segunda-feira, 24 de abril de 2017

Genocídio Armênio: Um outro holocausto

Leonardo Mourão e Alexandre Rodrigues



Quem digitar “genocídio armênio” em um site de buscas na internet deve se preparar, antes de apertar a tecla enter, para encontrar imagens de uma violência e crueldade grotescas. Os sites irão mostrar um inferno de horrores: pessoas mutiladas, crianças que são só pele e ossos agonizando, cabeças decapitadas e espetadas em pedaços de pau, filas intermináveis de mulheres e seus filhos fugindo a pé pelo deserto, corpos pendurados em forcas, pilhas gigantescas de cadáveres...

Seria desrespeitoso e historicamente incorreto comparar o genocídio sofrido pelos armênios com massacres cometidos contra outros povos ao longo do século passado. Mas a selvageria com que os turcos, em alguns momentos auxiliados pelos curdos, perseguiram e assassinaram os armênios surpreende até mesmo quem está familiarizado com a descrição de outros crimes contra a humanidade.

Por quase três décadas, de 1895 a 1922, episódios de perseguições, assassinatos em massa e deportações se sucederam em diferentes regiões da Turquia. Mas é a partir de 24 de abril de 1915 que teve início uma desenfreada matança que, em semanas, provocou a morte de 1,4 milhão dos 2,1 milhões de armênios, de acordo com dados do Patriarcado Armênio. É como se apenas os moradores do Nordeste sobrevivessem a um massacre que trucidasse os brasileiros.

Jovens turcos

A matança dos armênios soa ainda mais absurda pelo fato de essa nacionalidade ser parte integrante do dia a dia do então Império Otomano, que englobava, além da Turquia e Armênia, partes do Líbano, Síria, Iraque e Palestina. Embora tivessem seu próprio país, e alguns entre eles reivindicassem sua autonomia, há vários séculos os armênios viviam nas cidades do império. Eram funcionários públicos, professores, policiais, comerciantes, jornalistas, soldados do Exército, médicos, sapateiros,advogados, donas de casa, artistas, que dividiam sua vida diária com os vizinhos turcos. Contra eles se ergueu principalmente o panturquismo, o nacionalismo radical defendido pelos Jovens Turcos, vertente política que havia tomado o poder no Império em 1908.

À frente do governo dos Jovens Turcos estavam três paxás. Entre eles, Mehmed Talaat Pasha foi o mais ativo idealizador e executor do genocídio. Foi ele, ainda no posto de ministro do Interior, quem ordenou, no fatídico 24 de abril de 1915, a prisão e a execução de 250 intelectuais e líderes armênios que viviam na então capital Constantinopla (a atual Istambul). Entre eles estava toda a redação do jornal Azadamart, o principal órgão de comunicação em língua armênia no império.

Cinco semanas depois, Talaat proporia a Lei de Deportação Temporária, que seria a luz verde para o grande genocídio que, de resto, já vinha sendo gestado desde outubro do ano anterior, quando os otomanos entraram em guerra contra a Rússia e perderam de maneira espetacular sua primeira batalha.

Como parte do povo armênio vivia em território russo – 1,7 milhão na Rússia e 2 milhões em terras do império –, o governo dos Jovens Turcos colocou todos no mesmo saco e acusou os armênios de traírem a Turquia.

Tal argumento seria usado ao longo dos anos para justificar o genocídio como consequência dos combates da Primeira Guerra, e não uma matança planejada. Mas uma das provas apontadas pelos armênios de que em Constantinopla o genocídio fazia parte de um plano elaborado é “uma medida insólita” tomada pelo governo: todos os soldados e policiais armênios a serviço do império foram desarmados. “As consequências dessa medida são fáceis de imaginar, procura-se prevenir assim qualquer resistência à execução que virá”, escreveu o teólogo brasileiro Aharon Sapsezian autor de História da Armênia – Drama e Esperança de uma Nação.

E o que veio foram ordens de Constantinopla, “seguindo um programa preciso”, conforme esclarece relatório elaborado pelo Tribunal Permanente dos Povos, de deportar os moradores das províncias da Armênia. Para onde? Não se sabia e não importava. Tinham de deixar o país. A elaboração do plano ficou a cargo do Comitê União e Progresso, em Constantinopla, que fornecia armas, veículos e apoio à SO, ou “organização especial”, que executava as ordens. A SO tinha poderes para demitir os funcionários que não concordassem com as medidas contra os armênios.

Deportações

As ordens de deportação eram anunciadas publicamente, as famílias tinham dois dias para juntar seus pertences. Padres, políticos e jovens armênios eram obrigados a assinar confissões forjadas e em seguida executados.

Idosos, mulheres e crianças tinham, no início do genocídio, direito a serem transportados em comboios. Depois, atravessavam a pé o deserto da Mesopotâmia, onde é hoje o noroeste do Iraque. Há relatos de que barcos repletos de armênios eram afundados no Mar Negro e Rio Tigre. Nas aldeias remotas, onde havia poucas testemunhas, foi muito pior. Mulheres eram estupradas, crianças, crucificadas e milhares enforcados ou decapitados por soldados do Exército, policiais e membros da SO. Com seus proprietários expulsos, as casas eram vendidas, os pertences saqueados. Outras vezes, queimavam-se as residências com os moradores dentro.

Em uma foto da época tirada no deserto, a caminho dos campos de concentração em Alepo, hoje cidade síria, pode-se ver mulheres e crianças andando em fila e, ao seu lado, um soldado carregado de mantas e outros objetos que lhes roubou. Não havia água ou comida para todos. Milhares andavam até cair e morrer magros como esqueletos. Raros são os descendentes de armênios que não tiveram bisavôs, avôs, pais ou mesmo irmãos assassinados. 

A diáspora espalhou armênios por todo o Ocidente. Dos 7 milhões atuais, estima-se que 4 milhões estejam fora da Armênia. O Brasil é um dos países que receberam grande número de imigrantes, que hoje já estão na terceira geração por aqui. “Sou filha da diáspora”, diz Sossi Amiralian, doutora em Literatura Armênia pela USP, nascida no Líbano, onde a família havia se refugiado. “Meus pais viveram o genocídio de perto. Os dois perderam seus pais”, conta. O avô paterno de Sossi, Levon Amiralian, era influente na cidade de Marach. Pelo lado materno, Mardiros Kehiaian vivia em Adana. As duas cidades foram especialmente atingidas pelos genocidas. “Não conheci meus avós, foram decapitados quando meus pais ainda eram crianças.”

Joias costuradas

O pai de Sossi, Garabad, e a avó dela tiveram sorte, seu tio-avô tinha amizade com algumas autoridades turcas que se apiedaram da família e lhes providenciaram transporte seguro. Não fosse isso, afirma Sossi, não haveria como resistir aos turcos. “Os armênios não tinham armas; minha avó contava que para defender seus filhos deixava permanentemente uma panela de água fervente com pimenta sobre o fogão. Caso fosse atacada lançaria aquela mistura nos soldados.”

Outras mães não tiveram nem mesmo a oportunidade de tentar se defender. Flora Kuyumjian demorou décadas até conseguir contar para seus netos como foi o ataque à sua casa. Depois de agarrarem seu marido, Minas, e o levarem para fora, degolaram seus dois filhos diante dos seus olhos. O bebê recém-nascido que estava em seus braços lhe foi tomado e afogado na bacia de água na qual lavava a roupa. “Ela levou um golpe no pescoço e desmaiou, quando acordou estava boiando no mar e foi recolhida por uma família de turcos que a tomaram como escrava, para cuidar da sua filha”, conta a diretora de arte Moema Kuyumjian, sua neta.Flora não ficou mais do que dois dias junto com os seus algozes. Cristã convicta, como a grande maioria dos armênios, fugiu atormentada pela ideia obsessiva que vinha à sua cabeça de matar por vingança a criança sob os seus cuidados. Se não tinha sobre o fogão uma panela de água fervente para defender-se contra seus agressores, Flora tomara outros cuidados para enfrentar aquele genocídio que se anunciava havia algum tempo. Na barra da sua saia, costurou as poucas joias que possuía. Foi com elas que subornou um soldado turco para chegar à Síria. Ali, mendigou e sobreviveu comendo restos de feira. Um dia encontrou-se por acaso com o marido, Minas, também vagando como pedinte.

Flora lembrava que seu sofrimento a havia feito tão dura que não chorou nem se emocionou. Com o tempo, tiveram outros dois filhos. “Ela os batizou Arthur e Eduardo, que foi o meu pai”, diz Moema. “Os mesmos nomes dos dois filhos assassinados pelos turcos.” Da Síria, Minas e Flora passaram ao Líbano, onde a família conseguiu passaportes. Vieram para o Brasil e se estabeleceram em São José do Rio Preto, São Paulo, em 1926.

Sem reconhecimento

Centenas de milhares de armênios não tiveram tanta “sorte” quanto os pais e avós de Sossi e Moema. Após o genocídio, na porção da Armênia em território turco quase já não havia mais armênios. Os que viviam no lado russo sofreram menos com os ataques. A derrota final na Primeira Guerra, em 1918, depôs o governo dos Jovens Turcos e desmantelou o Império Otomano. O Estado armênio seria reconhecido pela Turquia. Mas as matanças ainda se repetiriam até os primeiros anos da década de 20.

O governo turco tem dificuldade em admitir publicamente que houve, em 1915, um genocídio planejado e conduzido oficialmente, semelhante ao Holocausto que foi promovido pelo governo nazista alemão contra os judeus na Segunda Guerra. Entre os argumentos oficiais está o de que o êxodo e a morte de centenas de milhares de armênios seria um efeito colateral das batalhas e da divisão europeia na Primeira Guerra. Os defensores de que de fato houve um genocídio liderado pelo governo do Império Otomano alegam, e divulgam, o conteúdo de comunicação do governo instruindo sobre como deveria ser feita a eliminação dos armênios.

Em seu História da Armênia, Aharon Sapsezian cita o livro Memórias, escrito pelo jornalista armênio Naim Bey, que, segundo Sapsezian, era o responsável por receber em Alepo seus compatriotas refugiados. O jornalista reproduz em seu livro, publicado em 1920, documentos oficiais que teriam sido enviados pelo ministro do Interior, Talaat Pasha, ao prefeito de Alepo. Um deles: “O governo decidiu exterminar os armênios habitantes na Turquia. Aqueles que se opuserem a essa ordem e decisão não poderão integrar o quadro governamental. Sem nenhuma consideração, nem mesmo pelas crianças, mulheres ou pelos enfermos, por mais trágicos que sejam os meios de exterminação utilizados, e sem se deixar levar pelos apelos da consciência, é preciso pôr termo à sua existência”.

Linha do tempo

Violência começou no século 19 manifestação pacífica foi estopim para 25 anos de perseguições e matanças

1895
30 DE SETEMBRO
Manifestação em Constantinopla contra o governo termina em violência. Dezenas de armênios são mortos pela polícia. Ataques se estendem e milhares de armênios morrem pelo país.

1896
Incitados pelo governo, curdos e soldados do Exército turco atacam e saqueiam aldeias na Armênia. Mais de 20 mil mortos pelas armas ou pela fome. Em Constantinopla, atualmente Instambul, os armênios trucidados chegam a 6 mil.

1908
24 DE JULHO
Um grupo de reformadores nacionalistas, autodenominado “Os Jovens Turcos”, chega ao poder anunciando a intenção de “turquizar” o país, senha para subjugar as minorias do Império Otomano que lutam por independência.

1909
6 DE ABRIL
Uma briga de rua entre turcos e um armênio em Adana, cidade da região da Cilícia (enclave armênio no litoral turco no Mediterrâneo) transforma-se em dez dias de
carnificina e saques, matando 30 mil, quase todos armênios.

1914
28 DE OUTUBRO
O Império Otomano bombardeia portos russos no Mar Negro e entra na Primeira Guerra. Armênios que viviam na Rússia se voltam contra os otomanos.

11 DE NOVEMBRO
Autoridades religiosas islâmicas decretam uma jihad contra Inglaterra, França e Rússia. Os armênios, cristãos, vistos como aliados dos russos, são perseguidos.
A vila de Otsni é atacada. Um padre e um grupo de armênios são os primeiros mortos na jihad.

1915
JANEIRO
O governo turco determina que todos os soldados e policiais armênios a seu serviço sejam desarmados.

31 DE MARÇO
Começam as deportações. O primeiro grupo de armênios é obrigado a deixar a cidade de Zeitun e caminhar através do Deserto de Konia até Der-el-Zor, na Síria.

17 DE ABRIL
Forças turcas e curdas cercam a cidade de Van, fortaleza medieval e bastião armênio na Anatólia, que se recusa a enviar 4 mil voluntários para lutar pela Turquia – há o temor de que serão mortos. Estima-se que 50 mil armênios morreram nos combates que se seguiram.

24 DE ABRIL
Um grupo de 250 intelectuais e líderes armênios é preso pelo governo em Constantinopla. São levados para campos de prisioneiros no deserto e executados. A data é lembrada pelos armênios como o marco inicial do genocídio.

6 DE MAIO
Uma nova lei determina que refugiados turcos ficarão com as propriedades dos armênios expulsos.

12 DE MAIO
Doze mil soldados armênios são massacrados pelo próprio Exército turco a que serviam, em um vilarejo próximo de Diarbekir.

27 DE MAIO
É promulgada a Lei Temporária de Deportações de “Pessoas Suspeitas”. Os governantes re gionais e a polícia são encarregados da limpeza étnica, que atinge os armênios indiscriminadamente. O genocídio se aprofunda.

6 DE MAIO
O Exército russo invade a Anatólia, socorrendo os armênios, mas fica só até 4 de agosto, deixando a defesa de Van mais uma vez para a população local.

15 DE JUNHO
Em praça pública, 21 líderes do partido armênio Hnchukyan são enforcados em Constantinopla.

15 DE SETEMBRO
Após meses de deportações em massa em toda a Turquia, o ministro do Interior, paxá Talaat, envia telegrama a Alepo determinando a remoção e eliminação dos
armênios locais.

1916
6 DE JULHO
Forças russas ocupam novamente a Anatólia, lutando ao lado dos armênios e rechaçando as tropas otomanas. No entanto, a maioria da população local já foi morta ou deportada a essa altura.

1918
3 DE MARÇO
Pelo Tratado de Brest-Litovsk, que decreta a paz entre os dois países, a Rússia aceita que a Armênia continue parte da Turquia em troca da proteção da população local.

12 DE MARÇO
Paxá Enver, ministro da Guerra do Império Otomano e um dos instigadores do genocídio, ordena o assassinato em 48 horas de todos os civis armênios com mais de 5 anos de idade.

5 DE ABRIL
A Turquia reocupa Van, que vinha sendo cogitada para fazer parte de uma futura Armênia nas negociações após a Primeira Guerra Mundial. Os armênios “pacíficos” são autorizados a voltar à Anatólia.

26 DE JUNHO
O governo turco condena, de uma vez, 16 mil armênios a trabalhos forçados. Os massacres de milhares de pessoas a cada vez continuam.

26 DE OUTUBRO
Tropas aliadas ocupam a cidade de Alepo, salvando 125 mil armênios de morrerem de fome no deserto. Mas 30 mil armênios são mortos na cidade de Baku.

30 DE OUTUBRO
O Império Otomano se rende aos Aliados. Os três paxás que planejaram o massacre armênio fogem do país. O Parlamento turco cobra uma investigação pelos crimes de guerra.

1919
1° DE FEVEREIRO
Corte Marcial é instalada em Constantinopla para julgar crimes contra as minorias do país. Autoridades e chefes militares são enforcados em público ou se suicidam.

1920
5 DE FEVEREIRO
As matanças em massa retornam. Dez mil armênios são mortos em Marash.

10 DE AGOSTO
A Turquia reconhece, temporariamente, a Armênia como país independente.

1921
18 DE JANEIRO
O governo cancela a Corte Marcial. Vários responsáveis pelos massacres são liberados ou voltam ao país após o exílio.

1922
9 DE SETEMBRO
Em meio à guerra entre Grécia e Turquia, Smyrna, na Anatólia, a milhares de quilômetros, é atacada pelo Exército turco. Armênios e gregos são chacinados e suas casas, saqueadas e incendiadas.

1923
24 DE JULHO
No Tratado de Lausanne, que reconhece a sua independência, a Turquia se compromete a proteger suas minorias, mas a Armênia turca continua sob a posse do país. É o fim oficial da perseguição.

1984
15 DE ABRIL
O Tribunal Permanente dos Povos decide que o governo turco é responsável pelo genocídio de dois terços dos 2 milhões de armênios que viviam no país, nos massacres
de 1915.

1987
18 DE JUNHO
O Parlamento Europeu, em uma decisão histórica, exorta o governo turco a reconhecer o genocídio perpetrado contra os armênios.


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domingo, 23 de abril de 2017

Lua vermelha: O programa lunar ultrassecreto dos soviéticos

Salvador Nogueira


Milhões de pessoas acompanham pela televisão. Uma imagem embaçada mostra um homem em traje espacial, prestes a descer o último degrau de uma escada. Em meio aos chuviscos em preto-e-branco, caracteres indicam que se trata de uma transmissão ao vivo da superfície da Lua. O sujeito desce o último degrau e imprime a primeira pegada humana naquele corpo celeste. Suas palavras ficam eternizadas: “Odin malen’kii shag dlya cheloveka, gigantskii pryzhok dlya chelovechestva”. Naquele ano, 1968, o cosmonauta soviético Alexei Leonov se tornava, finalmente, o primeiro homem a caminhar sobre a Lua.

Tanto faz se a cena elevou seu espírito ou fez torcer seu estômago, por pouco ela não foi fictícia. Veja como os soviéticos chutaram para a Lua e bateram na trave.

Acobertamento

A frase no primeiro parágrafo é a versão em russo para a célebre “um pequeno passo para o homem, um gigantesco salto para a humanidade”, dita no bom e velho inglês pelo norte-americano Neil Armstrong, em 20 de julho de 1969. Pouca gente sabe o quão perto ela chegou a ser dita. Pouca gente mesmo. Pois até o fim da União Soviética, os esforços – e os fracassos – dos russos para colocar um homem na Lua antes dos americanos permaneceram como um dos maiores segredos da Guerra Fria.

Para todos os efeitos, os soviéticos não estavam nem aí para pousar na Lua e diziam que isso não serviria para quase nada, cientificamente falando. Pura balela. O acesso aos arquivos do programa espacial soviético, depois da queda, confirmou uma antiga desconfiança dos historiadores de que o governo comunista não só tentou fazer o primeiro pouso na Lua, como falhou feio. 

“Havia algumas pistas de que esse programa estava sendo preparado”, lembra Alexander Sukhanov, físico do Instituto de Pesquisas Espaciais da Rússia, o IKI. “Por exemplo, eu me lembro de uma entrevista com cosmonautas soviéticos no fim de 1965. Uma das perguntas era: ‘Astronautas americanos pousarão na Lua no ano de 196x. Quando os cosmonautas soviéticos irão pousar?’. E Alexei Leonov respondeu: ‘No ano de 196x menos 1’”. Foi aplaudido de pé. O cosmonauta Leonov havia se tornado um dos principais nomes da história do programa espacial soviético quando, em 18 de março daquele ano, deixou sua nave, a Voskhod, e se tornou o primeiro homem a “caminhar” no espaço.

Mas o que na época pareceu pura fanfarronice de Leonov pode mesmo ter sido uma indiscrição do herói soviético, já que, em 1965, o programa soviético para colocar um homem na Lua estava em andamento. E era secretíssimo. O engenheiro aeroespacial Sergei Korolev, a maior figura dos bastidores do programa espacial russo, trabalhava pessoalmente, desde 1963, num desenho de nave espacial que servisse para uma visita à Lua. Korolev liderara um grupo de cientistas e assistentes num escritório supersecreto identificado apenas pelo código OKB-1. Ali, ele criou o míssil R-7, que serviu como lançador para os pioneiros satélites artificiais soviéticos (os primeiros do mundo), a começar pelo Sputnik-1, em 1957. O R-7 foi mais tarde adaptado para colocar em órbita espaçonaves tripuladas, como a Vostok (que levou Yuri Gagarin a se tornar o primeiro a entrar em órbita da Terra, em abril de 1961) e a Voskhod (de Alexei Leonov). Em 1964, Korolev trabalhava no projeto do veículo tripulado Soyuz – que até hoje está em operação, servindo à Estação Espacial Internacional.

Em 3 de agosto daquele ano, o Partido Comunista oficializou a criação do programa conhecido simplesmente como N-1/L-3. Desmembrando as siglas: “O N-1 referia-se ao plano para a construção de grandes foguetes para colocação em órbita de objetos e naves maiores”, explica o ex-cosmonauta Anatoly Berezovoy, que passou 211 dias no espaço no início dos anos 1980, como comandante da estação russa Salyut-7. “Com a designação L existiam os modelos L-1, L-2 e L-3. O L-1 era uma nave tripulada que apenas contornaria a Lua, enquanto os artefatos da série L-2 e L-3 seriam usados para colocar nossos cosmonautas na Lua.”

Espaçonave L1


As espaçonaves do tipo L-1 eram versões ligeiramente encolhidas da Soyuz, que podiam ser lançadas com os foguetes já disponíveis na União Soviética em 1964, como o Proton. Mas as naves L-2 e L-3 precisariam esperar pelo desenvolvimento do gigante N-1. A L-2 era uma espécie de Soyuz vitaminada, capaz de transportar dois cosmonautas até a órbita lunar, fazendo as vezes da cápsula Apollo americana. O L-3 era um módulo de pouso com capacidade para apenas um cosmonauta, que teria de descer sozinho até a Lua. Os planos previam os primeiros vôos-teste para 1966 e as missões reais seriam conduzidas entre 1967 e 1968.


Módulo de Descida LK 


Hoje, até os especialistas russos concordam que o plano soviético era cheio de falhas e muito arriscado. “A arquitetura da L-2 era mais frágil que a do rival americano. Comparado com o Apollo, aquele não era um bom programa”, afirma Sukhanov. “O lançador N-1 era menos poderoso que o Saturn V e só podia lançar cerca de 90 toneladas em órbita terrestre baixa. Portanto, a espaçonave lunar teria de ser menor e mais leve que a americana, o que tornaria a descida arriscada demais.” Mas até 1965 ninguém – dentro ou fora da União Soviética – pensava assim. A idéia por trás do programa era apenas chegar lá primeiro, não chegar lá melhor, então qualquer esforço – e risco – estava valendo. Afinal, os soviéticos permaneciam invictos na corrida espacial, não tendo perdido um único marco importante para os americanos.


Comparação entre o Saturno V e o foguete N-1

Desastre

No fim de 1965, porém, Sergei Korolev teve diagnosticado um câncer de cólon, foi internado, tratado e operado. Em janeiro de 1966, ele morreu sem ver um único teste de suas criações. Só em 23 de abril de 1967 partiu ao espaço a nave Soyuz-1, com Vladimir Komarov a bordo. A ideia era testar a operacionalidade do veículo na órbita terrestre. Após 18 voltas de um voo cheio de problemas, Komarov teve de dirigir o veículo manualmente de volta à atmosfera. Os pára-quedas da nave não se abriram e o cosmonauta se espatifou no chão. Era a primeira morte do programa soviético, e a partir dela ficou decidido que as naves teriam testes extensos sem tripulação antes que pudessem ser habilitadas a transportar humanos.

O programa do foguete N-1 continuava em desenvolvimento, mas os avanços eram lentos. Já o L-1 estava bem adiantado e em março de 1968 foi feito o primeiro teste com o veículo. O segundo, em 14 de setembro, ainda sem tripulação, conseguiu cumprir sua meta original e dar a volta ao redor da Lua, retornando em segurança.

Os americanos entenderam o recado e a Nasa tratou de redirecionar o lançamento da Apollo-8. Em dezembro daquele ano, naquela que era apenas sua segunda expedição, a espaçonave foi enviada em direção à Lua: era o terceiro lançamento do Saturn V e o primeiro com tripulação. Frank Borman, William Anders e James Lovell passaram 20 horas em órbita lunar e, na véspera do Natal, leram trechos da Bíblia ao vivo para o público que, pela televisão, acompanhava as inéditas fotos do “nascer da Terra”, visto da Lua.

A corrida para a Lua entrava em seu momento decisivo. No início de 1969, o gigante N-1 finalmente estava pronto para um vôo-teste. Às 9h18 da manhã do dia 21 de fevereiro, os supermotores foram ligados, com barulho ensurdecedor. O foguete se desprendeu da base e subiu, deixando atrás de si uma elipse de fumaça branca. O sonho durou 68,7 segundos, até que vibrações anômalas e um incêndio fizeram o comando abortar a missão e explodir o N-1, a 30 quilômetros de altitude. A falha ocorreu enquanto o foguete ainda estava acionando os motores de seu primeiro estágio. Ninguém saiu ferido. Uma segunda tentativa ainda seria conduzida em 3 de julho daquele ano, mas os resultados não foram muito diferentes. Depois de 50 segundos de vôo, o enorme N-1 ficou fora de controle e teve de ser destruído no ar.

Apenas 13 dias depois, partia do Centro Espacial Kennedy, na Flórida, o Saturn V que impulsionaria a Apollo-11 até a Lua. Em 20 de julho, Neil Armstrong e Edwin Buzz Aldrin fincariam a bandeira americana na superfície lunar, marcando a definitiva virada dos Estados Unidos na corrida espacial.

Para baixo do tapete

O N-1 passou por mais dois vôos-teste, em 1971 e 1972, mas ambos também terminaram em falhas, todas no primeiro estágio. Depois do pouso de Armstrong, os soviéticos jamais voltaram sequer a falar em missões lunares tripuladas e passaram a negar, em todas as oportunidades, que tivessem algum programa para o desembarque de humanos na Lua. Mas as consecutivas falhas do N-1 ainda hoje são motivo de polêmica na Rússia. Muitos atribuem a culpa à morte de Korolev, que deixou todos os projetos espaciais tripulados à deriva, até que outros à sua altura conseguissem tomar as rédeas. Mas há quem diga que foi uma atitude de Korolev em vida que condenou o N-1.

Segundo Vladimir Kurt, pesquisador do IKI e veterano de projetos espaciais na Rússia, motores muito potentes para o primeiro estágio do N-1 chegaram a ser desenvolvidos pelo escritório de Valentin P. Glushko, outro grande engenheiro aeroespacial da época de ouro da União Soviética. “No entanto, as relações entre Glushko e Korolev eram muito ruins, sei lá por que razão, e Korolev decidiu usar outros motores, com um sexto da potência dos de Glushko, para o primeiro estágio do N-1”, diz Kurt.

Para compensar os motores mais fracos, foi preciso aglutinar 32 deles. Seu funcionamento simultâneo foi o que causou as vibrações que levaram ao fracasso dos quatro lançamentos do grande foguete soviético. O projeto foi encerrado em 1974, quando Glushko assumiu o comando do OKB-1.

A Leonov, que, se o cronograma soviético tivesse sido cumprido, teria sido o primeiro a pisar na Lua (seu principal concorrente, Yuri Gagarin, morreu em 1968), sobrou um irônico prêmio de consolação: ele acabaria sendo o único soviético a orbitar a Lua, a bordo de uma espaçonave Apollo, durante uma missão conjunta de soviéticos e americanos, em julho de 1975.

Corrida lunática 

Os soviéticos saíram na frente, mas os norte-americanos chegaram primeiro

4/10/1957

A União Soviética lança o Sputnik-1, primeiro satélite artificial. Menos de um mês depois, o Sputnik-2 leva ao espaço a cadela Laika

12/4/1961

A bordo da Vostok-1, Yuri Gagarin completa uma volta em torno da Terra, em 104 minutos, tornando-se o primeiro homem no espaço

3/8/1964

A URSS cria o projeto N-1/L-3, liderado por Sergei Korolev, com o objetivo de pousar na Lua

2/3/1968

Soviéticos lançam o primeiro veículo L-1, sem tripulação. A nave deveria dar a volta ao redor da Lua, mas falhou

14/9/1968

O segundo veículo L-1 é lançado, de novo sem tripulação. Desta vez a nave consegue concluir com sucesso uma volta em torno da Lua

21 a 27/12/1968

A Nasa inverte os objetivos das missões Apollo-8 e 9, para garantir que os americanos fossem os primeiros a circundar a Lua. O sucesso vem com a Apollo-8, em plena véspera de Natal

21/2/1969

A União Soviética promove o primeiro vôo-teste de seu foguete lunar, o N-1. O esforço termina em fracasso após 68,7 segundos

18/5/1969

Decola da Flórida a Apollo-10, missão que foi até a Lua e ensaiou um pouso lunar, chegando a estar a meros 14 km da superfíciedo satélite

3/7/1969

O segundo teste do N-1 também fracassa. Após pouco mais de 50 segundos de vôo, o foguete foi destruído no ar

20/7/1969

Após um lançamento bem-sucedido quatro dias antes, Neil Armstrong e Edwin “Buzz” Aldrin se tornam os primeiros homens a caminhar na superfície lunar, com a missão Apollo-11. A disputa pela primazia estava encerrada

27/6/1971

Novo teste do N-1: fracasso no primeiro estágio

23/11/1972

Quarto e último vôo-teste do N-1: nova falha

11/12/1972

Os americanos pousam na Lua pela última vez, a bordo da Apollo-17

1974

Soviéticos desistem do N-1/L-3 e passam a negar que o programa de desembarque lunar tenha existido


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