sexta-feira, 14 de abril de 2017

A lança era a lei: Vida e morte dos cavaleiros

Natalia Yudenitsch


Para um cavaleiro medieval, perder um cavalo significava desespero. Além do alto custo de adquirir um novo animal de boa linhagem com todos os equipamentos necessários, a cavalaria era, por volta do século 12, intimamente associada à nobreza - ou seja, lutar a pé era uma evidente perda de status.

Por isso, compreende-se o apelo angustiado do rei inglês Ricardo III: “Um cavalo, um cavalo, meu reino por um cavalo!”, ele repetia, ao perder sua montaria durante a Batalha de Bosworth, em 1485 - e a fala está na peça Ricardo III do dramaturgo inglês William Shakespeare. Dá uma boa ideia do que representavam o cavaleiro e a montaria na Idade Média. Eram fundamentais nos combates. Alguns viraram lendas pelas atuações nas batalhas e nos torneios de cavaleiros, outros foram idealizados em contos, livros e peças como a de Shakespeare. "Não é à toa que os cavalos recebiam um tratamento muitas vezes superior ao despendido aos soldados. A perda do cavalo em combate podia custar a vida de seu cavaleiro, já que suas armaduras eram mais leves do que as dos soldados desmontados, resistindo bem menos a flechas e golpes de espada”, diz o professor Wolfgang Henzler, especialista em história e armas medievais da Universidade de Freiburg, na Alemanha.

A formação

A conexão do futuro cavaleiro, sempre de linhagem nobre e muitas vezes com sangue real, com a prática começava cedo. Ao 7 anos, o garoto era iniciado em sua formação como pajem. Aos 12, passava a servir seu senhor feudal, quando recebia instrução militar e subia ao posto de escudeiro. Era com esse status que partia com seu suserano para assistir a suas primeiras batalhas reais e aprendia o manejo da lança e da espada. Se sobrevivesse à experiência, provasse seu valor e tivesse dinheiro suficiente para arcar com os custos, entre os 18 e 20 anos ele era armado cavaleiro num ritual que marcava a passagem da adolescência para a idade adulta.

O ritual de sagração de cavaleiro dava a medida da importância do título. Implicava em mostrar sua virilidade em combates simulados durante uma festa – às vezes até em presença do rei –, na observação do jejum e em uma noite de vigília das armas, seguida da comunhão, que incluía a bênção da espada do aspirante. O rapaz fazia então seu juramento, prometendo seguir os códigos de lealdade e honra. De acordo com Henzler, "ele recebia um tapa no rosto ou um golpe no ombro ou na nuca do seu senhor, que finalmente dizia: `Eu te faço cavaleiro em nome do Padre e do Filho e do Espírito Santo, de São Miguel e de São Jorge. Sê valente, destemido e leal´. E dali saía montado em seu cavalo".

No campo de batalha, as formações da cavalaria começavam com as lanças. Funcionava assim: cada lança trazia uma fileira com o cavaleiro, seu escudeiro, um pajem e dois arqueiros ou besteiros. Cerca de seis lanças se configuravam como uma bandeira, que por sua vez constituíam uma companhia de homens de armas. 

Era uma tática absolutamente brutal: a carga transmitia toda a força do cavalo a um frágil corpo humano, concentrada em uma ponta. Quem era atingido diretamente não tinha nenhuma chance de sobreviver, mas não parava por aí: a isso se seguia o próprio cavalo, treinado para atropelar humanos, em meio a uma formação de infantaria. Diante disso, os inimigos perdiam a formação e, em pânico, tentavam salvar suas vidas. Às vezes, só a visão da cavalaria já os fazia se dispersarem. 

Quanto à lança em si, raramente sobrevivia ao ataque. O cavaleiro então sacava sua espada ou maça e continuava a atacar montado, ou recuava e pegava outra lança para outra carga. 

Fim do domínio

No século 12, na era das cruzadas, a cavalaria ganhou um aspecto mais religioso, especialmente com o surgimento das ordens militares – como as de hospitalários e templários. O cavaleiro passou a ser defensor contra hereges e infiéis. “Durante a Guerra dos Cem Anos, ao mesmo tempo em que chegava ao auge no imaginário popular, ele viu sua importância militar perder força. Primeiro por causa da melhoria das armas, como o arco longo, e depois com a chegada das armas de fogo”, afirma  Jill Diana Harries, professora de história antiga da Universidade de St. Andrews, na Escócia. A infantaria também foi se tornando mais profissional e organizada. Com longas lanças, os piques, uma unidade disciplinada era capaz de evitar uma carga - os cavalos nem tentavam avançar contra uma paliçada de piques. 

Com o tempo, os próprios cavaleiros passaram a desmontar e lutar como infantaria - com suas armaduras, é claro, que os diferenciava de meros plebeus também no solo. O auge da armadura aconteceu nos séculos 15 e 16, quando já havia armas de fogo - e elas eram feitas para resistir a tiros imprecisos, em ângulo ou de longa distância. Quando as armas de fogo se tornaram potentes demais para que uma armadura de corpo inteiro pudesse ser feita com um peso viável, elas finalmente tornaram-se meras couraças, e depois abandonadas completamente, ao longo do século 16.

Nesse processo, o cavaleiro em armadura brilhante era cada dia mais uma realidade reservada aos torneios do que às batalhas reais. Esse eventos, como definiu no século 12 o historiador medieval inglês Roger of Hoveden, eram “um exercício militar sem o espírito de hostilidade”. Muito populares na Europa, tinham regras simples: cada cavaleiro levava três armas – uma espada, uma lança e um rondel (um tipo de adaga medindo entre 30 e 50 cm) – e o vencedor era o que conseguisse derrubar o oponente do cavalo com a lança. Se ambos caíssem, dava empate - resolvido em um duelo no solo, até que sobrasse apenas um homem em pé. Num por prazer, para a diversão da plateia, usavam-se armas com pontas rombudas - não era o plano matar ninguém, mas a violência do impacto era a mesma de um campo de batalha, e acidentes eram frequentes. 

Cavaleiro acabaria por se tornar um mero título honorífico. Com soldados plebeus, a cavalaria seria usada como uma força auxiliar, atacando partes vulneráveis da formação inimiga com sabres, não mais lanças. Isso perduraria até a Primeira Guerra, quando metralhadoras finalmente silenciaram o som das ferraduras contra o solo.

Histórias de cavaleiro

Os romances cavalaria, aventuras que exaltavam a defesa dos fracos e oprimidos e que vinham sempre recheadas de aventuras e histórias de amor, fizeram a fama do cavaleiro medieval que persiste até hoje. Com uma concepção de amor mais realista do que a literatura cortês, os contos de cavalaria foram também usados como um instrumento de doutrina da Igreja, que incentivava a ideia da busca pelo Graal sagrado, cálice que teria contido o sangue de Cristo após a crucificação – como a descrita nas várias narrativas do ciclo arturiano sobre a saga dos Cavaleiros da Távola Redonda. Em seu ápice heroico, estão as visões de cavaleiros baseadas na lenda de Tristão e Isolda, como a do alemão Gottfried von Strassburg, e o romance Lancelot, de Chrétien de Troyes, escrito no século 12. O crepúsculo da cavalaria, porém, não deixou de ser registrado pelas letras. Don Quixote de La Mancha, do espanhol Miguel de Cervantes, retrata com uma pontinha nostálgica o que restara do cavaleiro andante na entrada do século 17: uma figura patética e anacrônica, que perseguia moinhos acreditando serem esses gigantes - ainda que com certa dignidade. 


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