segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

[HOL] O Mito do Gueto de Varsóvia

Eli Gat

Haaretz, 23/12/2013

 

Como muitos sobreviventes do Holocausto, sempre me senti desconfortável sobre o modo como a memória do Holocausto foi construída. O mito do Levante do Gueto de Varsóvia é um exemplo excelente.

O Levante do Gueto de Varsóvia – o nome bonito é enganador. Os judeus do gueto de Varsóvia nunca se revoltaram. No verão de 1942, cerca de 300.000 judeus do gueto foram enviados a Treblinka e assassinados. Cerca de 50.000 pessoas foram deixadas no gueto; eles foram poupados na época porque eles eram pessoas qualificadas que trabalhavam nas fábricas alemãs tanto dentro quanto fora do gueto. Estas pessoas nunca pensaram em se revoltar, elas pensavam em sobreviver.

Somente um pequeno grupo de jovens rebelou-se, cujo tamanho e esforços foram inflacionados a proporções míticas em Israel após o Estado ser criado em 1948. Mais importante, o levante, que começou em 19 de abril de 1943, contradisse a estratégia de sobrevivência das massas de judeus que permaneceram no gueto.

A ideia da revolta e uso de armas se encaixava com o caráter da comunidade judaica na Palestina e com o da jovem nação. Ele foi exagerado por ativistas do movimento trabalhista – o partido Ahdut Ha'avoda e seu movimento afiliado do kibutz – que também reivindicou o levante enquanto repremia a memória de outros movimentos que fizeram parte, como os Bundistas*, comunistas e revisionistas de extrema direita.

Em virtude da pressão desta parte do movimento trabalhista, o dia da memória para a destruição da judiaria europeia foi chamado de Dia da Lembrança do Holocausto e do Heroísmo, como se houvesse qualquer comparação entre as duas partes da frase. O Ahdut Ha'avoda atacou David Bem Gurion e Mapai – outro precursor do Partido Trabalhista – e acenou sua bandeira de ativismo militar: em Israel o Palmach, no Holocausto os guerrilheiros do gueto.

O levante também foi aumentado por uma indefinição de números: o número de baixas alemãs, o número de guerrilheiros do gueto e a extensão do levante. Nos primeiros trabalhos após o Holocausto, escritores falavam em centenas de alemães mortos. Mas os relatórios diários enviados pelo comandante que destruiu i gueto mais tarde foram revelados. Baseados nestes relatórios do General da SS Jurgen Stroop, o qual ninguém questiona, 16 alemães foram mortos no combate. Após estes relatórios serem revelados, os textos originais do levante foram arquivados e nunca mais mencionados.

O segundo número obscuro é a quantidade de pessoas que participou do levante, no qual duas organizações de controle participaram. Uma era a Organização Judaica de Combate (ZOB), de esquerda, que incluía grupos de movimentos com ligações socialistas e comunistas, tanto sionistas quanto não-sionistas. A segunda consistia de pessoas do Beitar de direita, que operava dentro da União Militar Judaica (ZWW).

Yitzhak (Antek) Zuckerman (Icchak Cukierman) foi um líder ZOB e uma figura central na construção da imagem do levante em Israel após a guerra. Ele afirmava que cerca de 500 guerrilheiros tomaram parte na revolta. Outro participante no levante, Stefan Grayek, colocou o número em 700.

Entre os historiadores, o professor Yehuda Bauer da Universidade Hebraica de Jerusalém conclui (sem dar detalhes) que havia algo entre 750 e 1.000 guerrilheiros, enquanto o professor Israel Gutman, que participou do levante e escreveu um livro após fazer uma pesquisa independente, colocou o número em somente 350. Nenhum destes números – exceto o de Bauer – inclui os guerrilheiros das organizações de extrema direita dos quais nenhum sobrevivente ficou vivo para testemunhar e cuja contribuição permaneceu em silêncio por muitos anos.

O testemunho mais confiável em muitos pontos sobre o levante, incluindo o número de participantes, foi dado por um de seus líderes, Mark Edelman. Ele, um bundista, permaneceu na Polônia após a guerra e portanto tornou-se um intocável à medida que as instituições que organizaram a lembrança em Israel estavam preocupadas.

Edelman colocou o número de guerrilheiros ZOB em cerca de 220. Quando perguntado em que base ele apresentava este número, ele respondia: “Eu estava lá e conhecia todo mundo. Não é difícil esquecer de 220 pessoas.” Quanto à diferença entre este número e o de Zuckerman, Edelman disse: “Antek tinha motivos políticos e eu não.”

Assumindo que o número de combatentes na organização de extrema direita – para a qual não há números claros – fosse menor, é razoável pensar que o número total de participantes na revolta era menor do que 400, em relação às quase 50.000 pessoas que moravam no gueto.

Apenas dois dias de Combate duro

Os números da extensão do combate real também foram inflacionados. Gutman acredita que o levante durou um mês. Mas segundo os relatórios de Stroop, assim como o testemunho dos líderes do levante, mostram que as batalhas reais aconteceram em somente dois dias. Isto porque os planos de combate do ZOB nunca foram conduzidos em sua totalidade. Seu objetivo era tomar posições nas janelas, atirar e lançar granadas e então assumir novas posições.

No início da revolta em 19 de abril, os alemães foram pegos de surpresa pela resistência armada e se retiraram do gueto. Mas após se reorganizarem, eles não tinham a intenção de perseguir os judeus de casa em casa, ao invés disso eles decidiram destruir o gueto inteiro e colocá-lo em chamas.

Os membros do ZOB que achavam que o destino dos judeus no gueto já estava decidido – morrer – planejaram lutar e morrer com as granadas em suas mãos. Mas eles acabaram se escondendo e tentando uma fuga da destruição pelas chamas. No final, eles foram obrigados a fugir e seguir com os moradores do gueto, em oposição aos seus planos originais.

Zivia Lubetkin, uma líder da revolta, escreveu sobre isso assim: “Estávamos todos desamparados, chocados pelo constrangimento. Todos os nossos planos estavam arruinados. Sonhamos com uma última batalha na qual sabíamos que seríamos destruídos pelo inimigo, mas eles pagariam o preço com sangue. Todos os nossos planos estavam arruinados e sem outra ideia em debate a decisão foi tomada: Deixaríamos o lugar. Não era mais possível lutar.”

Zuckerman escreveu: “Conhecíamos as saídas muito bem, todas as passagens pelos telhados. Se a guerra tivesse continuado, sem lança-chamas, milhares de soldados teriam sido enviados à batalha para nos derrotar.”

O primeiro grupo de combatentes ZWW deixou o gueto em 20 de abril, o segundo dia da revolta, através de tuneis preparados antecipadamente. Um segundo grupo foi embora em 22 de abril e um último grupo em 26 de abril. A maioria, senão todos, foram mortos quando foram descobertos no lado polonês.

Os guerrilheiros ZOB, que não tinham intenções de deixar o gueto, não preparou rotas de fuga. Somente graças aos túneis de esgoto e ajuda do lado polonês eles puderam deixar o gueto. Em 28 de abril um primeiro grupo abandonou o local. Em 8 de maio, Mordechai Anielewicz , o comandante do ZOB, suicidou-se após seu esconderijo ser descoberto.Em 9 de maio, os sobreviventes do ZOB deixaram o gueto. Todos disseram, cerca de 100 guerrilheiros ZOB escaparam.

Em poucos dias, as duas organizações militares deixaram (ou fugiram) o gueto bombardeado e em chamas e seus 50.000 habitantes, deixando os residentes para sofrer a terrível vingança dos alemães. Acredita-se que os alemães mataram 10.000 moradores; eles enviaram o resto para campos próximo a Lublin.

Arruinando uma estratégia de sobrevivência

O levante interferiu, assim, na estratégia de sobrevivência das massas de judeus no gueto. Para entender isto, devemos primeiro compreender a mudança na situação entre os transportes em massa em 1942, quando a vasta maioria dos judeus na Polônia foi exterminada em um curto período de tempo, e a situação em 1943.

Nesta época aconteceu a reviravolta na Segunda Guerra Mundial. Em novembro de 1942, os russos romperam as linhas em Stalingrado e no início de fevereiro de 1943, todo o Sexto Exército alemão se rendeu. Simultaneamente, os alemães foram derrotados em El Alamein no deserto egípcio, e os Aliados desembaraçaram na África do Norte francesa.

Estes acontecimentos trouxeram esperança de uma derrota relativamente rápida da Alemanha. Mesmo as esperanças dos judeus foram impulsionadas. Se eles pudessem de alguma forma aguentar mais um dia, talvez pudessem ser salvos.

Houve até mesmo uma mudança na política alemã em relação aos judeus. A destruição de todos eles ainda era uma alta prioridade, mas a urgência diminuiu um pouco após a maior parte do objetivo ter sido alcançada e à urgência das necessidades econômicas. Os alemães precisavam de trabalhadores para suas fábricas após a força de trabalho alemã ser direcionada para os campos de batalha. Mão de obra escrava foi usada por toda a Europa.

Os 50.000 judeus que permaneceram no Gueto de Varsóvia após os transportes de 1942 tinham sobrevivido, assim como em outros guetos na Polônia ocupada, principalmente porque eles trabalhavam em fábricas para a Alemanha. Muitas destas fábricas eram de propriedade e administradas por alemães, que negociavam com as autoridades e com a SS para manter seus trabalhadores.

À luz de tudo isso, a crença dos judeus cresceu ao ponto de acreditar que eles poderiam sobreviver. Eles tinham duas péssimas opções: fugir do gueto para o lado hostil polonês ou continuar trabalhando nas fábricas alemãs. Ambas as opções significavam viver dia após dia na esperança de que a guerra terminasse o mais rápido possível.

No final da guerra, centenas de milhares de judeus sobreviveram na Polônia e Alemanha. Em Varsóvia somente o número de sobreviventes é estimado em 25.000. A morte em combate, como os guerrilheiros do gueto planejavam, não batia com as intenções da vasta maioria dos judeus sobreviventes.           

Muitos historiadores do Holocausto e do levante vieram de um campo político usado para objetivos políticos. Sua influência no museu do Holocausto Yad Vashem era grande. Eles escreveram nossa história e moldaram nossas lembranças do Holocausto.

Sua influência em seus estudantes e seguidores ainda hoje é grandemente sentida. Assim, a questão que nunca foi levantada: Com que direito um pequeno grupo de pessoas decidiu pelo destino dos 50.000 judeus do Gueto de Varsóvia?

Nota:

* Bundismo é um movimento judeu socialista e secular que se originou da Liga Trabalhista Judaica fundada no Império Russo em 1897. O termo vem de Bund (“liga” ou “União” em alemão).

[PGM] O Circo Voador do Barão Vermelho

René Peyrolle

História Viva, Ano VII nº 81

 
No início da Primeira Guerra Mundial, os aviões ainda não eram usados como arma de combate. Só a partir de 1915 os alemães passaram a utilizar aeronaves para abater seus adversários nos céus.

A guerra ganhou uma nova dimensão, e o ar se tornou um campo de batalha inesperado, onde um homem passou a reinar absoluto: com seu avião todo pintado de vermelho, Manfred Von Richtofen se transformou no terror dos pilotos britânicos e franceses. Para os inimigos, ele não era um ser de carne e osso, mas uma lenda. Ele era o Barão Vermelho.

Nascido em 1892 no seio de uma poderosa família aristocrática alemã, aos 11 anos ele entrou para a escola de cadetes (Kadettschule) de Wahlstadt, na região da Silésia, e se revelou um aluno absolutamente mediano em todas as disciplinas. Destacava-se apenas nos exercícios físicos.

Manfred passou seis longos anos na escola de Wahlstadt e mais dois na Academia Militar de Lichterfede, na região de Postdam, de onde saiu com o título de oficial da cavalaria em 1911. No final de 1912, uniu-se ao primeiro regimento de cavaleiros ulanos Kaiser Alexander III, que estava baseado na Alemanha oriental no momento da declaração de guerra em 1914.

Participou, então, da invasão da Rússia, mas os combates no leste não duraram muito. Manfred, assim como os demais cavaleiros, foi desmobilizado e enviado para as trincheiras no oeste, mas não suportou o “serviço mortalmente entediante” e pediu transferência para as tropas aéreas.

Richtofen mergulhou de cabeça nos cursos de aviação, mas novamente se revelou um aluno medíocre. Seu instrutor só permitiu que pilotasse sozinho após 25 saídas realizadas em menos de uma semana. Em 10 de outubro de 1915 ele finalmente fez o seu primeiro voo desacompanhado e... sofreu um acidente na aterrissagem.

Esse fracasso e a aparente falta de habilidade, porém, não desanimaram Richtofen. Ele estava determinado a pôr em prática o que havia aprendido com um oficial que conhecera durante seu treinamento, Oswald Bölcke, que lhe apresentou a pilotagem de caça. A partir daquele encontro, o futuro Barão Vermelho se deu conta de que o avião não precisava ser apenas um instrumento de reconhecimento. O aparelho poderia ser uma poderosa arma de combate.

Richtofen logo superou os problemas dos primeiros voos e dominou seu avião. Terminou o treinamento no dia de Natal de 1915 e pouco tempo depois pilotava um Albatroz da segunda esquadrilha de combate alemã sobrevoando o front de Verdun.

Nessa época, a superioridade dos ingleses e franceses nos céus era incontestável, e Bölcke foi encarregado de organizar uma esquadrilha de elite alemã para desafiar esse domínio. O lugar-tenente Richtofen foi escolhido para integrar a equipe. O grupo, formado por 12 pilotos, lançou-se em uma dura batalha contra os Aliados. Em seis semanas, seis pilotos foram mortos, um gravemente ferido e outros dois caíram em depressão. Aqueles combates aéreos em verdadeiras provações físicas e morais para os homens dos dois campos, mas Richtofen sempre estava ali, colecionando vitórias.

Em 28 de outubro de 1916, depois de abater 40 adversários, Oswald Bölcke morreu ao se chocar com um avião britânico na região de Pas-de-Calais.

A guerra continuava e a popularidade de Richtofen só aumentava. No dia 16 de junho de 1917 ele recebeu a Cruz do Mérito*, mais alta condecoração militar alemã, e o governo do seu país mandou distribuir milhares de fotografias do herói. Pouco tempo depois, ele foi escolhido para comandar sua esquadrilha, a Jasta II.

Fim de junho de 1917. Manfred, com 56 aviões destruídos, é dali em diante o maior ás da Primeira Guerra Mundial. Seu Albatroz, que tinha uma velocidade ascensional notável e que chegava facilmente a 500 metros de altitude, dava à sua esquadrilha uma superioridade de manobra perante os aviões aliados. Ele foi então promovido a capitão.

Como seus companheiros o convenceram de que o vermelho fazia de sua máquina um alvo facilmente identificável para os adversários, Richtofen ordenou que todos os seus homens pintassem seus respectivos aviões de cores vivas. O do líder permaneceu inteiramente escarlate, enquanto os outros foram cobertos com cores diferentes em cada parte da fuselagem. Assim nasceu o “Circo Voador” de Richtofen, cujos aparelhos, em tons gritantes, formaram uma nova unidade, a Jagdgeschwader I.


Réplica do Triplano Fokker Dr. I utilizado por Richtofen

Início de 1918. O “Circo Voador” de Richtofen continuava no front. A base aérea se encontrava em Cappy, na região do Somme, na França. Aquele 21 de abril prometia ser um belo dia. O céu estava limpo e os homens alegres: seu capitão acaba de obter a 80ª. vitória. O ás dos ases absoluto!

Richtofen levantou-se de bom humor. De repente, foi surpreendido pela notícia de que aviões britânicos se aproximavam do front. Imediatamente os pilotos se enfiaram em seus aparelhos. Vinte aviões Fokker e Albatroz alemães alçaram voo.

O “Circo Voador” de Richtofen ultrapassou Cerisy por volta das 10h40min. Logo, um pouco mais ao sul e mais para o alto, o capitão canadense Roy Brown e seus oito Camel foram ao encontro dos alemães.

Brown, do alto, percebeu rápido as manobras desordenadas de um Camel, pilotado pelo inexperiente Wilfred R. May, de apenas 19 anos, ao mesmo tempo que avistou o triplano escarlate se aproximando de seu jovem protegido. O capitão canadense arremeteu imediatamente sobre o Fokker, e eis que começou uma perseguição infernal entre os três aviões.

Entregue a esse duelo mortal, o ás alemão aparentemente não se deu conta de que sobrevoava as linhas australianas e neozelandezas. De repente, ouviu os tiros disparados pelas metralhadoras antiaéreas. O triplano vermelho perdeu a estabilidade e entrou em parafuso, descontrolado. Minutos depois, o avião explodiu contra o chão. Era a última batalha do Barão Vermelho.

O pequeno cemitério de Bertangles, situado perto do local de combate, e base aérea britânica, recebeu seus restos mortais em 22 de abril de 1918. Manfred Von Richtofen foi enterrado com honras militares pelos britânicos, em uma cerimônia que não teve paralelo durante toda a Primeira Guerra Mundial. Na noite de 23 de abril, pilotos aliados lançaram no aeródromo alemão mensagens do Royal Flying Corps britânico: “O capitão Richtofen teve um ferimento mortal em combate aéreo e foi enterrado com todas as honras militares.”

domingo, 29 de dezembro de 2013

As Razões da Guerra dos Cem Anos

Xavier Hélary

História Viva, Ano VII nº 79

 
Tradicionalmente, a Guerra dos Cem Anos começou em 1337, quando o rei da Inglaterra reivindicou a Coroa da França, e terminou em 1453, ano em que os ingleses foram definitivamente expulsos do território francês. O embate, no entanto, começou muito antes, mais exatamente em 1066.

Em 14 de outubro daquele ano, Guilherme, o Conquistador (1066 – 1087), arrasou o exército anglo-saxão em Hastings e se tornou o rei da Inglaterra. Guilherme era duque da Normandia, região situada no noroeste da França, e com a anexação do novo território ele fundou um poderoso Estado dos dois lados do canal da Mancha.

Apesar do intercâmbio cultural, França e Inglaterra não eram iguais no plano político. Como duques da Normandia, os reis ingleses eram vassalos do soberano francês e deviam lhe prestar homenagem.

O equilíbrio de poder entre os dois reinos começou a mudar quando a dinastia fundada por Guilherme, o Conquistador, chegou ao fim, em 1135. Naquele ano, o último filho do líder normando, Henrique I Beauclerc, morreu sem deixar herdeiros homens. A crise de sucessão levou ao poder o neto de Henrique I, que assumiu o trono em 1153 com o nome de Henrique II e se tornou o primeiro rei de uma nova dinastia, a dos Plantagenetas.

Quando Henrique II finalmente faleceu, em 1189, seu filho Ricardo ficou com toda a herança: sua ousadia lhe valeu o apelido de Coração de Leão. Em 1199, porém, Ricardo morreu e foi sucedido pelo irmão, João sem Terra. Aproveitando-se da fraqueza de João e das prerrogativas que o direito feudal lhe conferia, Felipe Augusto, sucessor do rei francês Luis VII, confiscou os domínios continentais do rei da Inglaterra entre 1204 e 1206.

Os direitos da França sobre os antigos domínios de Henrique II foram oficializados em 1259, quando o rei Henrique III assinou o Tratado de Paris com o rei Luis IX, reconhecendo as anexações de terra promovidas por Felipe Augusto. O monarca inglês conservou apenas o ducado de Aquitânia em território francês.

O acordo assinado em 1259 inaugurou um período de 35 anos de paz entre os dois reinos, mas as hostilidades foram retomadas em 1294. Naquele ano, o rei francês Felipe, o Belo, confiscou o ducado da Aquitânia sob o pretexto de resolver rixas entre marinheiros locais e de La Rochelle.

Em 1303, a paz foi restabelecida entre os dois reinos, e ficou acertado que a filha do rei francês, Isabelle, se casaria com o filho mais velho do rei da Inglaterra, o futuro Eduardo II.

Nenhum dos dois lados imaginava que os dois reinos em breve entrariam em uma guerra interminável. A causa imediata do conflito foi puramente conjuntural: um a um, os três filhos de Felipe, o Belo – Luis X, Felipe V e Carlos IV -, morreram prematuramente. Nenhum deles deixou filhos homens, o que era uma situação inédita desde que Hugo Capeto fundara a dinastia que governava a França desde 987.

Os barões da França, reunidos após a morte de Carlos IV, se decidiram por Felipe, primo germano dos três filhos de Felipe, o Belo, e filho de Carlos de Valois, único irmão germano do monarca francês.

Segundo as crônicas tradicionais, o estopim da guerra foi aceso por um nobre francês de sangue real chamado Roberto de Atois. Preterido por Felipe de Valois na disputa pelo condado de Artois, Roberto se exilou na corte de Eduardo III, onde teria incitado o rei inglês a atacar a França.

A responsabilidade imputada a Roberto de Artois, porém, foi um tanto exagerada. Os negócios entre a Inglaterra e o condado de Flandres tiveram um papel muito mais importante. As poderosas cidades flamengas, com seus ricos burgueses e tecelões, queriam autonomia política em relação à França. Elas reclamavam de ter de se submeter à autoridade dos agentes do conde dde Flandres, um homem próximo de Felipe de Valois. Como dependiam da lã inglesa, os flamengos estavam naturalmente dispostos a buscar a ajuda de Eduardo III.

O apoio inglês às reivindicações dos comerciantes flamengos foi visto por Felipe de Valois como um ato de traição de um de seus vassalos, o rei Eduardo III. Sob o pretexto de punir um súdito real, Felipe decretou o confisco do ducado da Aquitânia em 1337. Eduardo respondeu, então, reivindicando o trono francês, já que era mais próximo dos últimos reis da dinastia capetíngea que Felipe de Valois.

No dia 1º de novembro de 1337, um enviado do rei da Inglaterra comunicou a Felipe de Valois o desafio lançado por Eduardo III. Era o início da Guerra dos Cem Anos.

Oficialmente, o confronto durou 116 anos, mas a rivalidade entre França e Inglaterra estava longe de ser superada no fim do século XV. Os ingleses continuaram a ser os “inimigos hereditários” dos franceses pelo menos até 1904, quando os dois países se uniram pela primeira vez, na chamada “Entente Cordiale”, contra a Alemanha.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Europa e a Defesa comum

Gilles Lapouge, 23 de dezembro de 2013

 


A pergunta é: onde estão todos os soldados que os países europeus deveriam enviar à Republica Centro-Africana para apoiar os 1,6 mil dos franceses que tentam restabelecer a ordem em meio ao caos e a razão em meio ao delírio? Esquadrinhamos mares e ares com grandes lunetas, mas nada, não vimos nada no horizonte.

E não foi por falta dos regimentos europeus serem anunciados. Na terça-feira o chanceler francês, Laurent Fabius, deu a boa notícia. No dia seguinte, o ministro dos Assuntos Europeus forneceu detalhes: alemães e britânicos enviariam tropas à República Centro-Africana. O que foi retificado por outro ministro. Não. Seriam soldados poloneses e belgas.

E o que restou desse vasto Exército europeu? Nada. Um Exército de fantasmas. E os militares franceses continuarão a combater sozinhos.

Podemos multiplicar as explicações: egoísmo dos Estados, efeitos da crise, recusa obstinada da Grã-Bretanha a qualquer embrião de Defesa comum europeia. No fundo, observamos um movimento: a Europa, que durante séculos foi o continente da guerra, está farta. E uma estranha mudança ocorre: enquanto o mundo se rearma, a Europa, tranquilamente, se desarma.

Dois países ainda dispõem de uma força militar vigorosa: França e Grã-Bretanha. Mas, mesmo nestes países, os Exércitos se contraem. Depois da atuação medíocre no Iraque e no Afeganistão, os britânicos reduziram seu orçamento militar em 8% para 2013.

A França ainda mantém boa imagem. Seu Exército brilhou no Mali e mostra-se exemplar na República Centro-Africana, mas não tenhamos ilusões. Ela possui alguns regimentos muito ágeis, mas o resto é vazio. A cada ano o Exército perde subsídios, homens e material. Corre uma piada que diz que o Exército francês inteiro pode ser alojado num estádio de futebol.

A Alemanha continua resolutamente pacifista. O chefe do Estado Maior da Suécia acabou de declarar que, em caso de guerra, seu Exército poderá resistir por uma semana, mas não duas.

O contraste é espetacular com outros continentes. Nem é preciso lembrar a força em termos de material e homens dos americanos. A China tem um Exército enorme e vem modernizando suas forças armadas.

A Rússia rearma um Exército a serviço de uma diplomacia cada vez mais intransigente. O Paquistão vem reforçando sua força nuclear. Índia e Indonésia se armam.

Claro que a Europa tem a vantagem (ou o inconveniente) de ser apoiada militarmente pelos EUA desde o fim da 2ª Guerra. Sabemos que Obama recompôs os destinos do mundo sobre um novo mapa: na sua cabeça, a Europa não está mais no centro. A Ásia expulsou-a.

Tudo se passa como se a Europa, cansada de lutar, enojada com os rios de sangue que derramou, preferisse depor armas e conservar seu posto, mas em outras bases que não a militar. Um desejo que podemos compreender, mas é ilusório. A força econômica, a força política e a militar caminham juntas.

[POL] Raízes Místicas do Nazismo

Fernando G. Sampaio

 
A Alemanha está inserida no contexto de uma reação contra o racionalismo, que marcou o final do século XIX, pelo menos, em sua metade e que tem o nome de Movimento Romântico.

O Romantismo se expressou de variadas formas em toda a Europa, mas alcançou uma posição notável dentro da cultura germânica, por uma série de razões históricas bem conhecidas, em que se destaca o impacto produzido sobre o nacionalismo alemão durante o ciclo das Guerras Napoleônicas.

Este movimento antiracionalista surgido logo após a tormenta revolucionária e napoleônica, devemos considerá-lo como a expressão de uma inquietude... aparece como pessimista, aristocrático, impregnado de religiosidade e nostalgia tradicionalista.

Observamos, que já temos um quadro geral da questão das raízes místicas do nazismo:

1º - o descontrole nervoso do corpo político-social alemão vai se dar pela derrota na 1º Guerra Mundial, pela destruição do Império e abdicação da figura do Imperador, considerada uma enorme perda psicológica e oral e pela posterior crise econômica geral que grassou por todo o mundo, o crack de 30 e que foi fortemente sentido na Alemanha;

2º - este descontrole geral, com causas econômicas, sociais, políticas e militares, foi precedida por uma forte crise de identidade cultural que fez aflorar de forma notável um sentimento romântico que era místico, mágico e antiracionalista;

3º - esta atmosfera de derrota mais irracionalismo vai preparar o ambiente cultural em que vão se formar as mentalidades culturais da liderança do Partido Nazista, em especial de Hitler e de seu grupo de apoio pessoal.

Portanto, o nazismo não é um fenômeno, conforme avaliamos, exclusivamente do século XX ou resultado direto de uma derrota militar. O nazismo foi o coroamento de um processo de formação de mentalidades e de cultura que acompanhou, lateralmente, a formação cultural da Alemanha, desde o final do século XVIII.

Além do conhecido pré-romantismo e do romantismo, que existiu em toda a Europa, mas teve o seu apogeu na Alemanha, podemos observar o desenvolvimento, ao longo destes períodos históricos, na Europa e na Alemanha, dos seguintes fatores:

1. Surgimento do Orientalismo (e do misticismo);

2. Surgimento do folclore;

3. Surgimento da arqueologia e da pré-história;

4. Impacto da Teoria da Evolução (evolucionismo social ou social-darwinismo)

Orientalismo

O orientalismo é um sistema, adotado no século XIX, e hoje abandonado, que atribuía as origens da civilização europeia, suas artes, filosofia e ciências, às antigas culturas do Oriente, em particular, O Egito, a Pérsia e a Índia. O orientalismo teve grande influência nas artes e na literatura e era uma verdadeira mixórdia de estudos variados com a busca pela sabedoria ou os chamados segredos das ciências ocultas das antigas civilizações.

Folclore

Os irmãos Jacob e Wilhe Grimm são considerados os fundadores do Folclore científico, em especial as coletâneas de contos, canções e lendas germânicas, enfeixadas em “A Mitologia Alemã” (1835). Mas, já por 1812-1815 tinham lançados pequenos trabalhos sobre as lendas e sobre as Runas Alemãs e, aos poucos, vão criando o arcabouço sobre a qual vai ser erigida a veneração pelo passado heróico post-Império Romano dos guerreiros alemães e, também, pelo heróico Império, o Sacrum Romanum Imperium Nationis Germanicae – 962-1806. É a recuperação folclórica que trouxe à tona o famoso poema épico alemão “Der Nibelung Not (a desgraça dos Nibelungen), mais conhecido, porém, como Niebelungenlied (canção dos Niebelungen), datado de 1250 a 1260, onde é exaltado o paganismo germano, a figura do herói, meio homem, meio deus, que não foge, jamais ao destino a que estão submetidos homens e deuses. De enorme forma trágica, com violência e vingança mas também com amor apaixonado e cortesão, é considerado mito nacional germânico. A versão de Wagner, que serviu para sua monumental tetralogia operística é baseado, porém, numa versão nórdica (das Eddas), com adaptações próprias e não segue este manuscrito do folclore medieval.

Arqueologia

A Arqueologia alemã, como não podia deixar de ser, contribuiu poderosamente para uma mitologia toda especial que influenciou as mentalidades da época. Gustav Kossima (1858 – 1931), arqueólogo e pré-historiador, deliberadamente dispôs-se a provar a importância e a grandeza dos germanos através da pré-história. Expandiu a cronologia de maneira que tudo parecesse ter começado na Alemanha e se espalhado dos Germanos Superiores para os inferiores ao redor... Kossima queixava-se que a Arqueologia alemã se estava concentrando nas terras clássicas e se preparava, portanto, implícita ou explicitamente, para descrever os antigos germanos como bárbaros. Insistia que era errado só Ter grandes coleções para Egito Grécia, etc. e afirmava que: “uma nação que não mantém contato com seu passado está pronta a secar como uma árvore com as raízes amputadas.”

Evolucionismo

Não podemos esquecer que a obra básica de Darwin surge em 1859 e causa profunda impressão em todo o mundo culto. Mas vai dar origem, também ao social-darwinismo, isto é a uma doutrina da sobrevivência dos mais aptos, que seriam os mais fortes, isto é, aqueles que faziam a guerra melhor e ganhavam nos conflitos bélicos, por serem superiores e, com isto, subjulgavam os perdedores, que seriam seres fracos e inferiores.

A sobrevivência dos mais aptos não tem nada a ver com isto e os mais aptos podem até ser (como parece) os mais hábeis em se esconderem e não serem, assim, caçados pelos mais fortes. Esta, pelo menos, é a visão mais correta, atualmente, sobre a proliferação dos hominídeos...

A publicação, na Alemanha, por Nietzche, em 1866, de “Além do Bem e do Mal” ia vulgarizar, porém, a visão de uma força impulsora da vontade humana como sendo “a vontade de Poder”, que instituía duas moralidades, a do senhor e a do escravo.

Todas estas ideias iriam convergir, de uma forma ou de outra, para a formação de uma ideia central, isto é, que existiam diferenças entre os povos e que estas diferenças tornavam uns povos dominadores e outros povos dominados, portanto, uns inferiores e outros superiores.

Estas noções são abstratas e, mesmo, mágicas e vão terminar por contaminar toda a maneira de pensar de mais de uma geração, levando, inclusive, ao nascimento de sociedades secretas e diferentes agrupamentos e grêmios, dedicados ao estudo do passado em geral e particularmente ao passado germânico, que terminam num obscurantismo místico, do qual, a elite do partido nazista fazia parte, no que, entretanto, não era diferente das elites em geral e das classes médias.

Como não existiam entretanto, nada mais do que especulações, os interessados na afirmação destas ideias são obrigados a criar, gradativamente, uma falsa ideologia, baseada em um passado também falsificado. E, para isto, começam a basear suas afirmativas em lendas, mitologias e, igualmente, em falso folclore, que começa a surgir dentro das sociedades ocultistas, em especial as chamadas sociedades teosóficas.

Hitler, mesmo, é quem afirma:

“A lenda não pode ser extraída do nada, não é uma construção do espírito puramente gratuita, Nada nos impede de supor, e creio mesmo que temos interesse em o fazer, que a mitologia constitui um reflexo de coisas que existiram e de que a humanidade conservou uma vaga recordação... O espírito humano mesclou estas imagens com noções elaboradas pela inteligência, e foi assim que as igrejas constituíram a armação ideológica que ainda hoje assegura a sua força”.

Thule, Atlântida, Catástrofes e Mundos Perdidos

Em Leipzig, em 1912, é fundada uma Germanen-Thule-Sekte, que antecipa a Germanen Orden de 1913 e a Thulegesellchaft de 1918 da qual deriva diretamente o Partido Nazista.

A sociedade Thule organiza um grupo de combate, da qual faz parte Rudolf Hess e tenta um contra-golpe, na Baviera, em 1919. Estas sociedades e, em especial, a Germanem-Ordem celebram, já então, a velha festa nórdica do solstício de inverno e é nela que se redige o programa original do partido social-alemão de Alfred Brunner, ao qual irá se filiar, depois, Adolf Hitler, que reorganiza o movimento.

Thule, uma terra de felicidade, para lá do norte, faz parte do ciclo lendário da Hyperbórea e data do tempo dos romanos, quando um explorador chamado Pítea, saiu de Marselha para explorar a rota de fornecimento de âmbar e outras especiarias, que chegavam até a Europa Central e Mediterrânea desde o distante norte.

Este “país ao norte” foi tomado como sendo uma espécie de centro mágico, onde sobreviveram restos da cultura e da sabedoria daquela civilização de fantasia, que teria sido destruída há dez mil anos atrás. E foi desta terra e da Hyperbórea, que vieram os ancestrais dos Arianos, marcahdno desde os planaltos do Himalaia, onde tinham se refugiado do Dilúvio.

Assim, os ancestrais dos arianos não seriam os povos extintos, mas teriam tido uma iniciação mágica junto aos povos extintos, aos últimos sábios, conhecidos com “Superiores Desconhecidos”, onde teriam aprendido a língua “superior”, formando a “mentalidade superior”, que tornou os ancestrais dos germanos, uma espécie de “raça eleita”, não só por receber a sabedoria dos antigos, como também por estar dotada, por está mesma sabedoria, do destino de dominar os povos inferiores e criar um império universal.

É curioso observar que algumas das sociedades místicas que existiam na Alemanha (mas não só de lá...), diziam que entre os ensinamentos legados pelo povo extinto na guerra ou catástrofe de dez mil anos atrás, estava o segredo do chamado Vrill, uma poderosa fonte energética, segundo alguns, de ordem mental, com o que se podia operar milagres.

Esta ideia de Vrill, entretanto, como muitas outras, é a mais pura fantasia.

Ela foi descrita como uma força, é verdade, de um povo antigo, é também verdade, mas por um famoso romancista, Sir Edward George Bulwer-Litton (1803-1873), que chegou a ocupar um cargo de Secretário das Colônias da Inglaterra e fazia parte da famosa sociedade secreta ocultista “As Aurora Dourada”, com ramos nos Estados Unidos, na Alemanha e na Grã-Bretanha.

Em seu romance “A Raça que se Seguirá” ( ou que vira, datado de 1871) ele apresenta uma raça que vive em um mundo subterrâneo, dotada de grandes qualidades morais e espirituais, que eram alimentados por uma estranha força-sustentadora de energia vital, chamada Vrill. O romance previa que esta “raça perdida”, viria a voltar para a superfície e teria a ascendência sobre todo o planeta... Bulwer-Litton é lembrado, até hoje, pelo seu clássico de 1834, “Os últimos dias de Pompéia” e, em sua época, foi um importante defensor do ocultismo, da mágica e das “forças ocultas”.

Profecias do Salvador

Nesta atmosfera, nada mais natural que surgissem, igualmente, profecias, que preparavam o terreno, de forma mágica, para a vinda do Salvador. Em 1922 o escritor Kurt Hesse publicou em sua novela “O Marechal Psicológico” que:

Assim, um dia virá em que se anunciará Aquele que todos nós aguardamos cheios de esperança: centenas de milhares de cérebros carregam sua imagem no seu âmago, milhões de vozes invocam-no incessantemente, toda a alma alemã o procura... De onde virá? Ninguém sabe. Talvez de um palácio de príncipes, talvez de uma cabana de operários. Mas, cada um sabe: é ele, o Führer. Cada um o aclamará; cada um lhe obedecerá. E por que? Porque um poder extraordinário emana de sua pessoa: é o diretor das almas. Daí porque o seu nome será: o Marechal Psicológico.

Observamos que Hitler ou outra figura que tivesse as características semelhantes, correspondia a um ideal mágico, a busca de um salvador, que – misticamente – reconduziria a Alemanha para uma epopeia de glórias, em que o Império Universal, sonho do antigo pangermanismo da casa dos Kaisers, se tornaria, finalmente, realidade.

O primeiro biógrafo de Hitler, Konrad Heiden, já escrevia em “Hitler: a vida de um bárbaro”:

O homem Adolf Hitler é comparável a um médium que faz desprender de si o fenômeno... O Fuhrer é um filho das massas. E que espécie de massa é essa! É a do povo alemão empobrecido, derrotado, inanido... Por esse motivo esse lutador que veio à tona, saindo da insignificância, é o predileto e modelo da massa em luta com sua desesperança.

De parte da elite agitadora, existe a ideia que é possível, pela guerra, fazer a Alemanha uma potência mundial, novamente. Para isto, todos concordam, é necessário um Salvador, um Líder, (o Fuhrer), que magicamente, tornará humilhação em triunfo e derrota em vitória. Não existisse esta raiz mística profunda, todo o fenômeno do nazismo não teria sido possível.

Conclusão

Diz o escritor François Perroux, escrevendo na época, para tentar compreender e divulgar na França as ideias do nazismo:

O nacional-socialismo ofereceu uma pseudo-religião, sem paraíso inacessível, que o povo alemão confusamente solicitava. Divinizou a própria raça germânica, isto é, a totalidade dos arianos nórdicos concebidos como depositários de toda a verdade, de toda a bondade e de toda a beleza. Em torno do dogma da raça, congregou as multidões por meio de ritos, procissões, juramentos, autos de fé, saudações, hinos e cânticos.

Pretendeu ensinar-lhes uma moral própria: a moral dos germanos, diferente do resto da humanidade. Afirmou não a comunhão dos santos, mas a comunhão dos Heróis, quer dizer, dos arianos nórdicos, isto é, dos homens de sangue alemão. Nesses homens incute o sentimento de serem o povo eleito, o sal da terra. Não é por acaso que o nazismo se choca violentamente com as Igrejas autênticas. Ele próprio é um Estado que se quer constituir uma Igreja... essa interpretação do nacional-socialismo como Ersatz de religião mostra claramente como a Alemanha se move num mundo de pensamentos totalmente diverso daquele que sugere o contraste marxista: capitalismo versus anticapitalismo. Ela explica as exclusões e as interdições que a mística hitlerista tem lançado contra as doutrinas econômicas tradicionais.

E que doutrinas econômicas teria o nazismo? Comenta o mesmo autor:

Uma escola preconiza o regresso deliberado às formas de produção e de troca pré-capitalistas. Quando reinavam estás fórmulas, a comunidade nacional era mais unida, a nação demograficamente mais forte e mais independente. Uma Nova Idade Média, tal é, portanto, com todas as conseqüências que comporta, moderação das necessidades, disciplina de técnica, renovação dos costumes corporativistas, a senha que lançam alguns economistas, entre eles Werner Sombart. Aliás é a essa tendência a política de reorganização e proteção aos componeses, praticada pelo IIIº Reich e de que Walter Darré é o profeta, o criador, o ensaiador... Tersemarcher, diz, explicitamente que a restauração de forças econômicas herdadas de uma passado longínquo encontram seu fundamento natural na Terra e no Sangue... O camponês, que não é um tipo de humanidade surgido do capitalismo, deverá viver livre e feliz em seu campo. Feudalismo, mas aperfeiçoado e centralizado, onde nenhum dos senhores vassalos contesta os direitos do grande suserano, Hitler, o Führer... Há uma hostilidade fundamental à ideia de contrato, substituída por laço de fidelidade pessoal... O diretor da fábrica será assessorado por um círculo de “homens de confiança” e tribunais de honra estão encarregados de reprimir as infrações.

Oswald Dutch, no famoso trabalho da época, “Os doze Apóstolos de Hitler”, já lembrava:

O sangue alemão deve desembaraçar-se, o mais rápido possível de toda ideia de pecado. A noção de sangue e honra deve formar a alma alemã. A beleza grega reina sobre as formas do corpo, a beleza germânica determina a formação da alma. Uma significa o equilíbrio exterior, a outra a lei interior... Os casamentos dos membros do Partido Nacional-Socialista não foram mais celebrados na igreja, nem na pretoria, mas debaixo do carvalho de Wotan segundo os ritos pagãos. Quase toda a juventude e todas as formações militares do Partido adotaram, imediatamente, o paganismo de Rosenberg*, empreendendo, ao mesmo tempo, uma luta encarniçada contra o cristianismo. Esta luta anticristã está vinculada ao movimento antissemita, pois Rosenberg lembra que os católicos são de uma religião de origem judaica e adoram os mesmos deuses que os judeus.

O nazismo poderia ser entendido como algo mais do que um fundamentalismo ideológico religioso. Enquanto os fundamentalistas de hoje tentam travar o futuro, o nazismo ia além: com pitadas de um passado mítico, ele pretendia criar um Bravo Novo Mundo, com uma super-raça, baseado no mito do puro-sangue, parte da lenda do Santo Graal, que nada mais é do que uma mitologia do século XII, que, em última análise, trata de preservação do sangue perfeito, o sangue de um deus. Hitler e o nazismo, portanto, podem ser explicados e até entendidos, não só por causas econômicas, mas por uma filosofia que vinha determinando este caminho particular para aquele momento histórico de há muito e muito tempo.

Nota:

* Alfred Rosenberg (1893 – 1946), intelectual do Partido Nazista e autor de “O Mito do Século XX”

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

[POL] A Política de Drogas do Terceiro Reich

Jonathan Lewy

 


Biologia, herança e melhoramento das futuras gerações fascinaram os nazistas ao ponto do estabelecimento de uma política. A busca da higiene racial, a luta contra os comportamentos antissociais e contra os indivíduos e raças “deficientes biológicos” eram o cerne da visão de mundo nacional socialista e encontraram suas bases nos códigos penais e nos tribunais do Reich. Aqueles que sofriam de doenças hereditárias, judeus, ciganos, deficientes físicos e antissociais tinham um defeito biológico segundo os olhos dos nazistas, e, portanto, foram perseguidos. Mas a biologia influenciou a política nazista em relação às drogas, viciados e crimes de narcotráfico?

Apesar de ser costume hoje em dia chamar o tabagismo e o álcool de “drogas”, fazer isso na Alemanha nos anos 1930 não seria menos do que um anacronismo. Muitos alemães distinguiam entre drogas (Rauschgifte ou Betäubungsmitteln), tabaco e álcool e assim também o fazia a lei. O regime nacional socialista tornou as coisas ainda mais claras, diferenciando viciados de alcoólatras extremos. Os últimos foram esterilizados, ainda que em pequeno número.

Antes da Primeira Guerra Mundial, a Alemanha possuía um monopólio virtual das drogas manufaturadas, ou aqueles fármacos que exigem conhecimento químico e capacidade industrial para produzir. A morfina, um alcaloide encontrado no ópio, o qual é melhor conhecido por seu efeito analgésico, foi o produto principal da indústria farmacêutica alemã. O alcaloide foi isolado primeiramente por um químico alemão na primeira década do século XIX, e foi logo patenteado pela Merck em Darmstadt. Outras drogas, especialmente os opiáceos (narcóticos) também tinham origem alemã. Apesar de um químico britânico ter originalmente sintetizado a diacetilmorfina em 1874, a droga não impactou o mercado mundial até quando foi redescoberta e produzida em massa pela Bayer em Leverkusen em 1898.

Tanto a morfina quanto a heroína eram consumidas na Alemanha durante os anos de Weimar e do Terceiro Reich, apesar de que a morfina era muito mais popular do que o seu primo mais potente, talvez explicando a decisão da Merckel de encerrar seu programa de diacetilmorfina. O número de viciados na Alemanha é difícil de saber. Como muitas estatísticas de drogas, os números relatados de viciados são meros chutes ao invés de números confiáveis, principalmente porque é quase impossível diferenciar viciados de usuários.

O funcionário governamental superior (Oberregierungsrat) Erich Hesse, um alto funcionário no Departamento de Saúde do Reich nos anos 1930 e 1940, relatou que de 1913 até 1922 houve um aumento de viciados em opiáceo (isto é, morfina e heroína) na Prússia, de 282 para 682; o número de viciados aumentou com o surgimento de soldados feridos no campo de batalha, e em 1928, havia 6.356 viciados em morfina na Alemanha, dos quais 560 eram médicos. Em 1931, Hesse relatou que a taxa de vício na Alemanha era significativamente mais baixa, com 0,3 viciado por 10.000 homens e 0,1 viciado por 10.000 mulheres, produzindo um resultado aproximado de 1.200 viciados na Alemanha. Os caminhos misteriosos das estatísticas e estimativas de drogas não podem ser explicados, mas certamente estes números são somente tão úteis quanto as impressões de qualquer leigo.

A única informação significativa que poderia ser coletada do estudo de Hesse é que pelo final da terceira década do século XX, um em cada cem médicos era identificado como um viciado. As autoridades sabiam que médicos e farmacêuticos, os profissionais com maior acessos às drogas, eram o ponto fraco da política de controle de drogas do Reich. Para corrigir a situação, regulamentos restritivos foram impostos a médicos e comerciantes farmacêuticos, como vendedores e farmacistas; mas o governo foi cuidadoso para não antagonizar esses dois grupos, procurando incluí-los nos esforços de controle, ao invés de levá-los à ilegalidade. Em 10 de outubro de 1937, o juiz Dr. Baier de Berlim, afirmou que era mais fácil para um médico viciado prescrever narcóticos para pacientes do que para médicos não-viciados. A polícia, compartilhando este sentimento, agiu de acordo e apertou seu controle sobre os médicos. Um estudo diferente conduzido pelo Dr. Kurt Pohlisch, um psiquiatra na Universidade Bonn e um participante ativo na esterilização de pacientes que sofriam de doenças hereditárias, afirmou que o número de viciados em opiáceos na Alemanha que consumiam mais do que 0,1 grama de morfina por dia era exatamente 3.500; destes, somente 237 consumiam mais do que um grama e cerca de um terço consumia em média 0,2 grama por dia. Como poderia se esperar, Berlim era a principal fonte de vício com 1,91 viciados em cada 10.000 pessoas. Apesar da óbvia discrepância entre estes estudos, as autoridades alemãs consideraram as estimativas de Pohlisch confiáveis e continuaram a usá-las até pelo menos 1937.

Diferentemente das estimativas anteriores de Hesse e Pohlisch, o delegado (Kriminalkommissar) Werner Thomas, chefe da unidade antinarcotráfico alemã dentro do Departamento de Polícia Criminal do Reich, relatou que o vício em morfina estava crescendo e que havia cerca de 1.500 viciados em morfina registrados em 1932. Somente quatro anos separam o estudo de Hesse das atividades policiais de Thomas, sugerindo o tipo de mágica estatística usada para determinar os números do vício. Em 1942, o delegado Erwin Kosmehl, sucessor de Thomas, relatou que havia 2.384 viciados registrados em morfina na Alemanha. Em comparação, o delegado Harry Anslinger do Escritório Federal Americano de Narcóticos relatou em 1931 que havia algo entre 120.000 e 140.000 viciados nos Estados Unidos. Outros eram ainda mais liberais, afirmando que no final dos anos 1920, os Estados Unidos tinham algo entre um quarto e um milhão de viciados. A população dos Estados Unidos na época era cerca de 122 milhões; portanto, se levarmos em conta as estimativas conservadoras de Anslinger, a taxa de vício era cerca de 1,4 viciados por 1.000 habitantes. Na Alemanha, se considerarmos as estimativas generosas de Hesse, a taxa de vício era 0,09 por 1.000 habitantes. Se confiarmos em tais números, a Alemanha aparentemente tinha um problema de opiáceo menor do que os Estados Unidos.

A noção de que tropas que retornavam do front constituíam a maior parte dos viciados na Alemanha foi reforçada por um estudo conduzido pelo Ministério do Trabalho do Reich em 1931 descrevendo, entre outras coisas, o tratamento dos soldados viciados. Apesar da asserção de que usuários podem consumir drogas por anos sem tornarem-se viciados, o paradigma era claro: guerras criam viciados em drogas, tanto por causa dos soldados feridos que recebem tratamento com opiáceos quanto pela baixa moral. A primeira possibilidade, e não a última, foi explorada no relatório, com o objetivo de encontrar uma cura, ao invés de encontrar os viciados para colocá-los na prisão. Em 14 de outubro de 1942, o Dr. Leonard Conti, o líder dos médicos no Reich, declarou que a Alemanha não tinha o problema de drogas, mas que ela deveria se preparar para isso após o fim da guerra. Conti atribuiu os sucessos do regime nazista no combate ao fenômeno do vício em drogas após a Primeira Guerra Mundial a várias leis antidrogas que foram promulgadas e às várias medidas de bem estar dos trabalhadores. Ele esqueceu de mencionar, contudo, que a principal lei antidrogas, a  Opiumgesetz foi criada em 1929, quatro anos antes dos nazistas assumirem o poder. Seu alerta era claro; o medo de uma onda de soldados “doidões” viciados voltando das trincheiras de uma nova guerra mundial, mas esta nova onda nunca chegou. O uso de drogas na Alemanha permaneceu baixo até o final dos anos 1960.

Nem todas as drogas na Alemanha eram opiáceos. A cocaína, talvez a segunda droga mais popular nos anos Weimar, também tinha origens alemãs, ou pelo menos raízes no mundo de língua alemã. Isolada originalmente por químicos alemães a partir das folhas de coca, a cocaína foi popularizada por dois médicos vienenses de origem judaica. Provavelmente, o mais influente dos dois na época era o Dr. Karl Koller, um oftamologista que emigrou para os Estados Unidos em 1888 e introduziu a cocaína como anestésico local na cirurgia do olho em setembro de 1884. O segundo foi o Dr. Sigmund Freud, que publicou seu ensaio “Sobre a Coca” em julho de 1884. Os dois médicos incitaram a imaginação de muitos médicos tanto na Alemanha quanto no exterior, ajudando a popularizar a droga. Apesar dos cuidados com a indicação da droga, logo ela começou a ser receitada por médicos universitários nos Estados Unidos. A partir daí, o caminho para banir a droga foi aberto. O entusiasmo alemão pela droga continuou até os anos 1890, quando uma série de publicações manchou a reputação da droga. Alguns enalteciam a cocaína, outros a amaldiçoavam e o governo não se via capaz de salvar a regulação da utilidade de todas as drogas. O consumo de cocaína só disparou após a Primeira Guerra Mundial, à medida que os estoques militares foram lançados no mercado civil, apesar de algumas vezes estar diluída em ácido bórico, novocaína e outros substitutos. De acordo com uma estimativa, “o uso de cocaína em hospitais universitários aumentou de uma média de 1,75% para 10% em 1921.” Nos anos após a guerra, os usuários queriam recreação e algumas vezes adquiriam drogas de vendedores ilegais.

Com a imagem popular de cabarés, e festas boêmias agitadas, Berlim era conhecida como a cidade do pó. Os traficantes de cocaína infestavam os lugares mais conhecidos da cidade, do Zoológico à Postdamerplatz em Wittenbergplatz. De fato, o delegado Ernst Engelbrecht de Berlim afirmou em 1924 que a cocaína tornou-se mais popular entre as mulheres e os homossexuais masculinos. Para ele, a cocaína não era o problema; ela havia se tornado uma epidemia. Mesmo assim, de acordo com estimativas da época, a cidade de Karlsruhe reinava suprema como o centro para o consumo de cocaína com 1,44 gramas por 1.000 habitantes, enquanto Berlim permanecia em segundo lugar com um grama por 1.000 habitantes, que não é um consumo particularmente alto.  

Nada dura para sempre. À medida que o governo republicano ganhou força a partir do seu nascimento revolucionário, a lei e a ordem foram restaurados gradativamente por toda a Alemanha. Regulações em relação à estocagem de cocaína e à venda da droga segundo a legislação de 1921, e apesar de alguns debates para separar a cocaína dos opiáceos, ela foi incluída nos controles restritivos impostos às farmácias. Após 1924, a venda da cocaína em pó foi proibida nas farmácias. Foi estimado que o consumo de cocaína atingiu seu pico em 1927, e rapidamente caiu em seguida. Em 29 de dezembro de 1932, apenas um mês antes da tomada de poder pelos nazistas, o chefe do Departamento de Saúde do Reich no Ministério do Interior escreveu, “Para o conhecimento do Departamento de Saúde do Reich, não há comércio ilegal de drogas (nem opiáceos nem cocaína) em Berlim em uma quantidade considerável que possa colocar em risco a saúde pública. As circunstâncias em relação a isto mudaram completamente nos últimos anos.”

Apesar das afirmações de uma “epidemia de cocaína” em Berlim, o número de viciados deve ter sido baixo. Desde que números para este período são raros de se conseguir, podemos somente deduzir a taxa de consumo obtida da informação coligida após a chegada dos nazistas ao poder. Em 10 de outubro de 1937, o delegado Thomas relatou em um discurso feito em Stettin que havia 300 viciados em cocaína registrados na Alemanha; seu número não havia crescido desde 1932. A afirmação de Thomas recebeu alguns reforços da opinião do delegado Kosmehl que até 1942, havia somente 465 casos conhecidos de vício. Considerando que massas de viciados em drogas não desaparecem nem foram miraculosamente curadas destro de um período de apenas cinco anos, podemos concluir que apesar da onda de cocaína nos meados dos anos 1920, o vício permaneceu baixo. Se houvesse um programa governamental que sumisse com ou curasse os viciados, ele não passaria despercebido.

Nem todas as drogas populares na Alemanha tinham origens alemãs. O Dr. Nagayoshi Nagai, um químico japonês, sintetizou primeiramente a metamfetamina em 1888 e publicou suas descobertas em 1893; em 1940, havia 24 tipos de metamfetaminas disponíveis no mercado asiático. A companhia alemã Temmler-Werke em Berlim produziu esta droga pela primeira vez em 1938, e garantiu seu domínio no mercado internacional através da patente da droga na Grã-Bretanha, França e Alemanha sob o nome de “pervitin” (fenilmetilaminopropano). Em 1942, Kosmehl notou que havia 84 viciados em pervitin nos registros policiais. A Alemanha nazista foi provavelmente o primeiro país do mundo a regular a metamfetamina, mas nunca a baniu. As tropas, especialmente pilotos e tripulações de tanques, recebiam a droga sob várias formas para melhorar seu desempenho sob condições de pressão. À medida que a guerra tornou-se mais violenta, as autoridades alemãs perceberam os perigos da droga e impuseram mais controles. Um debate seguiu-se entre os especialistas em relação aos efeitos do pervitin e, em 25 de outubro de 1941, o serviço médico da Luftwaffe estabeleceu que o pervitin estivesse entre as drogas “mantidas sob extrema vigilância.” A droga, entretanto, continuou sendo usada pelos pilotos e tropas terrestres antes de missões perigosas.

Os historiadores frequentemente afirmam que os nazistas conduziam experimentos em prisioneiros com drogas ilegais. Isto é um anacronismo, já que o pervitin era legal na época. O crime não foi o uso de drogas ilegais nos experimentos, mas experimentá-las em seres humanos sem o seu consentimento, independentemente delas serem legais ou não. Os nazistas fizeram experimentos com drogas, e mesmo obrigaram prisioneiros dos campos de concentração a participar destes experimentos; contudo, as razões destes experimentos dificilmente tinham a ver com a ideologia, e sim por motivos forenses. A escolha das cobaias, os internos do campo, para experiências com o pervitin era certamente guiada por ideias biológicas ou de higiene racial, mas o objetivo da pesquisa não tinha nada a ver com a visão de mundo do nacional socialismo.

As leis de fármacos alemãs eram divididas em dois grupos: aquelas que governavam o tráfico de drogas e comércio, e aquelas que governavam a prescrição de drogas. As primeiras eram geralmente empregadas contra traficantes ou regulavam a distribuição comercial legal, enquanto que as últimas eram empregadas contra usuários ou comércio regulado. O consumo de qualquer droga era legal, mas a posse sem prescrição era proibida. Isto explica por que quando o serviço de segurança nazista (SD) prendeu um trabalhador búlgaro em Halle por tráfico de haxixe, ele foi acusado de contrabando e não por outro motivo. Embora o uso de drogas nunca tenha sido considerado um crime, a posse era e tinha um considerável peso no status legal dos usuários de drogas e viciados no Terceiro Reich.

A regulação em relação à venda era baseada nos antiquados procedimentos de prescrição emitidos em 1872, permitindo que os farmacêuticos vendessem drogas em suas lojas por motivos médicos com prescrição médica. O sistema legal não era de modo algum coerente, já que certas drogas eram reguladas sob leis farmacêuticas, algumas eram reguladas sob leis de tóxicos e outras ainda eram controladas pela lei pertencente ao comércio de fármacos; mas ela continuou a funcionar até a Primeira Guerra Mundial. Apesar de sua incoerência, o sistema funcionava. O país não tinha uma epidemia de drogas. Farmacêuticos, ao invés de serem caçados pelas autoridades, tornaram-se altamente profissionais e a indústria alemã prosperou.

Após a guerra, a Alemanha sofreu inflação séria acompanhada de escassez de materiais, mas as companhias farmacêuticas não tinham capacidade produtiva que absorvesse a demanda doméstica. Consequentemente, o contrabando de drogas na Alemanha era um problema sério durante os anos da República de Weimar. O representante britânico para o Comitê de Consulta do Ópio, Sir Malcolm Delevigne, escreveu em 1926: “A Alemanha está longe de ter controle na questão do tráfico ilícito de drogas; mas o uso de rótulos forjados em uma escala maciça (muitos deles parecem provir de fontes japonesas) dá ao governo e fabricantes alemães um meio de defesa.”

Durante o Império e a República que o substituiu, as cortes alemãs somente podiam condenar os usuários de drogas e viciados por estarem de posse de quantidades de drogas acima das quantidades recomendadas por prescrição, falsificação ou roubo de receitas médicas ou possuir drogas sem prescrições. Houve casos em que médicos foram condenados por prescrever excesso de drogas para si mesmos e para pacientes, assim prejudicando sua própria saúde e a de seus pacientes; porém, a droga permaneceu legal. Nenhuma lei jamais foi aprovada proibindo o uso de qualquer droga na Alemanha.

Entre 1919 e 1928, cinco leis antidrogas e decretos foram aprovados. Em 1928, um guia para as leis de narcóticos foi publicado na Alemanha por Louis Lewin e pelo jurista Wenzel Goldbaum no qual eles diziam que o uso ilegal de drogas ou o mau uso de receitas médicas conduziam à punição máxima de três anos na cadeia e uma multa. Os dois insistia, contudo, que viciados eram doentes e não criminosos; portanto, eles tinham a proteção do código penal, que lidava com a culpabilidade criminal. Viciados, de acordo com Lewin e Goldbaum, não eram responsáveis por suas ações enquanto estivessem sob a ação dos narcóticos e poderiam receber tratamento ao invés de uma sentença de cadeia. Os juízes frequentemente concordavam com esta posição, mas foram incapazes de obrigar o tratamento e ficaram conhecidos por libertar criminosos despreparados para enfrentar um tribunal. A proteção de bêbados e criminosos não-viciados existia no Código Penal alemão desde a sua criação. Uma demanda por uma reforma penal foi sentida na virada do século e tentativas foram feitas de dar aos juízes melhores ferramentas jurídicas para lidar com tais casos. Tais reformas falharam em serem implementadas nos anos da República de Weimar.

Em 20 de maio de 1933, Wilhelm Frick, o Ministro do Interior nazista, enviou uma carta a Hitler clamando por uma legislação para a segunda emenda da Lei do Ópio, em virtude da recente descoberta de tráfico ilegal de benzilmorfina de Hamburgo para a Europa Oriental. Frick notou que ele ordenaria à polícia para tratar do problema em Hamburgo com severidade no sentido de mostrar ao mundo que não havia conexão entre a indústria farmacêutica alemã com o contrabando ilegal de drogas.

Após a ascensão dos nazistas ao poder, a Lei do Ópio recebeu dezesseis emendas, acrescentando novas drogas às listas tanto por lei quanto por decreto. Os fundamentos da Lei de 1929 permaneceram e nenhuma droga foi banida, ou seu uso restrito mais do que já era aceitável no decreto de prescrição de 1930. Nenhuma das leis antidrogas ou emendas carregavam qualquer traço da ideologia nazista. As políticas raciais falharam em se infiltrar nas leis antidrogas, mas a retórica da higiene racial se infiltrou na reforma do código penal, que influenciou a política de drogas no Terceiro Reich.

Desde que não existe nada mais comum do que viciados consumindo suas drogas preferenciais, é lógico que viciados foram enviados a campos de concentração à vontade; mas não existem registros deste fato. De fato, vício em drogas nunca foi relatado em qualquer campo de concentração ou prisão. Apesar do fato de que a polícia recebeu carta branca para se livrar dos viciados, ela se recusou a fazê-lo. Por quê? Uma resposta poderia ser encontrada naquilo que pareceria ser um simples argumento semântico. O uso de drogas nunca foi um crime na Alemanha; assim, os habituais usuários, ou viciados, não eram criminosos. Portanto, eles não eram considerados criminosos habituais e não poderiam ser enviados aos campos de concentração.  

A criação da unidade antidrogas do Reich coincidiu com uma grande reforma burocrática nazista, centralizando a autoridade policial em Berlim sob a responsabilidade de agências centrais contra crimes específicos. Ao todo, eram onze unidades, mas somente uma tinha a palavra “transgressão” (Vergehen) em seu nome, ao invés de crime (Verbrechen), a agência central do Reich para combate da transgressão das drogas. Após um atraso, a nova unidade foi oficialmente criada em 21 de novembro de 1935, com dezenove estações de coleta de dados e 64 postos de inteligência, com mais dois acrescentados durante a guerra. No quartel-general havia provavelmente onze policiais e funcionários administrativos. A função da nova unidade era reunir informações das várias estações policiais, manter um fichário de todos os viciados e criminosos conhecidos, coordenar esforços contra o tráfico de drogas (incluindo aí a troca de informações com outras policiais em vários países) e garantir o cumprimento da lei do Ópio de 1929 e o Decreto das Prescrições de 1930. Mas, de fato, a unidade agia mais como um parasita nas delegacias da polícia normal, extraindo informações de seus arquivos.         

Gerhart Feuerstein, pertencente ao grupo de combate às drogas, erroneamente disse em uma conferência que aconteceu em Stettin em 10 de outubro de 1937 que a Lei das Medidas de Proteção e Correção permitiam aos tribunais impor a hospitalização de viciados por até três anos em um sanatório ou seis meses em um programa de reabilitação. De fato, os tribunais poderiam enviar um viciado a um sanatório por tempo indeterminado, dependendo de julgamento profissional, se o viciado estava curado ou não. Entretanto, a maioria dos sanatórios liberava seus pacientes após um tratamento de seis meses. O escritório do promotor público era responsável por manter vigilância sobre o viciado se ele retornou ou não aos velhos hábitos. Se a recaída aconteceu, não havia necessidade de uma ordem judicial adicional. De acordo com os regulamentos do escritório do promotor público, a vigilância era encerrada após cinco anos desde a última visita do paciente ao sanatório, apesar de que o escritório encerrava em geral essa atividade muito mais cedo. Estes sanatórios não eram apenas clínicas. Em algumas alas, aqueles que não se ajustariam a uma vida normal eram exterminados ou deixados para morrer de fome; mas ainda está para ser provado que os viciados eram enviados para esses locais de extermínio*.        

Jonathan Lewy é professor do Centro Richard Koebner para História Alemã na Universidade Hebraica de Jerusalém.

Nota:

* Na falta de provas materiais, assume-se que os nazistas matavam seus prisioneiros.


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