Sempre foi uma história meio mal
contada, mas até hoje a maioria dos historiadores preferiu inocentar o povo
alemão em geral dos horrores propiciados pelo Estado nazista antes e,
sobretudo, durante a Segunda Guerra Mundial. A culpa, dizem eles, teria sido do
imenso aparato de propaganda alimentado por Adolf Hitler, a rudeza dos oficiais
da SS (a polícia de elite alemã) e os benefícios concedidos a uma minoria das
classes mais altas daquela sociedade, ainda traumatizada pela derrota e pela
crise subseqüente à Primeira Grande Guerra. A classe média alemã, eles sugerem,
estaria isenta de grandes responsabilidades pelas atrocidades – ou mesmo de ter
conhecimento do que se passava.
Alemães fizeram uma escolha em
interesse próprio
"Não", diz o historiador
alemão Götz Aly, da Universidade de Viena e membro-convidado do Instituto
Yad-Vashem, dedicado às vítimas do Holocausto. Para ele, Hitler conseguiu
cooptar a população alemã não com seus discursos manipuladores ou com a defesa
do ódio racial, mas oferecendo benefícios sem precedentes aos seus súditos mais
pobres. A tese é polêmica porque compartilha de forma mais “democrática” a
culpa pelos horrores perpetrados pelo governo alemão, e está reunida em O
Estado Popular de Hitler: Como o Nazismo Conquistou a Alemanha.
Ele resume assim seu objetivo: “Quero
fazer uma pergunta simples que nunca foi realmente respondida: como pôde ter
acontecido? Como os alemães permitiram e cometeram crimes de massa sem
precedentes, particularmente o genocídio dos judeus europeus?”. Sua resposta,
nada confortável, é que isso aconteceu porque a grande maioria do povo alemão foi
beneficiada pela matança e, por essa razão, permaneceu omissa aos crescentes
horrores do regime de Hitler.
Isso vai de encontro à versão mainstream de
que, com a derrocada do nazismo, os próprios alemães estavam se sentiram
libertados das mãos de um ditador sanguinário e elitista. Uma resposta muito
conveniente aos britânicos, americanos, cujas atrocidades são apagadas numa
aura de heroísmo, e os próprios alemães, que se livram da culpa de terem um dia
amado a Hitler. “Considero o regime nazista uma ditadura a serviço do povo”,
diz Aly. O período de guerra, que mostra claramente as outras características
do nazismo, fornece a melhor resposta à questão. “Hitler, os líderes regionais
de seu partido, o NSDAP, seus ministros, secretários de Estado e consultores
cumpriam o papel de demagogos tradicionais, constantemente se perguntando como
melhor garantir e consolidar a satisfação geral e comprando diariamente a
aprovação pública ou, ao menos, sua indiferença.”
Os documentos revelam que, durante seu
governo, Hitler jamais aumentou os impostos cobrados dos trabalhadores. “Para
reforçar a ilusão de que os benefícios estavam garantidos e provavelmente iriam
aumentar, Hitler fez com que a comunidade rural, os trabalhadores braçais e os
servidores civis de classe baixa ou média não fossem significativamente
afetados pelos impostos da guerra. A situação no Reino Unido e nos Estados
Unidos era bem diferente. Isentar a maioria dos contribuintes alemães
significava aumentar a carga tributária das parcelas da sociedade que tinham
grande receita.”
Dinheiro sujo
Mas a Segunda Guerra Mundial foi o
conflito mais caro jamais levado a cabo em toda a história. Simplesmente
aumentar os impostos sobre os alemães ricos não seria suficiente para conservar
o bom estado do Exército alemão. Então, de onde saiu o dinheiro para que o
Reich mantivesse sua sede de sangue? A única maneira de manter a máquina de
guerra alemã lubrificada e sustentar os benefícios sociais oferecidos sobretudo
aos “arianos” mais pobres, segundo Aly, era saquear e explorar de forma
predatória os recursos dos “inimigos”. Começou com o confisco de bens dos
judeus na Alemanha, depois passou à exploração de seu trabalho em regime de
escravidão e prosseguiu com a pilhagem dos países invadidos durante todo o
período que a guerra abrangeu.
Vasculhando arquivos secretos
nazistas, Aly descobriu que os alimentos e suprimentos roubados pelos alemães
da União Soviética entre 1941 e 1943 poderiam sustentar 21 milhões de pessoas.
Os prisioneiros de guerra soviéticos, nesse meio tempo, morriam de inanição.
Ainda segundo Aly, os soldados alemães eram encorajados a enviar regalos para
suas famílias, para conquistar mais apoio ao regime. De janeiro a março de
1943, os soldados alemães alocados na frente de batalha em Leningrado (hoje São
Petersburgo) enviaram uma soma de mais de 3 milhões de pacotes recheados de
obras de arte, objetos de valor e alimentos.
Hitler também usou estratégias mais
baratas e popularescas para manter sua população feliz com o governo. Por
exemplo, aumentou o número de feriados de forma significativa no país.
Resultado: de uma forma ou outra, cerca de 95% da população alemã se beneficiou
financeiramente com o sistema nacional-socialista. Por esse motivo, diz
friamente, Aly, ficou um tanto mais fácil para os alemães “não olharem”
enquanto os judeus eram sistematicamente assassinados em câmaras de gás e 2
milhões de prisioneiros de guerra soviéticos morriam de fome nas mãos dos
alemães.
Essa tese também ajudaria a explicar
por que Hitler manteve os esforços de guerra em múltiplas frentes, todas ao
mesmo tempo e em condições adversas – o sistema de manutenção das condições de
vida do povo alemão acabou por se tornar refém das pilhagens e dos avanços
sistemáticos do Exército. “Foi por isso que Hitler não pôde parar e se
vangloriar confortavelmente em seu papel vitorioso depois da rendição da
França, em 1940”, diz Aly. Parar por ali teria levado o Reich à falência,
depois dos esforços para impedir a redução da qualidade de vida dos alemães e a
desvalorização da moeda. “Dar e receber era a base na qual eles fundaram uma
ditadura endossada pela maioria.”
Alto lá!
A tese de Aly não convence todos os
acadêmicos. O historiador e economista J. Adam Tooze, da Universidade de
Cambridge, disse que seus cálculos não fechavam. “Se Aly pudesse provar que a
injeção financeira do exterior realmente tornou possível a redistribuição dos
custos de guerra, então sua tese seria muito convincente. Pelo menos três
gerações de economistas trabalharam nessa questão. Mas Aly faz as contas a seu
próprio modo”, diz Tooze, antes de concluir: “Descrever a sociedade da Alemanha
nazista como uma ditadura da complacência é não entender o que realmente
importa”.
Aly, por sua vez, sustenta que sua
metodologia de cálculo é sólida, embora admita que ainda haja “buracos” a serem
preenchidos por mais pesquisa “Meu livro contém um grande número de descrições
curtas e rascunhos, e estou certo de que essas questões que proponho serão
investigadas por meus colegas", diz. Ele deixa claro que, entre os alemães,
não havia uma admiração unânime pelo regime nazista. Ao contrário, muitos eram
críticos. Mas suas objeções, afogadas pela maré de apoio ao populista, não
foram suficientes para criar um verdadeiro movimento de resistência ao Reich
dentro do país. Hitler não só conseguiu ascender ao poder democraticamente, mas
também estabelecer uma ditadura capaz de “comprar” o apoio ou, pelo menos, o
silêncio do povo alemão, diante de tantas barbaridades e atrocidades.
Como o Führer paparicava a tropa
Uma das estratégias mais usadas por
Hitler para manter seus soldados concentrados e motivados para a guerra foi
oferecer grandes benefícios para eles e para suas famílias. Segundo o
levantamento de Götz Aly, as famílias dos membros das tropas mobilizadas
recebiam cerca de 85% da renda dada aos combatentes antes da guerra. Em países
aliados, como Reino Unido e Estados Unidos, esse valor não chegava nem a 50%.
Em muitos casos, as mulheres e as famílias dos soldados alemães passaram a ter
mais dinheiro depois do início da guerra do que tinham em época de paz, e elas
também foram beneficiadas pelas copiosas quantidades de “presentes” que os
soldados traziam de volta em suas licenças ou que chegavam dos países ocupados
pelo correio militar. Enquanto as pilhagens e os campos de trabalhos forçados
custeavam parte significativa do gasto de guerra alemão, aos países aliados
contra o Eixo (Alemanha-Itália-Japão) só restava buscar os recursos por meio de
aumento de impostos sobre suas próprias populações. Isso exigiu extrema
habilidade política de líderes como o primeiro-ministro britânico Winston
Churchill. Em 1940, após a rendição da vizinha França, o líder do Reino Unido
discursou para seus cidadãos, instruindo-os a “se preparar para nossos
deveres”, de modo que em mil anos os homens ainda digam: “Este foi o nosso
melhor momento”.
Tópicos Relacionados
Nenhum comentário:
Postar um comentário