Salvador Nogueira
Milhões de pessoas acompanham pela televisão. Uma
imagem embaçada mostra um homem em traje espacial, prestes a descer o último
degrau de uma escada. Em meio aos chuviscos em preto-e-branco, caracteres
indicam que se trata de uma transmissão ao vivo da superfície da Lua. O sujeito
desce o último degrau e imprime a primeira pegada humana naquele corpo celeste.
Suas palavras ficam eternizadas: “Odin malen’kii shag dlya cheloveka,
gigantskii pryzhok dlya chelovechestva”. Naquele ano, 1968, o cosmonauta soviético
Alexei Leonov se tornava, finalmente, o primeiro homem a caminhar sobre a Lua.
Tanto faz se a cena elevou seu espírito ou fez
torcer seu estômago, por pouco ela não foi fictícia. Veja como os soviéticos
chutaram para a Lua e bateram na trave.
Acobertamento
A frase no primeiro parágrafo é a versão em russo
para a célebre “um pequeno passo para o homem, um gigantesco salto para a
humanidade”, dita no bom e velho inglês pelo norte-americano Neil Armstrong, em
20 de julho de 1969. Pouca gente sabe o quão perto ela chegou a ser dita. Pouca
gente mesmo. Pois até o fim da União Soviética, os esforços – e os fracassos –
dos russos para colocar um homem na Lua antes dos americanos permaneceram como
um dos maiores segredos da Guerra Fria.
Para todos os efeitos, os soviéticos não estavam
nem aí para pousar na Lua e diziam que isso não serviria para quase nada,
cientificamente falando. Pura balela. O acesso aos arquivos do programa
espacial soviético, depois da queda, confirmou uma antiga desconfiança dos
historiadores de que o governo comunista não só tentou fazer o primeiro pouso
na Lua, como falhou feio.
“Havia algumas pistas de que esse programa estava
sendo preparado”, lembra Alexander Sukhanov, físico do Instituto de Pesquisas
Espaciais da Rússia, o IKI. “Por exemplo, eu me lembro de uma entrevista com
cosmonautas soviéticos no fim de 1965. Uma das perguntas era: ‘Astronautas
americanos pousarão na Lua no ano de 196x. Quando os cosmonautas soviéticos
irão pousar?’. E Alexei Leonov respondeu: ‘No ano de 196x menos 1’”. Foi
aplaudido de pé. O cosmonauta Leonov havia se tornado um dos principais nomes
da história do programa espacial soviético quando, em 18 de março daquele ano,
deixou sua nave, a Voskhod, e se tornou o primeiro homem a “caminhar” no
espaço.
Mas o que na época pareceu pura fanfarronice de
Leonov pode mesmo ter sido uma indiscrição do herói soviético, já que, em 1965,
o programa soviético para colocar um homem na Lua estava em andamento. E era
secretíssimo. O engenheiro aeroespacial Sergei Korolev, a maior figura dos
bastidores do programa espacial russo, trabalhava pessoalmente, desde 1963, num
desenho de nave espacial que servisse para uma visita à Lua. Korolev liderara
um grupo de cientistas e assistentes num escritório supersecreto identificado
apenas pelo código OKB-1. Ali, ele criou o míssil R-7, que serviu como lançador
para os pioneiros satélites artificiais soviéticos (os primeiros do mundo), a
começar pelo Sputnik-1, em 1957. O R-7 foi mais tarde adaptado para colocar em
órbita espaçonaves tripuladas, como a Vostok (que levou Yuri Gagarin a se
tornar o primeiro a entrar em órbita da Terra, em abril de 1961) e a Voskhod
(de Alexei Leonov). Em 1964, Korolev trabalhava no projeto do veículo tripulado
Soyuz – que até hoje está em operação, servindo à Estação Espacial
Internacional.
Em 3 de agosto daquele ano, o Partido Comunista
oficializou a criação do programa conhecido simplesmente como N-1/L-3.
Desmembrando as siglas: “O N-1 referia-se ao plano para a construção de grandes
foguetes para colocação em órbita de objetos e naves maiores”, explica o
ex-cosmonauta Anatoly Berezovoy, que passou 211 dias no espaço no início dos
anos 1980, como comandante da estação russa Salyut-7. “Com a designação L
existiam os modelos L-1, L-2 e L-3. O L-1 era uma nave tripulada que apenas
contornaria a Lua, enquanto os artefatos da série L-2 e L-3 seriam usados para
colocar nossos cosmonautas na Lua.”
Espaçonave L1
As espaçonaves do tipo L-1 eram versões
ligeiramente encolhidas da Soyuz, que podiam ser lançadas com os foguetes já
disponíveis na União Soviética em 1964, como o Proton. Mas as naves L-2 e L-3
precisariam esperar pelo desenvolvimento do gigante N-1. A L-2 era uma espécie
de Soyuz vitaminada, capaz de transportar dois cosmonautas até a órbita lunar,
fazendo as vezes da cápsula Apollo americana. O L-3 era um módulo de pouso com
capacidade para apenas um cosmonauta, que teria de descer sozinho até a Lua. Os
planos previam os primeiros vôos-teste para 1966 e as missões reais seriam
conduzidas entre 1967 e 1968.
Módulo de Descida LK
Hoje, até os especialistas russos concordam que o
plano soviético era cheio de falhas e muito arriscado. “A arquitetura da L-2
era mais frágil que a do rival americano. Comparado com o Apollo, aquele não
era um bom programa”, afirma Sukhanov. “O lançador N-1 era menos poderoso que o
Saturn V e só podia lançar cerca de 90 toneladas em órbita terrestre baixa.
Portanto, a espaçonave lunar teria de ser menor e mais leve que a americana, o
que tornaria a descida arriscada demais.” Mas até 1965 ninguém – dentro ou fora
da União Soviética – pensava assim. A idéia por trás do programa era apenas
chegar lá primeiro, não chegar lá melhor, então qualquer esforço – e risco –
estava valendo. Afinal, os soviéticos permaneciam invictos na corrida espacial,
não tendo perdido um único marco importante para os americanos.
Comparação entre o Saturno V e o foguete N-1
Desastre
No fim de 1965, porém, Sergei Korolev teve
diagnosticado um câncer de cólon, foi internado, tratado e operado. Em janeiro
de 1966, ele morreu sem ver um único teste de suas criações. Só em 23 de abril
de 1967 partiu ao espaço a nave Soyuz-1, com Vladimir Komarov a bordo. A ideia
era testar a operacionalidade do veículo na órbita terrestre. Após 18 voltas de
um voo cheio de problemas, Komarov teve de dirigir o veículo manualmente de
volta à atmosfera. Os pára-quedas da nave não se abriram e o cosmonauta se
espatifou no chão. Era a primeira morte do programa soviético, e a partir dela
ficou decidido que as naves teriam testes extensos sem tripulação antes que
pudessem ser habilitadas a transportar humanos.
O programa do foguete N-1 continuava em
desenvolvimento, mas os avanços eram lentos. Já o L-1 estava bem adiantado e em
março de 1968 foi feito o primeiro teste com o veículo. O segundo, em 14 de
setembro, ainda sem tripulação, conseguiu cumprir sua meta original e dar a
volta ao redor da Lua, retornando em segurança.
Os americanos entenderam o recado e a Nasa tratou
de redirecionar o lançamento da Apollo-8. Em dezembro daquele ano, naquela que
era apenas sua segunda expedição, a espaçonave foi enviada em direção à Lua:
era o terceiro lançamento do Saturn V e o primeiro com tripulação. Frank
Borman, William Anders e James Lovell passaram 20 horas em órbita lunar e, na
véspera do Natal, leram trechos da Bíblia ao vivo para o público que, pela
televisão, acompanhava as inéditas fotos do “nascer da Terra”, visto da Lua.
A corrida para a Lua entrava em seu momento
decisivo. No início de 1969, o gigante N-1 finalmente estava pronto para um
vôo-teste. Às 9h18 da manhã do dia 21 de fevereiro, os supermotores foram
ligados, com barulho ensurdecedor. O foguete se desprendeu da base e subiu,
deixando atrás de si uma elipse de fumaça branca. O sonho durou 68,7 segundos,
até que vibrações anômalas e um incêndio fizeram o comando abortar a missão e
explodir o N-1, a 30 quilômetros de altitude. A falha ocorreu enquanto o
foguete ainda estava acionando os motores de seu primeiro estágio. Ninguém saiu
ferido. Uma segunda tentativa ainda seria conduzida em 3 de julho daquele ano,
mas os resultados não foram muito diferentes. Depois de 50 segundos de vôo, o
enorme N-1 ficou fora de controle e teve de ser destruído no ar.
Para baixo do tapete
O N-1 passou por mais dois vôos-teste, em 1971 e
1972, mas ambos também terminaram em falhas, todas no primeiro estágio. Depois
do pouso de Armstrong, os soviéticos jamais voltaram sequer a falar em missões
lunares tripuladas e passaram a negar, em todas as oportunidades, que tivessem
algum programa para o desembarque de humanos na Lua. Mas as consecutivas falhas
do N-1 ainda hoje são motivo de polêmica na Rússia. Muitos atribuem a culpa à
morte de Korolev, que deixou todos os projetos espaciais tripulados à deriva,
até que outros à sua altura conseguissem tomar as rédeas. Mas há quem diga que
foi uma atitude de Korolev em vida que condenou o N-1.
Segundo Vladimir Kurt, pesquisador do IKI e
veterano de projetos espaciais na Rússia, motores muito potentes para o
primeiro estágio do N-1 chegaram a ser desenvolvidos pelo escritório de
Valentin P. Glushko, outro grande engenheiro aeroespacial da época de ouro da
União Soviética. “No entanto, as relações entre Glushko e Korolev eram muito
ruins, sei lá por que razão, e Korolev decidiu usar outros motores, com um
sexto da potência dos de Glushko, para o primeiro estágio do N-1”, diz Kurt.
Para compensar os motores mais fracos, foi preciso
aglutinar 32 deles. Seu funcionamento simultâneo foi o que causou as vibrações
que levaram ao fracasso dos quatro lançamentos do grande foguete soviético. O
projeto foi encerrado em 1974, quando Glushko assumiu o comando do OKB-1.
A Leonov, que, se o cronograma soviético tivesse
sido cumprido, teria sido o primeiro a pisar na Lua (seu principal concorrente,
Yuri Gagarin, morreu em 1968), sobrou um irônico prêmio de consolação: ele
acabaria sendo o único soviético a orbitar a Lua, a bordo de uma espaçonave
Apollo, durante uma missão conjunta de soviéticos e americanos, em julho de
1975.
Corrida lunática
Os soviéticos saíram na frente, mas os norte-americanos chegaram primeiro
4/10/1957
A União Soviética lança o Sputnik-1,
primeiro satélite artificial. Menos de um mês depois, o Sputnik-2 leva ao
espaço a cadela Laika
12/4/1961
A bordo da Vostok-1, Yuri Gagarin
completa uma volta em torno da Terra, em 104 minutos, tornando-se o primeiro homem
no espaço
3/8/1964
A URSS cria o projeto N-1/L-3, liderado
por Sergei Korolev, com o objetivo de pousar na Lua
2/3/1968
Soviéticos lançam o primeiro veículo
L-1, sem tripulação. A nave deveria dar a volta ao redor da Lua, mas falhou
14/9/1968
O segundo veículo L-1 é lançado, de
novo sem tripulação. Desta vez a nave consegue concluir com sucesso uma volta
em torno da Lua
21 a 27/12/1968
A Nasa inverte os objetivos das missões
Apollo-8 e 9, para garantir que os americanos fossem os primeiros a circundar a
Lua. O sucesso vem com a Apollo-8, em plena véspera de Natal
21/2/1969
A União Soviética promove o primeiro
vôo-teste de seu foguete lunar, o N-1. O esforço termina em fracasso após 68,7
segundos
18/5/1969
Decola da Flórida a Apollo-10, missão
que foi até a Lua e ensaiou um pouso lunar, chegando a estar a meros 14 km da
superfíciedo satélite
3/7/1969
O segundo teste do N-1 também fracassa.
Após pouco mais de 50 segundos de vôo, o foguete foi destruído no ar
20/7/1969
Após um lançamento bem-sucedido quatro
dias antes, Neil Armstrong e Edwin “Buzz” Aldrin se tornam os primeiros homens
a caminhar na superfície lunar, com a missão Apollo-11. A disputa pela primazia
estava encerrada
27/6/1971
Novo teste do N-1: fracasso no primeiro
estágio
23/11/1972
Quarto e último vôo-teste do N-1: nova
falha
11/12/1972
Os americanos pousam na Lua pela última
vez, a bordo da Apollo-17
1974
Soviéticos desistem do N-1/L-3 e
passam a negar que o programa de desembarque lunar tenha existido
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