaros maometanos deve ser obedecida.”

Em sua tentativa de controlar áreas da retaguarda estratégicas, os alemães fizeram uso extensivo das políticas religiosas. Eles ordenaram a reconstrução das mesquitas, salas de oração e instituições de ensino e o restabelecimento dos feriados religiosos. No Cáucaso, eles organizaram celebrações enormes ao final do Ramadã em 1942, do qual o mais notável aconteceu na cidade de Karachai de Kislovodsk. Sob o domínio soviético, os muçulmanos de Kislovodsk não poderiam atender abertamente o Eid al-Fitr e a celebração tornou-se um momento-chave da diferença entre o domínio alemão e soviético. Presenciada por um grande número de altos oficiais da Wehrmacht, ela incluiu orações, discursos e trocas de presentes; os alemães levaram armas capturadas e Alcorões. No centro de Kislovodsk, uma parada de cavaleiros karachai foi organizada. Atrás da tribuna honorária para os líderes muçulmanos e oficiais da Wehrmacht, um Alcorão de grandes dimensões feito de papel mache foi apresentado, mostrando duas citações em escrita árabe. Na página direita havia o shahada, a declaração de fé: “Não existe outro deus exceto Alá/Maomé é o Seu Profeta.” Na esquerda estava o popular verso corânico (61:13): “Ajuda de Alá/e uma vitória próxima virá”. Pregada acima do Alcorão estava uma enorme águia de madeira do Reich com uma suástica. Na Criméia, os alemães chegaram a estabelecer uma administração islâmica, os chamados “Comitês Muçulmanos”. No final, as esperanças de liberdade entre os muçulmanos das fronteiras soviéticas foram despedaçadas. As atitudes dos oficiais nazistas em relação à população muçulmana esfriaram quanto maior era o período de ocupação. Soldados comuns alemães, influenciados pela propaganda difamando os povos asiáticos da União Soviética como sub-humanos, não estavam preparados para lidar com os muçulmanos. Mesmo pior, após a retirada alemã, Stalin acusou as minorias muçulmanas de colaboração coletiva com o inimigo e ordenou sua deportação.

Panfleto alemão sobre o Islã

A situação nos Balcãs era novamente diferente. Quando os alemães invadiram e dissolveram a Iugoslávia em 1941, eles inicialmente não se envolveram nas regiões habitadas pelos muçulmanos, das quais as mais importantes eram a Bósnia e Herzegovina, caíram sob o controle do novo Estado croata ustasha. O regime ustasha, liderado pelo ditador fantoche de Hitler, Ante Pavelich, oficialmente tentou cortejar seus cidadãos muçulmanos, enquanto matava judeus e ciganos e perseguia os sérvios ortodoxos. A partir do início de 1942, contudo, a região tornou-se gradativamente engolida por um conflito grave entre o regime croata, os partisans comunistas de Tito e os sérvios chetnics ortodoxos de Mihailovich, que estavam lutando por uma grande Sérvia. A população muçulmana era repetidamente atacada pelas três facções. As autoridades ustasha empregaram unidades armadas muçulmanas para lutar tanto contra os partisans de Tito quanto contra as milícias chetnics. Logo, vilas muçulmanas tornaram-se objeto de ataques retaliatórios. O número de vítimas muçulmanas cresceu às dezenas de milhares. As autoridades ustasha fizeram pouco para prevenir esses massacres. Representantes da liderança muçulmana buscaram ajuda dos alemães, pedindo autonomia muçulmana sob a proteção de Hitler. Em um memorando de 1º. de novembro de 1942, eles declararam seu “amor e obediência” ao Führer e se ofereceram em lutar com o Eixo contra o “judaísmo, maçonaria, bolchevismo e os exploradores britânicos.” Diplomatas em Berlim ficaram excitados.

À medida que a guerra civil nos Balcãs fugiu ao controle, os alemães tornaram-se mais e mais envolvido com as áreas de população muçulmana. Em suas tentativas de pacificar a região, a Wehrmacht e, mais acentuadamente, a SS viram os muçulmanos como aliados bem-vindos e promoveram a Alemanha Nazista como protetora do Islã na Europa meridional. A campanha começou na primavera de 1943, quando a SS enviou o Mufti de Jerusalém em uma viagem para Zagreb, Banja Luka e Sarajevo, onde ele encontrou líderes religiosos e fez discursos pró-Eixo. Quando visitou a grande mesquita de Gazi Husrev Beg em Sarajevo, ele fez um discurso tão emocionado que algumas pessoas caíram em lágrimas. Nos meses seguintes, os alemães lançaram uma campanha maciça de propaganda religiosamente carregada. Simultaneamente, eles começaram a se envolver mais intimamente com dignitários e instituições islâmicas, já que eles acreditavam que os líderes religiosos mantinham grande influência sobre o povo. Os muçulmanos estavam formalmente sob a autoridade do conselho mais alto religioso, o Ulema-Medzlis, e funcionários nazistas repetidamente consultavam seus membros e tentavam cooptá-los. Muitos líderes muçulmanos esperavam que os alemães os ajudariam a fundar um Estado islâmico. Logo, contudo, tornou-se claro que a Wehrmacht e a SS não seriam capazes de pacificar a região; ao mesmo tempo, o apoio alemão à população muçulmana alimentou o ódio partisan e chetnic contra eles. A violência escalou. No final, um quarto de milhão de muçulmanos morreu no conflito.

Quando a maré da guerra voltou-se contra o Eixo a partir de 1941, a Wehrmacht e a SS recrutaram dezenas de milhares de muçulmanos, incluindo bósnios, tártaros criméios e muçulmanos do Cáucaso e Ásia central – principalmente para salvar sangue alemão. Os soldados muçulmanos lutaram em todas as frentes, eles foram colocados em Stalingrado, Varsóvia e na defesa de Berlim. Os oficiais do exército alemão garantiam a esses recrutas uma grande variedade de concessões religiosas, levando em conta o calendário islâmico e as leis religiosas, tal como as exigências dietéticas. Eles inclusive liberaram o ritual do sangramento, uma prática que foi proibida por razões antissemitas pela lei de Hitler da proteção de animais de 1933[3] Um papel central nas unidades foi retratado pelos imãs militares, que eram responsáveis não somente pela saúde espiritual, mas também pela doutrinação religiosa. Quando falou a membros do partido nazista sobre o recrutamento de muçulmanos na SS em 1944, Himmler explicou que o apoio do Islã tinha apenas motivos pragmáticos: “Não tenho nada contra o Islã, porque ele educa os homens nesta divisão para mim e promete o paraíso a eles quando eles lutam e são mortos em combate. Uma religião prática e atraente para soldados!” Após a guerra, muitos muçulmanos que lutaram nas unidades alemãs, especialmente aqueles da União Soviética e Balcãs, enfrentaram uma retaliação brutal.

O envolvimento dos alemães com muçulmanos não era de modo algum harmonioso. As políticas nazistas em relação ao Islã, como elaboradas pelos burocratas em Berlim, regularmente se chocavam com as realidades do campo de batalha. Nos primeiros meses após a invasão da União Soviética, os esquadrões da SS executaram milhares de muçulmanos, especificamente prisioneiros de guerra, pensando que sua circuncisão significasse que eram judeus. Um encontro de alto nível da Wehrmacht, SS e o Ministério do Reich para os Territórios Orientais Ocupados foi realizada no verão de 1941, na qual o coronel Erwin Von Lahousen, que representou Wilhelm Canaris, o chefe da inteligência da Wehrmacht, teve uma discussão acalorada com o chefe da Gestapo Heinrich Müller sobre estas execuções. Em particular, a seleção de centenas de muçulmanos tátaros que foram enviados para “tratamento especial” porque eles foram confundidos com judeus, foi levantado. Müller calmamente reconheceu que a SS havia cometido alguns erros a esse respeito. Era a primeira vez, ele afirmou, que ele havia ouvido falar que muçulmanos também eram circuncidados. Umas poucas semanas depois, Reinhard Heydrich, o chefe do Departamento de Segurança do Reich da SS de Himmler, enviou uma ordem alertando as Forças-Tarefa da SS para serem mais cuidadosas: “A circuncisão e aparência judaica não constituem prova suficiente da descendência judaica.” Muçulmanos não deveriam ser confundidos com judeus. Nas áreas ocupadas por muçulmanos, outras características, como nomes, deveriam ser levados em consideração.

Nas fronteiras meridionais da União Soviética, porém, os esquadrões da morte nazistas ainda tinham dificuldades de diferenciar muçulmanos de judeus. Quando o Einsatzgruppe D começou a matar a população judaica do Cáucaso e Criméia, ela encontrou uma situação especial em relação a três comunidades judaicas que estavam há muito tempo convivendo com a população muçulmana e eram influenciados pela cultura islâmica: os Caraites e os krimchaques na Criméia e os Tat-judeus, também conhecidos como “judeus das montanhas”, no Cáucaso meridional[4].                        

Na Criméia, os oficiais da SS ficaram intrigados quando encontraram os Caraitas e Krimchaques de língua turca. Ao visitar Simferopol em dezembro de 1941, dois oficiais da Wehrmacht, os majores Fritz Donner e Ernst Seifert, relataram que era interessante notar que: “Uma grande parte destes judeus da Criméia é de fé maometana, enquanto também existem grupos raciais do Oriente Próximo de caráter não semita que, curiosamente, adotaram a fé judaica.” A confusão entre os alemães sobre a classificação dos Caraitas e Krimchaques  que eram, de fato, ambas comunidades judaicas, foi surpreendente. No final, os Caraitas foram classificados como turcos e poupados, enquanto os krimchaques foram considerados etnicamente judeus e mortos. De acordo com Walter Gross, chefe do Departamento Racial do NSDAP (Partido Nazista), os caraitas foram excluídos da perseguição por causa de sua relação próxima com os tártaros muçulmanos aliados.

No Cáucaso, representantes dos Tat-judeus, uma minoria de ancestralidade iraniana, levou seu caso às autoridades alemãs. A SS iniciou investigações, visitando casas, participando de celebrações e pesquisando os hábitos da comunidade. O Oberführer da SS Walter Bierkamp, então chefe do Einsatzgruppe D, pessoalmente visitou uma vila dos “judeus da montanha” na área Nalchik. Durante esta visita, os judeus Tat foram extremamente hospitaleiros e Bierkamp encontrou que, fora sua religião, eles não tinham nada a ver com judeus. Ao mesmo tempo, ele reconheceu a influência islâmica, já que os Tats também praticavam relações poligâmicas. Bierkamp imediatamente deu ordens que esses povos não fossem perseguidos e que, no lugar de “judeus das montanhas”, o termo “Tats” fosse usado.

Em outras zonas de guerra, analogamente, as autoridades nazistas e seus colaboradores locais enfrentaram dificuldades em distinguir entre judeus e muçulmanos, particularmente nos Balcãs. A posição privilegiada dos muçulmanos (e, de fato, católicos) no Estado ustasha parecia, para muitos judeus, oferecer uma oportunidade para evitar a perseguição. Logo, muitos tentaram escapar da repressão e deportação por meio da conversão ao Islã. Somente em Sarajevo, cerca de 20% da população judaica deve ter convertido ao Islã ou ao catolicismo entre abril e outubro de 1941; dada sua circuncisão, muitos acharam mais fácil a opção do Islã. No outono de 1941, as autoridades utasha finalmente intervieram, proibindo estas conversões e mesmo aqueles que já haviam se convertido ainda não estavam a salvo da perseguição já que era a raça, e não a religião, que definia o judaísmo na visão dos alemães e dos burocratas utasha. Mesmo assim, um número de judeus convertidos e não-convertidos conseguiu fugir do país disfarçados de muçulmanos; alguns deles – homens e mulheres – vestindo roupas típicas.

Finalmente, o assassinato dos ciganos europeus envolveu os muçulmanos diretamente. À medida que os alemães começaram a varrer os territórios ocupados da União Soviética, eles logo encontraram muitos ciganos muçulmanos. De fato, a maioria dos ciganos na Criméia eram islâmicos. Eles tinham, por séculos, sido assimilados pelos tártaros, que agora mostravam solidariedade extraordinária para com eles. Os representantes muçulmanos enviaram várias petições aos alemães pedindo a proteção aos seus correligionários ciganos. Apoiados pelos tártaros, muitos ciganos muçulmanos pensaram em se passar por tártaros para escapar da deportação. Alguns usaram o Islã. Um exemplo foi do cerco aos ciganos em Simferopol em dezembro de 1941, quando aqueles capturados tentaram usar símbolos religiosos para convencer os alemães que sua prisão era um erro. Uma testemunha anotou em seu diário:

Os ciganos chegaram em massa em carruagens ao prédio Talmud-Torá. Por algum motivo, eles ergueram uma bandeira verde, o símbbolo do Islã, e colocaram um mulá[5] à frente da procissão. Os ciganos tentaram convencer os alemães de que eles não eram ciganos; alguns afiramaram ser tártaros, outros turcos. Mas seu protesto foi ignorado e todos foram colocados dentro do grande prédio.

No final, muitos ciganos muçulmanos foram mortos, mas como os alemães tinham dificuldade em distinguir o muçulmano cigano do muçulmano tártaro, alguns – cerca de 30% - sobreviveu. Durante seu interrogatório no Julgamento dos Einsatzgruppen em Nuremberg, quando perguntado sobre a perseguição aos ciganos na Criméia, Ohlendorf[6] explicou que a varredura foi prejudicada pelo fato de que muitos ciganos compartilhavam da mesma religião dos tártaros da Criméia: “Esta era a dificuldade, pois alguns dos ciganos – senão todos eles – eram muçulmanos, e por este motivo dedicamos grande importância ao assunto em não ter problemas com os tártaros e, portanto, pessoas foram empregadas nesta tarefa que sabiam os lugares e os povos.”

Os muçulmanos dos Balcãs também foram afetados pela perseguição aos ciganos, já que muitos deles tinham fé islâmica. Quando os alemães e seus aliados utasha começaram a perseguir a população cigana, eles inicialmente alvejavam o grande assentamento de muçulmanos ciganos da Bósnia e Herzegovina, os chamados “ciganos brancos”. No verão de 1941, os ciganos muçulmanos reclamaram às autoridades religiosas islâmicas sobre sua discriminação. Uma delegação de representantes muçulmanos solicitou às autoridades que os ciganos muçulmanos deveriam também ser considerados parte da comunidade muçulmana e que qualquer ataque a eles seria considerado um ataque à própria comunidade islâmica. Ansiosos em cortejar os muçulmanos, diplomatas ustasha e alemães eventualmente excluíram os ciganos muçulmanos da perseguição e deportação. Quando lançaram suas políticas pró-muçulmanas, os burocratas alemães não tinham considerado que o grupo populacional (racialmente definido), “muçulmanos”, que eles tentavam conseguir como aliados, poderia conter grupos populacionais (racialmente definidos), judeus e ciganos, que deveriam ser perseguidos.

Nos últimos meses de Guerra, Escondido no bunker de Berlim, Hitler lamentou que as tentativas do Terceiro Reich em mobilizar o mundo islâmico tenham falhado, já que eles não eram fortes o bastante. “Todo o Islã vibrou com as notícias de nossas vitórias e os muçulmanos estavam preparados para erguer em revolta,” ele disse a seu secretário, Martin Bormann. “Um movimento poderia ter sido incitado na África do Norte que teria agitado o resto do mundo islâmico. Apenas pense no que poderíamos ter feito para ajudá-los, mesmo para incitá-los, assim como poderia ter sido feito para nossa missão e interesse!”

No final, as tentativas alemãs de tornar os muçulmanos aliados foram menos bem sucedidas do que os estrategistas de Berlim haviam calculado. Eles foram mobilizados muito tarde e enfrentaram as duras realidades da guerra. Mais importante, as afirmações do Terceiro Reich de que ele protegia a fé careciam de credibilidade, já que muitos muçulmanos nas zonas de guerra estavam cientes de que eles serviam a interesses políticos profanos. Os alemães também falharam em incitar um levante maior muçulmano contra os aliados. Apesar de dezenas de milhares de muçulmanos tenham sido recrutados nos exércitos nazistas, no final, os britânicos, franceses e soviéticos foram mais bem sucedidos em mobilizar suas populações islâmicas: centenas de milhares lutaram contra a Alemanha nazista. Somente da África do Norte francesa, quase um quarto de milhão. Os muçulmanos se alistaram nas forças de de Gaulle, tomando parte na libertação da Europa.  


Notas:

[1] Cirenaica é o nome da costa oriental da moderna Líbia, uma referência à cidade mais importante da região na antiguidade, Cirene.

[2] Em 1843, Muhammad ibn Ali al-Sanusi fundou a Ordem Sanusi, que era um movimento que pregava o renascimento islâmico, defendendo uma visão austera, um retorno ao islamismo simples e ortodoxo pregado por Maomé, em oposição ao sufismo, que tinha grande presença na região.

[3] Ver tópico “Animais no Terceiro Reich: Política de Proteção e Holocausto”

 

http://epaubel.blogspot.com.br/2014/12/pol-animais-no-terceiro-reich-politica.html

 

[4] Caraísmo é uma religião abraâmica que defende a crença única e absoluta em Deus e que sua revelação única foi dada através de Moisés na Torá (que não admite adições ou subtrações) e nos profetas da Tanakh. Confiam na Providência divina e esperam a vinda do Messias e a Ressurreição dos Mortos. Seguem um calendário baseado no Abib* e com início de mês na lua nova vísivel.

 

* Nissan é o nome dado ao primeiro mês do calendário judaico religioso (sétimo mês do calendário civil), que se inicia com a primeira Lua nova da época da cevada madura em Israel. O nome Nissan tem origem babilônica: na Torá o nome do mês é Abib.

 

Como a maioria das línguas de judeus, o Krymchak apresenta muitas palavras originárias da língua hebraica.. Antes da era da União Soviética era escrita com o alfabeto hebraico. Durante o domínio soviético nos anos 1930 foi escrita com o alfabeto turcomano uniforme, uma variante do alfabeto latino, como ocorreu com a língua tártara da Crimeia e com o Karaim. A comunidade judaico-Krimchaque” foi dizimada durante o Holocausto nazista. Quando em 1944 a maioria dos Tártaros da Crimeia foi deportada para o Uzbequistão soviético, muitos dos falantes do Krimchaque estavam entre essas pessoas e alguns ficaram nessa nação. Hoje a língua está praticamente extinta.

 

Juhuri é a língua tradicional dos Judeus das montanhas do leste da cordilheira do Cáucaso, especialmente no Azerbaijão e no Daguestão (Rússia), hoje língua que é falada mais em Israel. A língua é relacionada com o Persa e pretence ao grupo sudoeste das línguas iranianas, divisão das línguas indo-européias. A Tat, é uma língua bem similar, mas é outra língua que é falada pelo povo Tat, muçulmanos, um grupo com o qual os Judeus da Montanha foi confundido de forma equivocada durante a era da história da União Soviética. Os termos Juhuri e Juhuro são literalmente traduzidos como "Judeu" .

[5] Mulá é geralmente usado para se referir a um homem muçulmano, educado na teologia islâmica e na lei sagrada.

[6] Otto Ohlendorf (1907 – 1951) foi um oficial alemão que serviu na SS nazista com a patente de Gruppenführer e também foi chefe da Inland-SD (responsável pela inteligência e pela segurança interna), uma subdivisão da Sicherheitsdienst (SD). Ohlendorf foi comandante da Einsatzgruppe D, que perpetrou vários assassinatos e outras atrocidades na Moldávia, no sul da Ucrânia, na Crimeia e, durante 1942, no norte do Cáucaso russo. Por estas ações, Otto Ohlendorf foi considerado uma das figuras mais proeminentes do Holocausto. Em 1951, ele foi condenado e executado por crimes de guerra e contra a humanidade cometidos durante a Segunda Guerra Mundial.

 



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terça-feira, 15 de setembro de 2015

Como os Neocons desestabilizaram a Europa

Robert Perry


O caos dos refugiados que agora está pressionando a Europa – dramatizado pelas fotos do afogamento do garoto sírio Aylan Kurdi, cujo corpo foi encontrado em uma praia na Turquia – começou com as ambições cavalheirescas dos neocons americanos[1] e seus colegas liberais-intervencionistas que planejaram refazer o Oriente Médio e outras partes do mundo através da “mudança de regime”.

Ao invés das maravilhas prometidas de “promoção da democracia” e “direitos humanos”, o que estes “antirrealistas” conseguiram foi espalhar a morte, destruição e desestabilização através do Oriente Médio e partes da África e agora na Ucrânia e no coração da Europa. Mesmo assim, desde que essas forças neocon ainda controlam a Narrativa Oficial, suas explicações alcançam alto valor – já que não tem sido suficiente a “mudança de regime”.

Por exemplo, o editor neocon do Washington Post, Fred Hiatt, na segunda-feira culpou os “realistas” pela evolução das catástrofes. Hiatt castigou-os e ao presidente Barack Obama por não intervir mais agressivamente na Síria para depor o presidente Bashar AL-Assad, um alvo neocon de longa data para “mudança de regime”.

Mas a verdade é que esta aceleração da difusão do sofrimento humano pode ser identificada diretamente à influência cega dos neocons e de seus amigos turistas liberais que possuem resistência a comprometimento político e, no caso da Síria, bloquearam quaisquer esforços realistas para encontrar um acordo justo entre Assad e seus adversários políticos, aqueles que não são terroristas.

No início de 2014, os neocons e os gaviões liberais sabotaram as conversas de paz sírias em Genova ao bloquear a participação do Irã e transformando a conferência de paz em um jogo de um time só onde os líderes oposicionistas financiados pelos EUA agrediram verbalmente os representantes de Assad, que voltaram para casa. Durante todo o tempo, os editores do Post e seus amigos continuaram martelando na cabeça de Obama para iniciar um bombardeio às forças de Assad.

A loucura desta visão neocon cresceu mais claramente no verão de 2014, quando o Estado Islâmico, uma cria da Al-Qaeda que tem massacrado os simpatizantes do governo de Assad, expandiu sua campanha sanguinária ao interior do Iraque, onde seu movimento ultrabrutal surgiu originariamente como “Al-Qaeda no Iraque” em resposta à invasão americana de 2003.

Deveria estar claro por meados de 2014 que se os neocons tivessem sucesso e Obama conduzisse um ataque maciço para devastar as forças de Assad, a bandeira negra do terrorismo sunita poderia estar muito bem tremulando na capital síria Damasco enquanto as ruas estariam banhadas de sangue.

Mas agora, um ano depois, os parceiros de Hiatt ainda não absorveram a lição – e o caos difundido das estratégias neocons está desestabilizando a Europa. Tão chocante quanto perturbador quanto possa parecer, nada disso deveria ser surpresa, já que os neocons sempre levaram caos e desorganização em seu rastro.

Quando encontrei os neocons pela primeira vez nos anos 1980, eles estavam brincando com a América Central. O presidente Ronald Reagan credenciou muitos deles, levando ao governo americano iluminados neocons como Elliott Abrams e Robert Kagan. Mas Reagan em geral manteve-os longe dos reinos principais: o Oriente Médio e a Europa.

Estas áreas estratégicas foram para os “adultos”, pessoas como James Baker, George Schultz, Philip Habib e Brent Scowcroft. Os pobres latino americanos, enquanto tentavam livrar gerações de repressão e atraso imposto por oligarquias de extrema direita, enfrentaram os ideólogos neocons americanos que criaram esquadrões da morte e mesmo genocídio contra camponeses, estudantes e trabalhadores.
O resultado – sem surpreender – foi uma fuga de refugiados, especialmente de El Salvador e Guatemala, em direção dos Estados Unidos. O “sucesso” neocon nos anos 1980, esmagando movimentos sociais progressistas e reforçando controles oligárquicos, deixou a maioria dos países da América Central nas mãos de regimes corruptos e sindicatos do crime, periodicamente levando mais ondas do que Reagan chamou de “andarilhos” através do México em direção do sul da fronteira americana.

Bagunçando o Oriente Médio

Porém, os neocons não ficaram satisfeitos brincando como crianças. Mesmo durante a administração Reagan, eles tentaram se infiltrar entre os “adultos” e possuir coisa de gente grande. Por exemplo, neocons como Robert McFarlane e Paul Wolfowitz forçaram as políticas amigáveis de Israel em relação ao Irã, na época visto como um contrapeso ao Iraque. Esta estratégia conduziu eventualmente ao Caso Irã-Contras, o pior escândalo da administração Reagan[2].

Contudo, a mídia principal de direita dos EUA jamais gostou da história Irã-Contras e, assim, a exposição dos muitos níveis da criminalidade do escândalo foi evitada. Os democratas também preferiram o diálogo ao invés do confronto. Logo, a maior parte das figuras neocons sobreviveu ao escândalo, deixando seus postos firmemente no lugar para a próxima fase de sua ascensão ao poder.

Nos anos 1990, os neocons construíram uma infraestrutura bem organizada de pensamento e presença midiática, beneficiando-se tanto de doações de grandes indústrias militares quanto de operações de financiamento público como Legado Nacional para a Democracia (NED), liderada pelo neocon Carl Gershman.

Os neocons ganharam mais impulso político das forças armadas americanas durante a Guerra do Golfo de 1990-91. Muitos americanos começaram a ver a guerra como diversão, quase como um vídeo game no qual as forças “inimigas” são esmagadas sem piedade. Nos noticiários de TV, filósofos beligerantes destilavam seus discursos de ódio.

Combinado com o colapso da União Soviética em 1991, a noção de que a supremacia militar americana era incomparável e incontestável deu nascimento às teorias neocon sobre transformar “diplomacia” em nada menos que ultimato dos EUA. No Oriente Médio, esta era uma visão compartilhada por israelenses linha-dura, que se cansaram de negociar com árabes e palestinos.

Ao invés de conversar, haveria “mudança de regime” para qualquer governo que não entrasse na linha. Esta estratégia foi articulada em 1996, quando um grupo de neocons americanos, incluindo Richard Perle e Douglas Feith começaram a trabalhar na campanha de Benjamin Netanyahu em Israel e escreveram um artigo estratégico chamado “Um rompimento claro: Uma Nova Estratégia para garantir o Reino”.

O Iraque foi o primeiro alvo da lista neocon, mas em seguida vinham Síria e Irã. A ideia geral era a de que uma vez que os regimes que ajudavam os palestinos e o Hezbollah fossem removidos ou neutralizados, então Israel poderia ditar os termos da paz para os palestinos que não teriam outra opção a não ser aceitar o que estava sendo oferecido.

Em 1998, o Projeto neocon para O Novo Século Americano, criado pelos neocons Robert Kagan e William Kristol, clamava por uma invasão do Iraque, mas o presidente Bill Clinton recusou-se a tal extremismo. A situação mudou, contudo, quando o presidente George W. Bush assumiu a presidência e os ataques do 11/09 aterrorizaram e enfureceram o público americano.

De repente, os neocons tinham um comandante-em-chefe que concordava com a necessidade de eliminar Saddam Hussein – e os americanos foram facilmente persuadidos apesar de o Iraque e nem Hussein terem nada a ver com o 11/09.

A Morte do “Realismo”

A invasão de 2003 do Iraque pareceu o canto de morte para a política externa “realista” em Washington. Obsoletas ou mortas, as velhas vozes foram silenciadas ou ignoradas. Do Congresso e Poder Executivo aos intelectuais e mídia jornalística, quase todos os “formadores de opinião” eram neocons e muitos liberais caíram na conversa de Bush no caso da guerra.

E, mesmo que o “grupo criador” da Guerra do Iraque estivesse quase todo errado, tanto em relação às armas de destruição em massa quanto à ingenuidade em reformatar o Iraque, quase ninguém que promoveu o fiasco sofreu qualquer punição tanto pela ilegalidade da invasão quanto pela ausência de bom senso em promover tal esquema desatinado.

Ao invés das repercussões negativas, os planejadores da Guerra do Iraque – os neocons e seus parceiros gaviões liberais – essencialmente fortaleceram seu controle sobre a política externa americana e sobre os principais meios jornalísticos. Do New York Times e Washington Post até a Instituição Brooking e o Instituto da Empresa Americana, a agenda da “mudança de regime” continuou a ser apoiada.

Nada mudou mesmo quando a guerra sectária libertada no Iraque ceifou a vida de centenas de milhares, deslocou milhões e deu nascimento ao parceiro impiedoso da Al-Qaeda. Nem mesmo a eleição em 2008 de Barack Obama, um oponente da Guerra do Iraque, mudou esta dinâmica geral.

Ao invés de se opor ao establishment da nova política externa, Obama curvou-se a ele, mantendo figuras-chaves da equipe de segurança nacional do presidente Bush, como o Secretário da Defesa Robert Gates e o General David Petraeus, e unindo-se a gaviões democratas como a senadora Hillary Clinton, que tornou-se Secretária de Estado, e Samantha Power no Conselho de Segurança Nacional.

Assim, o culto à “mudança de regime” não apenas sobreviveu ao desastre iraquiano; ele cresceu. Onde quer que um problema estrangeiro surgisse, a solução ainda era a “mudança de regime”, acompanhada pela usual demonização de um líder alvejado, apoio à “oposição democrática” e clamor pela intervenção militar. O Presidente Obama, indiscutivelmente um “realista”, encontrou-se como um chefe arrastado pela multidão já que ele foi conduzido para a cruzada da “mudança de regime”, uma após a outra.

Em 2011, por exemplo, a Secretária de Estado Clinton e a assessora do Conselho de Segurança Nacional Power convenceram Obama a se juntar a uma guerra com os líderes europeus que pretendiam uma “mudança de regime” na Líbia, onde Muammar Gaddafi investiu contra grupos no leste do país que se identificavam como terroristas islâmicos.

Mas Clinton e Power viam o caso como um teste para suas teorias de “guerra humanitária” – ou “mudança de regime” para remover um “bandido” como Gaddafi do poder. Obama logo consentiu e, com as forças armadas fornecendo apoio tecnológico crucial, uma campanha devastadora de bombardeio destruiu o exército de Gaddafi, removeu-o de Trípoli e no final levou ao seu assassinato por tortura.

“Viemos, vimos, ele morreu”

A Secretária Clinton se apressou em garantir o crédito para esta “mudança de regime”. De acordo com um email de agosto de 2011, seu amigo e conselheiro pessoal de longa data Sidney Blumenthal elogiou a campanha de bombardeio para destruir o exército de Gaddafi e saudou a expulsão do ditador.

“Em primeiro lugar, bravo! Este é um momento histórico e você receberá os créditos por ter feito isso,” escreveu Blumenthal em 22 de agosto de 2011. “Quando Qaddafi for finalmente retirado do poder, você poderá é claro fazer uma declaração pública diante das câmeras onde quer que você esteja, mesmo no conforto de seu lar... Você deve ir à câmera. Você deve se incluir no registro histórico deste momento... A frase mais importante é: estratégia bem sucedida.”

Clinton encaminhou o conselho de Blumenthal para Jack Sullivan, um assessor próximo do Departamento de Estado. “Galera, leiam abaixo,” escreveu ela. “Sid deu boas dicas sobre o que devo falar, mas só depois que Q (Qaddafi) partir, o que vai deixar mais dramático. Esta é minha hesitação já que não estou certa de quantas chances terei.”

Sullivan respondeu, dizendo “faria mais sentido para você fazer um editorial para ser publicado após ele cair, realçando este ponto... Você pode reforçar o editorial em todas as suas aparições, mas tem mais sentido criar algo definitivo, quase como uma Doutrina Clinton.”

Contudo, Gaddafi abandonou Trípoli aquele dia, e o presidente Obama aproveitou o momento para fazer um anúncio triunfante. A oportunidade de Clinton para anunciar sua felicidade com a “mudança de regime” líbio tevve que esperar até 20 de outubro de 2011, quando Gaddafi foi capturado, torturado e morto.

Em uma entrevista para a TV, Clinton celebrou as notícias quando elas surgiram em seu celular e parafraseou a famosa declaração de Júlio César após as forças romanas conseguirem uma vitória espetacular em 46 a.C., “veni, vidi, vici” – “vim, vi e venci”. A cópia da declaração de César foi: “Viemos, vimos, ele morreu.” Ela então gargalhou e bateu palmas.

Presumivelmente, a “Doutrina Clinton” teria sido uma política de “intervencionismo liberal” para alcançar “mudança de regime” em países onde há alguma crise na qual o líder procura eliminar uma ameaça de segurança interna e onde os Estados Unidos se opõem a tal ação.

Mas o problema com a declaração bombástica de Clinton sobre sua doutrina era que a aventura líbia logo se tornou um pesadelo com os terroristas islâmicos, sobre os quais Gaddafi havia alertado, tomando grandes porções de território e transformando-as em terras de sangue como no Iraque.

Em 11 de setembro de 2012, esta realidade atingiu o país quando o consulado americano em Bangazi foi tomado e o embaixador americano Christopher Stevens e três outros adidos diplomáticos foram assassinados. Ficou claro que Gaddafi não estava totalmente errado sobre a natureza de sua oposição.

Eventualmente, a violência extremista na Líbia cresceu tanto e fora de controle que os Estados Unidos e os países europeus abandonaram suas embaixadas em Trípoli. Desde então, os terroristas do Estado Islâmico começaram a decapitar cristãos cópticos nas praias líbias e massacrar outros “hereges”. Além da anarquia, a Líbia tornou-se uma rota de fuga para migrantes desesperados buscando uma passagem pelo Mediterrâneo em direção da Europa.

Uma Guerra contra Assad

Paralelamente à “mudança de regime” na Líbia foi o empreendimento semelhante na Síria na qual os neocons e os intervencionistas liberais pressionam pela queda do presidente Bashar AL-Assad, cujo governo em 2011 desmanchou no que rapidamente tornou-se uma rebelião violenta liderada por elementos extremistas, apesar de a propaganda ocidental retratá-los como “moderados” e “pacifistas”.

Para os primeiros anos da guerra civil síria, a versão era de que estes rebeldes “moderados” estavam enfrentando repressão injustificada e a única resposta possível seria a “mudança de regime” em Damasco. A afirmação de Assad que a oposição incluía muitos extremistas islâmicos foi largamente ignorada como também o foram os alertas de Gaddafi.

Em 21 de agosto de 2013, um ataque de gás sarin nos arredores de Damasco matou centenas de civis e o Departamento de Estado dos EUA e a mídia jornalística imediatamente culparam as forças de Assad exigindo uma retaliação contra o exército sírio.

Apesar das dúvidas dentro da comunidade de inteligência dos EUA sobre a responsabilidade de Assad pelo ataque de sarin, que alguns analistas viram como uma provocação por parte dos terroristas anti-Assad, o clamor dos neocon e dos liberais intervencionistas em Washington pela guerra foi intenso e quaisquer dúvidas sobre o caso foram deixadas de lado.

Mas o presidente Obama, ciente da incerteza da comunidade de inteligência americana, segurou uma resposta militar e eventualmente trabalhou um acordo, apoiado pelo presidente russo Vladimir Putin, no qual Assad concordava em entregar todo seu arsenal de armas químicas enquanto ainda negava qualquer responsabilidade pelo ataque de sarin.

Apesar de o caso do ataque de sarin acabou tirando a culpa do governo sírio – com evidência apontando para uma “operação de engano” conduzida por radicais sunitas para enganar os EUA de modo que este intervisse do seu lado – o “grupo intelectual” em Washington se recusou a reconsiderar o julgamento inicial errado. Na coluna da segunda-feira, Hiatt ainda se referia à “selvageria das armas químicas” de Assad.

Qualquer sugestão de que a única opção realista na Síria é um compromisso de divisão de poder que incluiria Assad – que é visto como protetor das minorias cristã, Xiita e Alauita na Síria – é rejeitada de cara com o slogan “Assad deve partir!”

Os neocons criaram uma sabedoria convencional que difunde que a crise síria seria prevenida somente se Obama tivesse seguido a receita de 2011 dos neocons de outra intervenção americana para forçar uma “mudança de regime”. Entretanto, o resultado mais provável teria sido outrra ocupação militar americana indefinida e sanguinária da Síria ou então a bandeira negra do terrorismo islâmico tremulando sobre Damasco.

Para cima de Putin

Outro vilão que surgiu a partir da falha em bombardear a Síria em 2013 foi o presidente russo Putin, que enfureceu os neocons com o seu trabalho com Obama na entrega do arsenal de armas químicas da Síria e que mais tarde aborreceu os neocons ao ajudar os iranianos a negociar seriamente uma restrição ao seu programa nuclear. Apesar dos desastres de “mudança de regime” no Iraque e na Líbia, os neocons queriam propagar sua agenda novamente em direção da Síria e do Irã.

Putin obteve sua resposta quando os neocons americanos, incluindo o presidente do NED Carl Gershman e a Secretária Assistente de Estado para Assuntos Europeus, Victoria Nuland (esposa de Robert Kagan), ajudou a orquestrar uma “mudança de regime” na Ucrânia em 22 de fevereiro de 2014, derrubando o presidente eleito Viktor Yanukovych e instalando um regime antirrusso na fronteira russa.

Tão emocionados quanto os neocons estavam com sua “vitória” em Kiev e seu sucesso em demonizar Putin junto à mídia jornalística dos EUA, a Ucrânia seguiu o previsível roteiro da “mudança de regime” e caiu em uma guerra civil perniciosa. Os ucranianos ocidentais promoveram uma “operação antiterrorista” brutal contra russos étnicos no leste que resistiram ao golpe de estado patrocinado pelos EUA.

Milhares de ucranianos morreram e milhões foram deslocados à medida que a economia ucraniana caminhava para o colapso. Contudo, os neocons e seus parceiros gaviões liberais novamente mostraram suas habilidades propagandísticas ao colocar a responsabilidade pela “agressão russa” a Putin.

Apesar de Obama aparentemente ter sido pego de surpresa pela “mudança de regime” ucraniana, ele logo se juntou ao coro ao denunciar Putin e a Rússia. A União Europeia também foi atrás dos EUA e exigiu sansões contra a Rússia apesar de estas sansões poderem abalar a economia da Europa. A estabilidade europeia está agora em risco em virtude do fluxo de refugiados das zonas de guerra do Oriente Médio.

Uma Dúzia de Anos de Caos

Assim, podemos olhar nas consequências e custos dos últimos 12 anos sob o reinado das estratégias de “mudança de regime” dos neocons/gaviões liberais. De acordo com muitas estimativas, as estatísticas de mortes no Iraque, Síria e Líbia já ultrapassaram um milhão, com muitos milhões a mais de refugiados fugindo  - e esgotando os recursos – de países frágeis do Oriente Médio.

Centenas de milhares de outros refugiados e migrantes partiram para a Europa, colocando mais desafios às estruturas sociais do continente já pressionadas pela recessão severa que se seguiu ao crash de 2008 de Wall Street. Mesmo sem a crise de refugiados, a Grécia e outros países europeus meridionais estão lutando para manter as necessidades se seus cidadãos.

Parando por um instante e pensando no impacto global das políticas neoconservadoras, podemos nos surpreender no quanto elas espalharam o caos numa grande região do globo. Quem poderia imaginar que os neocons conseguiriam desestabilizar não somente o Oriente Médio, mas também a Europa?

E, enquanto a Europa luta, os mercados de exportação da China são abalados, espalhando a instabilidade econômica para aquela economia crucial e, com seus choques de mercado, as reverberações atingindo os Estados Unidos também.

A única esperança é que muitos americanos não sejam mais iludidos desta vez e que o “realismo” abandonado retorne às estratégias geopolíticas dos EUA buscando compromissos reais para restaurar a ordem política em lugares como a Síria, Líbia e Ucrânia. Ao invés de mais confrontos de machões, talvez surjam esforços sérios para reconciliação.

                      
Notas:

[1] Neoconservadorismo (ou neocon) é uma corrente da filosofia política que surgiu nos Estados Unidos a partir da rejeição do liberalismo social, relativismo moral e da contracultura da Nova Esquerda dos anos sessenta.

O neoconservadorismo influenciou os governos de Ronald Reagan e George W. Bush, representando um realinhamento da política estadunidense e a conversão de alguns membros da esquerda para a direita no espectro político.

O neoconservadorismo estadunidense enfatiza a política externa como aspecto mais importante nas responsabilidades de um governo, com o fim de manter o papel dos Estados Unidos como única superpotência, condição indispensável para a manutenção da ordem mundial. O primeiro neoconservador declarado foi Irving Kristol, que explicitou sua condição em um artigo de 1979, intitulado "Confessions of a True, Self-Confessed 'Neoconservative.'"

A acusação de que neoconservadorismo está relacionada com o leninismo foi feita também por Francis Fukuyama que identificou neoconservadorismo com o leninismo em 2006:

... Acreditavam que a história poderia ser empurrado com a correta aplicação do poder e da vontade. O Leninismo foi uma tragédia em sua versão bolchevique, e voltou como farsa quando praticada pelos Estados Unidos. Neoconservadorismo, tanto como um símbolo político como um corpo de pensamento, evoluiu para algo que não pode mais ter apoio.

[2] O Caso Irã-Contras foi um escândalo político nos Estados Unidos revelado pela mídia em novembro de 1986, durante o segundo mandato do presidente Ronald Reagan, no qual figuras chave da CIA facilitaram o tráfico de armas para o Irã, que estava sujeito a um embargo internacional de armamento, para assegurar a libertação de reféns e para financiar os Contras-nicaraguenses.

A operação começou como uma tentativa de melhorar as relações entre Estados Unidos e Irã, através da mediação de Israel, que iria enviar armas para um grupo politicamente influente de iranianos; os Estados Unidos iriam então fornecer mais armas para Israel e receber o pagamento feito pelos iranianos aos israelenses. Os destinatários iranianos prometeram fazer o possível para conseguir a libertação de seis estadunidenses que eram mantidos reféns pelo grupo islâmico xiita libanês Hezbollah, que era ligado ao Exército dos Guardiões da Revolução Islâmica.

O plano acabou virando um esquema de "armas por reféns", no qual os membros do Poder Executivo dos Estados Unidos vendiam armas para o Irã em troca da libertação de reféns estadunidenses.



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