quarta-feira, 20 de junho de 2018

[POL] As Falsas Bases do Comunismo

Alfredo Severo dos Santos Pereira (1878 – 19??)

Resumo do livro homônimo, publicado em 1932 [1]


O Método Dialético [2]

Dois são os processos lógicos fundamentais que a razão humana emprega na descoberta das leis naturais: o método indutivo, que institui os princípios, e o método dedutivo, que deles tira as consequências.

O único meio de dominar um mundo mutável permitindo-nos registrá-lo, a fim de que possamos atuar sobre ele, é descobrir uniformidades sobre as quais possamos nos apoiar, aí estabelecendo pontos fixos. É o que faz o pensamento real. Ele forma conceitos dotados de significação fixos religados uns aos outros mediante relações lógicas fixas e os aplica depois a um mundo que não é fixo. Infligem ao mundo, assim, uma certa violência, falsificando-o de certo modo, mas permitindo que nele nos orientemos. Um exemplo disso é a lei angular de Tales ela nos mostra como podemos construir uma infinidade de triângulos diversos apesar de não podermos construir no mundo real nenhum triângulo plano e retilíneo.

O aspecto do método da “postulação” que empregam os teóricos do Comunismo, e que serve de base a todos os seus raciocínios, é chamado de dialética de Hegel. Semelhante método consiste em pretender-se deduzir sem haver antes induzido os princípios fundamentais, mediante falsos postulados. A dialética a que se filiam Hegel e tantos outros metafísicos peca por excesso de subjetivismo só considerando como reais as ideias abstratas, das quais os seres concretos não passam de meras cópias. A metafísica não tem capacidade para construir coisa alguma, pois não procura as leis, que são o único material possível de construção, limitando-se a discussões intermináveis e estéreis acerca de questões insolúveis.

A dialética de Hegel baseia-se num supremo postulado, arbitrariamente inventado, segundo o qual tanto o subjetivo como o objetivo se baseiam na “identidade dos contrários”. Assim, um fenômeno, bem como um pensamento qualquer, ao realizar-se, tem de passar por três fases sucessivas, que são: a tese, a antítese e a síntese. Na primeira fase (tese), há a afirmação da existência; na segunda (antítese) dá-se uma segunda existência que se opõe à anterior e, finalmente, na terceira fase (síntese) a afirmação e a negação se harmonizam numa realidade superior às duas. Cada síntese torna-se, por sua vez, o ponto de partida de uma nova tese, e assim indefinidamente. Por exemplo, tese: “a cadeira é de madeira”; antítese: “a cadeira não é só feita de madeira”; e síntese: “a cadeira é produto do trabalho humano com o auxílio de instrumentos.” É esse falso pensamento dialético que tem exacerbado as discórdias humanas, emprestando um aspecto frenético de lutas eternas.

Ora, a ideologia hegeliana consiste em subordinar o espetáculo histórico à concepção lógica de sua dialética, o que equivale subordinar o objetivo ao subjetivo. É como se em lugar de subordinar o animal ao meio em que vive, pretendêssemos fazer o meio físico ficar sujeito ao animal, que o transformaria ao seu bel prazer.

É assim que procede o falso método da postulação que, além de subordinar a contemplação à meditação, ainda subordina a dedução à indução.

Foi por processo semelhante a esse que Hegel e seus discípulos erigiram como postulado arbitrário a dialética contraditória da tese, antítese e síntese, ao invés do induzir para deduzir, a fim de construir. Disso decorre, por exemplo, o falso postulado sociológico da luta inconciliável entre as classes sociais.

Marx, depois de haver sido inteiramente hegeliano, sofreu a reação materialista de Feuerbach, e caiu no exagero oposto, numa preponderância do objetivo sobre o subjetivo, numa espécie de fatalismo cego em que o homem passa a ser um simples joguete das forças materiais, nada podendo a vontade contra elas.

No prefácio de sua obra “O Capital”, Marx caracteriza sua filosofia dizendo que ele nada mais fez do que inverter a filosofia de Hegel, partindo da matéria para o espírito e não o contrário, como praticava Hegel, mas conservando a mesma evolução dialética em três tempos. Assim, em vez de ver na evolução humana o contínuo aperfeiçoamento do sentimento, da inteligência e da atividade, que continuamente se aprimoram, Marx, no drama da história, só vislumbra a luta incessante oriunda do eterno choque dos antagonismos imaginários de sua falsa dialética.

Segundo Lênin, a lógica dialética ensina que não há verdade abstrata; toda verdade é forçosamente concreta. Porém, a verdade é a harmonia entre nossas concepções subjetivas e as impressões objetivas de onde aquelas necessariamente emanam. A verdade é a hipótese mais simples, mais estética e mais altruísta. A verdade é, pois, uma aproximação ideal da realidade. Assim, já foi uma verdade afirmar-se que a Terra era plana; hoje, com os dados que possuímos, tal afirmação não corresponde mais à verdade. A verdade concreta tem por guia, portanto, a verdade abstrata, pois são as leis abstratas e gerais que dirigem nossas ações quando passamos do abstrato para o concreto. Consequentemente, Lênin confundiu abstrato com concreto e o objetivo com o subjetivo, não percebendo bem os limites de separação dos dois domínios.

A contradição é uma atitude mental que age acionada pelo instinto de destruição. Ela está sempre em oposição à realidade ambiente e vê sempre branco o que é preto. Assim sendo, vê-se como a contradição é o instrumento lógico para servir à ação destruidora do Comunismo. Daí o sucesso da dialética contraditória de Hegel, que é o seu instrumento ideal.  Essa lógica da contradição é posta ao serviço de vários postulados errôneos, sem bases reais na observação dos fatos sociais, entre os quais estão o dogma chamado “Materialismo Histórico”.

Materialismo Histórico

Preliminarmente, é preciso notar que o que se pretende significar na expressão “materialismo histórico” não é a história, simples narrativa dos acontecimentos humanos, ou massa concreta dos fatos, mas sim uma pseudofilosofia da história, ou falsa teoria sociológica, que reduz a evolução humana somente ao seu objeto de atividade econômica ou material, apresentada como causa e não como efeito.

Segundo Engels, “a concepção materialista da história baseia-se na ideia de que a produção, a troca de produtos, os valores, etc., constituem o fundamento da organização social toda. Em cada sociedade humana, a repartição das riquezas e a formação das classes e dos estados na sociedade são o resultado do modo de produção e de troca praticados pela mesma sociedade.”

Em sua concepção da história, Marx só enxerga forças materiais, sempre em contradição com aquilo que ele chama de “relações de produção”, resolvendo-se a luta dessas duas entidades, tese e antítese, numa unidade superior, ou síntese, que é a causa do movimento social. Vemos, assim, que tendo partido, em suas origens hegelianas, do princípio que “o espírito é o único motor da história”, chega Marx ao extremo oposto, tendo substituído essa suprema entidade pelas forças materiais da produção, que passam a ser, então, o princípio motor da história.

O materialismo histórico procura explicar a evolução do organismo social como resultando das transformações sucessivas de uma estrutura inicial de tal modo que a sociedade futura deve ser formada de uma classe única, a classe proletária. Esse “transformismo”[3] histórico é, assim, baseado no transformismo biológico de Darwin. Apresentando as transformações das sociedades como resultantes de uma luta pela sobrevivência fica claro que o progresso depende da luta de classes. O estado revolucionário é apresentado, portanto, não só como uma fatalidade, mas também como um benefício. Ao invés de desenvolvimento, a transformação. Eis como se explica como o Comunismo apresenta o transformismo, a luta das espécies, como um dogma científico. É que pretende apresentar nela a luta de classes como um dogma científico e inevitável. 

Na produção social dos seus meios de subsistência, os homens estabelecem relações determinadas e necessárias, independentemente de sua vontade, relações de produção que correspondem a uma fase do desenvolvimento definido de suas forças produtivas, materiais. É o conjunto dessas relações de produção que forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se ergue uma superestrutura jurídica e política e a que correspondem formas definidas de consciência. Não é a consciência dos homens que determina essa sua maneira de ser; é essa maneira de ser social que determina a consciência dos homens.

Com efeito, esse trecho encerra os três princípios fundamentais de Hegel, a saber:

1)    Toda evolução da sociedade humana é explicada pela ação de uma causa única, que são as forças de produção, isto é, a vida material;
2)    Os homens não tem consciência dessa causa geral, apenas de suas repercussões posteriores nas relações jurídicas, políticas, religiosas, etc., que constituem a superestrutura da sociedade; e
3)    Essa causa única obedece a um processo de contradição lógica.

Todas essas incongruências resultam, evidentemente, de querer resolver o problema sociológico isolando-o do conjunto dos outros e, sobretudo, desconhecendo a Moral, que é a ciência que estuda as leis que regem a natureza humana. Não é isso o mundo às avessas, a completa inversão da ordem natural das coisas?

Não pode haver atividade industrial regular senão baseada numa arte técnica, a qual, por sua vez, repousa numa teoria científica. Ora, como quem constrói as teorias é a inteligência e não a força, segue-se que é a ação que fica subordinada à mente, e não o contrário, como afirma Marx quando diz: “o modo de produção dos meios de subsistência condiciona o processo da vida social, política e espiritual.”

Dizer, pois, que a sociedade humana é um simples agregado de negócios e atividades materiais é o mesmo que reduzir o homem a um mero mecanismo destituído de sentimento e de inteligência. Assim, Marx inverte arbitrariamente a natureza humana ao afirmar que “não é a consciência dos homens que determina sua maneira de ser, mas pelo contrário, é a sua maneira de ser social que determina sua consciência.”

Marx afirma que as transformações materiais das condições de produção são inconscientes, como resultante da ação de forças externas ao homem, por obra de um meio social óculo e ideológico, uma espécie de entidade onipotente e distinta capaz de formar a consciência do homem. Tais modificações da vida econômica só chegam ao conhecimento do homem quando o conflito explode entre o capital e o trabalho. A verdade é, porém, que quando um conflito explode encontramos formas antagônicas de egoísmo - isto é, o sentimento de amor próprio – pelo choque de interesses pessoais. A origem dos conflitos humanos é, portanto, de ordem moral e não a atividade econômica que condiciona o sentimento.

É o maior dos absurdos reduzir os fenômenos sociológicos aos simples fatos econômicos. A evolução humana não pode ser bem compreendida senão quando apreciada no seu tríplice aspecto moral, intelectual e prático. É justamente o contrário do que pretendem Marx e Engels com o materialismo histórico. Aí fica tudo subordinado ao empirismo prático. Não se pode, portanto, senão abusivamente, isolar a influência de qualquer uma das duas forças propulsoras (inteligência e atividade) do movimento humano (fenômenos sociais).

Progresso

Em sua célebre “Carta a Lassale”[4], Marx preconiza o darwinismo como sendo a maior confirmação de suas teorias, enquanto Engels, na introdução de “O Manifesto Comunista”, de 1880, declara peremptoriamente que a teoria de Marx está para história assim como a teoria de Darwin está para a biologia.

Dessa doutrina (darwinismo) é que o Marxismo tira sua falsa noção de progresso humano, apresentando como resultado de um “transformismo social” uma luta necessária entre as classes. O evolucionismo materialista vê na progressão social uma transformação completa e radical, de modo que cada fase desaparece à medida que transmutasse para a seguinte, tal como se supõe na biologia, onde cada espécie desaparece ao transmutar-se para outra mais elevada. O erro fatal seria apresentar o progresso da sociedade humana como o resultado de uma luta, isto é, proveniente do instinto destruidor. Pelo contrário, é evidente que só o contínuo crescimento da sociabilidade (altruísmo) pode explicar o progresso.

É dessa monstruosa concepção do desaparecimento dos estágios anteriores, anulados na transformação, que emana o desprezo e o ódio ao passado. O passado, porém, não desaparece. Vive em nós, no sangue e nas forças da hereditariedade, em virtude das quais transmitiremos ao futuro todos os aperfeiçoamentos que herdamos. Daí essa crença alucinada no poder miraculoso dos cataclismos sociais como meio único de transformar a sociedade atual numa outra, inteiramente diferente.

Falando desse estado futuro da sociedade, diz Lênin: “Assim que estiver realizada a igualdade de todos por intermédio de quais etapas e medidas práticas atingirá a humanidade esse objetivo ideal, nós não sabemos e não poderemos saber.”

Eis aí a formal confissão da completa ignorância do futuro na boca do “sábio” Lênin! Não é acirrando ódios irracionais e espicaçando as forças antissociais do egoísmo, em suas várias modalidades, que se conseguirá atingir o progresso necessário. O problema social só pode ser resolvido mediante o desenvolvimento do altruísmo, do sentimento social, de modo que todos, patrões e operários, sintam que estão concorrendo para o bem-estar geral. Responde, em nossos dias, Henry Ford na seguinte reflexão de ordem moral: “O que é a prosperidade? É um período de tempo em que um maior número de pessoas se sente bem. Esse bem-estar geral, e não o lucro auferido pela indústria, é que indica a prosperidade.”

Se a sociedade humana apresenta seres coletivos, como a família, a pátria ou a humanidade, é que existe também forçosamente uma força especial de coesão que vincula os seres humanos uns aos outros. Essa força é o altruísmo. Jamais poderia ser o egoísmo, que é o amor próprio de cada um, uma força de repulsão. E uma das modalidades de egoísmo é o instinto destruidor que impele à luta como pretendem os comunistas. Não resiste, pois, à mínima análise essa extravagância de se atribuir à luta o mérito de ser o dínamo do progresso humano.

A ideia central do Comunismo moderno, tal qual detalhada por Lênin em “O Estado e a Revolução”, é a seguinte: o Estado é o produto e a manifestação do antagonismo inconciliável das classes. Esse raciocínio troglodita denuncia imediatamente a ideia monista[5] de transformação regressiva à unidade – isto é, a redução de todas as classes a uma única, o proletariado – e a ideia de luta como condição imprescindível àquela transformação.

Todo esse frenesi de mudar sempre, embora para pior, é característica das épocas de anarquia. O verdadeiro movimento evolutivo marcha sempre num mesmo sentido, que é o do aperfeiçoamento. A anarquia contemporânea, antes de ser material, é sobretudo moral e mental. É preciso, pois, para remediá-la, modificar o cérebro humano, desenvolvendo os bons sentimentos. Pretender resolver tudo com medidas políticas, legislativas e eleitorais é pura ilusão. A questão é cerebral, é moral, isto é, afetiva.       

Igualdade e Liberdade

Do mesmo quilate é o falso postulado da igualdade, que não resiste à mais leve análise. Não é possível ser-se comunista sem se adotar a igualdade como axioma. É que ser comunista e não aceitar a igualdade é como alguém dizer-se católico e não acreditar em Deus.

É um erro confundir igualdade com equidade ou justiça. A verdadeira equidade consiste justamente em tratar desigualmente seres que são desiguais. As injustiças sociais não residem nas desigualdades inevitáveis, que existem e sempre existirão, mas sim em pretender nivelar arbitrariamente essas mesmas desigualdades, retribuindo com a mesma moeda os que merecem e os que não merecem. A verdadeira igualdade é a moral. É a igualdade moral de todas as funções em virtude de sua utilidade social.

E tal é a obsessão por esse falso postulado de uma “igualdade” inexistente que até já se prega a igualdade dos sexos, desconhecendo-se as diferenças biológicas, sociais e morais, tão patentes entre homem e mulher. Só numa época de profunda anarquia, como a atual, seria possível ver a mulher pleitear o seu próprio desnivelamento como se isso fosse uma ascensão!

Qualquer que seja o disfarce sob o qual se apresente o espírito revolucionário moderno – Comunismo, Socialismo, Coletivismo, Anarquismo, Fascismo – gira ele em torno da escola filosófica de Voltaire e da escola política de Rousseau: uma cética, proclamando a liberdade; a outra, anárquica, voltada à igualdade. Todavia, a de Rousseau logo tornou-se dominante por ser a única a possuir uma doutrina, embora aparente, durante os poucos anos em que “O Contrato Social” inspirou mais confiança do que a Bíblia.

Essa famosa obra, onde Rousseau pretende provar que as instituições civis e políticas da sociedade humana resultaram de um pacto voluntário e bilateral entre o Estado e a população. É na explanação dessa tese que Rousseau institui o famoso postulado da igualdade humana, onde incide no erro de pretender fazer distinções entre as leis naturais e leis civis, desconhecendo que os fenômenos humanos, como quaisquer outros, só são regidos por leis naturais, nas quais a vontade só intervém no domínio restrito da intensidade e não na substância da própria lei, ou como Montesquieu explicou: “As leis, na sua significação mais ampla, são as relações necessárias que derivam da natureza das coisas; neste sentido, todos os seres têm as suas leis.”

Efetivamente colocado diante da desigualdade geral, que é o fato natural, viu Rousseau que só poderia encontrar a “igualdade” no passado mais remoto, na vida primitiva do homem pré-histórico. Para dar esse salto no abismo, ele teve de pintar o homem primitivo como um anjo de candura, a fruir contente as delícias da vida edênica, com o agravante de apontar à espécie humana, como ideal de futuro, o regresso a esse estado selvagem inicial, de completa igualdade material. A verdade é, porém, que a única igualdade realmente existente é a igualdade moral, isto é, a igualdade de todos perante o dever de cada um. É a igual dignidade de toda e qualquer função social ao regular o funcionamento do organismo coletivo.

Outra das vantagens que Rousseau aponta ao regresso à vida selvagem, além da igualdade niveladora, é a da liberdade absoluta. Um erro muito generalizado é supor-se que um animal solto é mais livre que o homem civilizado, pois que a vida em sociedade facultou um maior desenvolvimento de suas faculdades. Não se deve confundir, portanto, a liberdade absoluta, ou “livre arbítrio”, com a verdadeira liberdade, sempre relativa, ou ligada às leis que a regem. Sem leis, isto é, sem estradas que possamos seguir, o que resta é o caos. Ademais, mesmo que pudesse existir a tal liberdade absoluta, ela não seria assim tão “absoluta”, pois o mais homogêneo dos rebanhos não dispensa os serviços de um pastor.

A liberdade, como a entende o Comunismo, arrasta à ideia anárquica do progresso ilimitado e vago; é a insurreição do egoísmo, não só contra o passado, mas também contra o presente, reagindo em nome do “direito” individual contra os deveres sociais que lhe incumbem. Daí a repercussão que encontra nas massas ignorantes e rudes a incitação à destruição, à pilhagem e a todas as manifestações da bestialidade egoísta. É que há uma cachaça pior do que a alcoólica: é a cachaça verbal, que embriaga a inteligência e deleita aos sentidos, mascarando com a música e o esplendor do verbo as mais monstruosas ideias.

Em resumo, a antiga fórmula revolucionária: liberdade, igualdade e fraternidade da Revolução Francesa de 1789, deve ficar reduzida à última, que sintetiza sozinha o altruísmo, sinônimo de liberdade, e a legítima igualdade, que é a de todos perante o dever social de cada um.

Luta de Classes / Capital e Trabalho / Propriedade

A existência social, como mostrou Aristóteles, repousa simultaneamente na divisão de ofícios e na convergência dos esforços. Deste modo, não são absolutamente inconciliáveis, como afirma o Comunismo, os antagonismos existentes entre as classes produtoras, isto é, entre o Capital e o trabalho.

Esse pseudodeterminismo econômico, que é o eufemismo sob o qual os comunistas mascaram a obsessão diabólica da fatalidade irremovível desse antagonismo, é uma consequência da deformação mental que lhes imprimiu ao cérebro o hábito de raciocinar segundo as arestas anavalhadas da dialética contraditória de Hegel, que só estimula o antagonismo. A verdade é que os comunistas, coerentes na sua obtusa cegueira, chegam até a negar a existência da família, da pátria e da humanidade.

Para dominar a Natureza, o homem precisa obedecer as leis físicas respectivas. Além disso, ainda necessita se organizar internamente. A lei que preside essa atividade prática, segundo Aristóteles, é a divisão de ofícios (independência) seguida da convergência de esforços coletivos (concurso). De fato, se observarmos uma fábrica de automóveis, cada operário faz uma peça diversa sem saber, às vezes, a sua serventia e sem conhecer o que fazem os milhares de outros operários. Esse conjunto de ofícios constitui aquilo que se chama de indústria, que é a ação real e útil do homem sobre a Terra, para dela tirar tudo aquilo de que necessita.

A indústria moderna, ou grande indústria, originou-se da multiplicação do uso das máquinas. Assim, ao passo que a antiga indústria (artesanato) era individualista e trabalhava segundo encomendas que ia recebendo, a grande indústria (após o século XVIII) torna-se cada vez mais coletiva, tendo que acumular estoques na previsão de futuras demandas locais ou internacionais.

Dessas imperiosas circunstâncias de ter de produzir indefinidamente em grandes massas padronizadas, originou-se a necessidade de separarem-se os empreendedores ou gestores da massa geral dos trabalhadores. A luta entre essas duas partes, uma incumbida da execução e a outra da direção, é motivada pela mútua incompreensão dos respectivos deveres sociais. A solução é moral e não material, como prega o Comunismo, o qual acirra o ódio e complica cada vez mais a questão que pretende resolver. Notemos que há ainda a necessidade de uma outra direção geral, de atuação maior, que abranja todos eles, conciliando-os convenientemente, para obter a sinergia de ação comum: o poder público.

A luta entre o Capital e o trabalho não terá como solução este último engolir o primeiro e as outras classes, inclusive o governo, mas sim mediante sua harmonização com elas. A famosa dialética hegeliana, que é o supremo postulado, de onde os defensores do Comunismo tiram por dedução todas as suas extravagantes teorias, não é senão uma concepção subjetiva. As distinções entre o Bem e o Mal, entre o Justo e o Injusto, são aspectos naturais das coisas humanas, regidas por leis morais, variáveis em intensidade com que entram nelas o egoísmo e o altruísmo.

Uma vez que a sociedade humana pode ser reduzida a uma única classe – a do operariado – o problema que se impõe é o da harmonia dessas classes a fim de obter delas a necessária cooperação. Porém, para o Comunismo é impossível tal cooperação, pois Marx apresenta a luta de classes como irremovível, não como uma luta realmente concreta entre massas humanas, mas sim como um conflito abstrato entre entidades que ele denomina “forças de produção” e “relações de produção”.

Sendo a vida uma dupla troca contínua entre um organismo qualquer e o meio ambiente correspondente, é evidente que, no caso particular do homem, não só se exige os alimentos como também a habitação e o vestuário. Contudo, o homem verificou que, não podendo satisfazer sozinho suas múltiplas necessidades, ser-lhe-ia mais fácil associar-se a outro homem para isso, de modo que cada um fosse responsável por um produto para depois trocá-los entre si. Ficou assim instituído o princípio aristotélico da cooperação. Essa cooperação transferiu os resultados acumulados à geração seguinte. E como seria possível semelhante transmissão dos recursos se eles não tivessem durabilidade e se o homem não fosse capaz de produzir mais do que aquilo que consome?

Isto posto, o sociólogo francês Augusto Comte elaborou duas leis econômicas, quais sejam:

1)    Cada homem pode produzir mais do que aquilo que consome; e
2)    Os produtos do trabalho duram mais do que o tempo indispensável à sua reprodução.
Foram essas duas leis, a da durabilidade e a do excesso de produção que permitiram a formação dessa coisa transmitida de uma geração à outra chamada de “capital”. A própria divisão de trabalho seria impossível sem a existência do capital.

Então, o que vem a ser o capital senão a acumulação do trabalho, que passa de uma geração à outra? Está claro, portanto, que o capital não é só material, mas também intelectual. Foi assim, graças à acumulação do trabalho material, que se formaram e criaram as outras classes que com ele colaboraram. Tão evidente é, porém, a utilidade do capital que os próprios marxistas acabaram por concentrar seus ataques não sobre o capital propriamente dito, mas sobre a propriedade, a apropriação individual absoluta do capital.

Todos sabem que, em geral, os ricos não gastam senão uma pequena parte do capital que dispõem. E, apesar de não poderem usufruí-lo todo, buscam aumentá-lo durante toda vida. O lucro é, portanto, o estimulante indispensável ao desenvolvimento produtivo do capital, inspirado pelo desejo de transmiti-lo aumentado à posteridade. E essa transmissão deve ser livre, podendo ser aos seus descendentes ou mesmo a estranhos.

Por que então os comunistas se opõem obstinadamente a essa apropriação individual de capital? Os comunistas apresentam os capitalistas como homens totalmente destituídos de altruísmo, ao passo que planejam substituí-los por uma sociedade quimérica na qual os operários seriam inteiramente isentos de egoísmo. Desse erro, decorre sua oposição à apropriação individual de capital e a defesa da apropriação coletiva da propriedade, isto é, a socialização desta última.

O Comunismo confunde lamentavelmente funções públicas com serviços públicos, intentando loucamente estatizar toda atividade industrial, transformando o operário em empregado público. Uma coisa são os serviços públicos, que são diretamente fiscalizados pela população, que se serve deles a preço fixo e que não se destinam a dar lucro. Outra coisa são os serviços da indústria privada, onde temos a fiscalização dos produtos e serviços pelo empresário, que produz os artigos a preços variáveis que oscilam com as flutuações da oferta e da procura.

Salários e Mais-Valia [6]

É sabido que Marx popularizou a ideia de que os capitalistas exploram os trabalhadores apropriando-se de uma parte de seu trabalho.  O argumento, quando despido de toda o seu linguajar pomposo, é relativamente simples: segundo Marx, as mercadorias produzidas pelos trabalhadores são vendidas por um valor que é igual ao tempo de trabalho socialmente necessário para produzi-las; sendo assim, em um mundo justo, cada trabalhador deveria ganhar um salário equivalente ao fruto integral de seu trabalho, isto é, equivalente ao valor exato da mercadoria que ele produziu.

Consequentemente, o capitalista, que não efetua trabalho físico, retém para si uma parte do valor desses bens que os trabalhadores produziram, e ele consegue fazer isso graças ao seu monopólio dos meios de produção (os quais, vale dizer, são bens complementares indispensáveis ao trabalhador, sem os quais os trabalhadores nada conseguiriam produzir).

Falando mais especificamente, o capitalista remunera o trabalho com $100 (D), esse trabalho gera mercadorias (M), e essas mercadorias são vendidas por $120 (D').  Segundo Marx, isso só é possível de ocorrer porque há uma parte do trabalho que não foi remunerada pelo capitalista (D'-D), mas que de fato produziu mercadorias com um valor de troca. 

Essa diferença é justamente a mais-valia, que é a mensuração exata da "exploração laboral" — ou seja, o trabalhador prestou um serviço para o capitalista e não obteve a devida remuneração.

A solução de Marx?  Confiscar os meios de produção da burguesia e repassá-los aos trabalhadores para que estes possam reter o produto integral do seu trabalho sem que haja intermediários capitalistas que se apropriam de parte do suor de seu rosto.

Há vários problemas com essa teoria marxista.  Em primeiro lugar, ela parte do princípio de que todo o valor de troca de uma mercadoria depende exclusivamente do trabalho incorrido em sua produção, e não de sua utilidade marginal; o fato de que o valor de um bem é totalmente subjetivo é ignorado pela teoria.  Há também uma questão ainda mais problemática, que é a natureza distorcida que Marx atribui ao capital: Marx assume que o valor do capital (por exemplo, o valor de uma máquina utilizada na produção de uma mercadoria) também é determinado pelo trabalho que foi incorrido em sua produção, e que o valor desse capital se transforma, em função de sua depreciação, no valor da mercadoria final; trata-se de uma espécie de contabilidade de custos que se dá de acordo com o tempo de trabalho utilizado.

Os capitalistas, ao adiantarem seu capital e sua poupança para todos os seus fatores de produção (pagando os salários da mão-de-obra e comprando maquinário), esperam ser remunerados pelo tempo de espera e pelo risco que assumem.  Por outro lado, os trabalhadores, ao receberem seu salário no presente, estão trocando a incerteza do futuro pelo conforto da certeza do presente.

O fato de o trabalhador não receber o "valor total" da produção futura não tem nada a ver com exploração; simplesmente reflete o fato de que é impossível o homem trocar bens futuros por bens presentes sem que haja um desconto.  O pagamento salarial representa bens presentes, ao passo que os serviços de sua mão-de-obra representam apenas bens futuros.

A relação trabalhista, longe de ser uma situação de exploração, é apenas uma relação de troca entre bens presentes (o capital do capitalista) por bens futuros (os bens que serão produzidos pelos trabalhadores e pelo maquinário utilizado, e que só estarão disponíveis no futuro).

Assim, o salário, que o operário recebe da sociedade por intermédio do capitalista, é uma simples indenização, destinada a substituir as provisões consumidas por ele e os instrumentos gastos no exercício da função. Tal salário deve ser constituído de duas partes: uma, fixa, destinada ao sustento próprio e de sua família, a outra, variável, sendo uma gratificação tendo por objetivo incentivar a produção individual. Portanto, o rendimento deve ser obtido pela qualidade do trabalho. É preciso que o operário veja a possibilidade de ganhar mais pelos seus próprios méritos, e não como acontece nos regimes socialistas, onde o salário dos operários é pago de forma uniforme, independentemente da produção individual.

Afinal, o que é Comunismo?

Lançando-se um olhar retrospectivo das bases teóricas do Comunismo, verifica-se que elas não oferecem a mínima consistência. Tanto o seu instrumento lógico, que é a Dialética de Hegel, como suas pretensas bases científicas, que são o materialismo histórico e a luta pela sobrevivência do evolucionismo de Darwin, além do dogma da igualdade, não resistem a uma análise mais profunda. Ora, não possuindo bases teóricas em que assentar sua construção, os comunistas não podem apresentar um plano para a sociedade.

É que o Comunismo é uma concepção quimérica. Tanto o socialismo como o anarquismo, que são doutrinas opostas, são fáceis de conceber, enquanto que o Comunismo, que é uma simbiose das duas, não comporta uma definição precisa. O Anarquismo entrincheira-se na cidadela da independência individual, repelindo o concurso social. O Socialismo, ao contrário, acastela-se no concurso, sacrificando a independência individual. Trata-se, pois, de uma concepção híbrida, que quer ser as duas coisas ao mesmo tempo e, portanto, nenhuma delas. Os comunistas pretendem disfarçar esta berrante contradição apresentando os regimes comunistas do século XX como uma etapa de transição para passar da sociedade capitalista ao Comunismo futuro. É a chamada “ditadura do proletariado”. Para chegar à supressão do governo, organizam o mais ferrenho dos governos!

O erro essencial do Comunismo, como aliás do Capitalismo atual também, consiste em dar soluções políticas a problemas morais. Isto é, ambos preocupam-se exclusivamente com as riquezas, como se estas fossem as únicas forças sociais mal repartidas e mal administradas.

O Comunismo, desconhecendo a família e a pátria, pretende formar uma humanidade impossível, constituída de átomos individuais, diretamente ligados num bloco único. Tal é, porém, impossível porquanto cada modalidade de altruísmo vai formando um ser coletivo, e são esses seres coletivos que vão se ligando para formar os de ordem superior. Logo, a humanidade é um bloco de pátrias, e as pátrias são conglomerados de famílias. Consequentemente, destruindo as famílias, destrói-se a Nação. [7] Tal é a ordem natural, que não depende do arbítrio do homem. Sem as famílias que domesticam o homem, jamais este último teria se elevado à concepção altruísta de pátria e de humanidade.     

Notas

[1] Procurei na internet mais dados sobre o autor, porém eles são vagos. Aposentou-se como professor do Colégio Militar do Rio de Janeiro em 1944 no posto de coronel.  Alfredo Severo era seguidor do Positivismo do sociólogo francês Augusto Comte (1798 – 1857). No livro, Severo detalha aspectos dessa doutrina, mas só selecionei aquilo que foi usado para desmascarar o Comunismo. Pelo fato de ter sido escrito no final dos anos 1920, o texto apresenta algumas incorreções, principalmente em se tratando de neurociência fisiológica e anatômica. Em relação à Teoria da Evolução de Charles Darwin, hoje amplamente aceita como um fato científico, Severo era crítico dela e usou isso para destruir um dos argumentos do materialismo histórico marxista. Mesmo sendo o evolucionismo, até o momento, uma verdade, selecionei os trechos onde Severo compara a luta de classes com a luta pela sobrevivência darwinista, pois me pareceram lógicos.

[2] Dialética é um método de diálogo cujo foco é a contraposição e contradição de ideias que levam a outras ideias.

[3] teoria biológica que, por oposição ao fixismo, afirma que as espécies vivas não são imutáveis, mas suscetíveis de transformação, e apareceram por evolução de formas mais simples.

[4] Carta a Ferdinand Lassale, 22/07/1861.

[5] Monismo: concepção que remonta ao eleatismo grego, segundo a qual a realidade é constituída por um princípio único, um fundamento elementar, sendo os múltiplos seres redutíveis em última instância a essa unidade.

[6] Parte do texto extraído de “A teoria marxista da exploração não faz nenhum sentido”, disponível em https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=1856

[7] Esse texto grifado é meu.

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domingo, 17 de junho de 2018

A guerra na era da informação


Roberto Caiafa


A guerra é, antes de tudo, um fenômeno social.

A despeito do enorme protagonismo atribuído aos soldados nos campos de batalha, são as sociedades, e não os exércitos ou seus generais, que produzem as guerras.

Essa assertiva, aparentemente trivial, nos permite concluir que transformações na conduta da guerra decorrem, primeiramente, de transformações sociais.

No momento em que a humanidade deixa a era industrial para ingressar na era da informação, passando por rápidas e profundas alterações, devemos procurar entender, de forma objetiva, como essas mudanças afetam a natureza dos conflitos armados e contribuem para a redefinição do atual ambiente estratégico.

Ou seja, o curso da história da humanidade, necessariamente, insere as confrontações armadas em um contexto social, político, geopolítico, econômico, ambiental e científico-tecnológico mais amplo. É a conjunção desses fatores que define a natureza da guerra, e não o contrário.

Constatamos rotineiramente que a compreensão acerca da violência armada, nestas primeiras décadas do século XXI, goza de muito pouco consenso. Na verdade, a estrutura conceitual que, ao longo do tempo, tem orientado o Estado na promoção de segurança e defesa já não atende mais às legítimas demandas da sociedade.

Dentro desse contexto, podemos observar que os conflitos em curso ao redor do mundo divergem significativamente do modelo de confrontação armada consagrado no século XX.

Atualmente, as guerras apresentam uma enorme multiplicidade de atores e motivações que dão forma a ambientes extremamente complexos, não se limitando apenas à rivalidade entre Estados nacionais antagônicos, que recorrem a suas forças armadas por razões estritamente políticas, como aconteceu, por exemplo, durante as duas Guerras Mundiais.

Criado, segundo a concepção vestfaliana do século XVII, para assegurar a liberdade e a independência de povos e nações autônomos, o Estado-nação enfrenta novos desafios em um mundo globalizado, caracterizado por intensas relações de interdependência e interconectividade, que ignoram deliberadamente as fronteiras políticas.

O Estado deixou de ser o único ator de relevo na ordem internacional. Ademais, se defronta com limites cada vez mais severos para o exercício pleno e absoluto do seu próprio poder no plano doméstico. Como entes políticos, eles ainda competem acirradamente entre si.

Todavia, têm diversificado as formas de enfrentamento e procurado reduzir a visibilidade das ações estratégicas, em face de uma opinião pública, cada vez mais, intolerante e impaciente, e menos disposta a arcar com os custos de uma guerra total.

Ao uso de outros meios que não somente as alternativas militares tradicionais, soma-se o predomínio de uma forma de violência que se caracteriza por ser, a um só tempo: armada, organizada, não estatal, endêmica e hiper-difusa.

A guerra civil na Síria, que por sua dramaticidade e importância tem recebido justo destaque da imprensa internacional, ilustra muito bem a dinâmica dos conflitos atuais. Atores armados não estatais, como o Hezbollah, o Estado Islâmico, dezenas de facções rebeldes e outros grupos jihadistas, compartilham o mesmo teatro de operações com forças militares iranianas, russas, israelenses, norte-americanas, além de outros países da OTAN e, é claro, do enormemente desgastado governo do ditador Bashar al-Assad, encastelado em Damasco.

É fato que a sociedade tem apresentado demandas por segurança que, apesar de não serem inéditas em sua essência, são requeridas em um novo contexto. Nem tanto pela dimensão dos danos experimentados, mas, sobretudo, pela conectividade e interdependência dos mais variados fatores.

Crimes transfronteiriços, terrorismo doméstico e internacional, fluxos migratórios, pressão demográfica, urbanização incontida, fortalecimento de identidades étnicas e culturais, globalização, escassez de recursos e questões ambientais são apenas alguns dos componentes desse intricado mosaico, que conta, ainda, com a real política do Estado-nação para tornar seus contornos mais obscuros e indefinidos.

Grupos rebeldes, organizações terroristas, movimentos insurgentes e quadrilhas armadas demonstram possuir motivações diversas, não necessariamente centradas em uma agenda política.

Até mesmo, organizações criminosas e gangues territoriais têm desenvolvido o potencial de desestabilizar gravemente a ordem interna, extrapolando as fronteiras nacionais por meio de suas práticas delituosas e conexões globais.

Na América Latina, por exemplo, criminalidade de alta intensidade e insurgência criminal tornaram-se as principais ameaças à paz e à estabilidade regionais.

Todavia, o excessivo apego a uma visão ortodoxa dos conflitos armados tem contribuído, sobremaneira, para agravar a desordem e o sofrimento que afligem os povos que habitam este planeta.

Assim sendo, compreender a natureza da guerra na era da informação tornou-se uma questão crucial. Porquanto, interpretar a violência sob uma nova ótica, decerto, oferecerá novas perspectivas para a paz.


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domingo, 10 de junho de 2018

[POL] Cabo Hitler: solitário e vítima de bullying

Sérgio Miranda e Eduardo Lima


A propaganda nazista sempre vendeu Adolf Hitler como um sujeito de atitudes irrepreensíveis durante a Primeira Guerra Mundial. No conflito que convulsionou o mundo entre 1914 e 1918, o austríaco voluntariamente alistado no 1º Regimento de Infantaria da Bavária foi apenas um cabo mensageiro, encarregado de entregar recados aos oficiais. Mesmo assim, teria sido um herói – pelo menos, segundo a versão oficial. Um rapaz tão corajoso e abnegado que acabou recebendo mais de uma condecoração por bravura.

Mas essa ideia vem sendo desmontada com a ajuda de documentos que só recentemente começaram a vir a público. Vários pesquisadores acreditam que a imagem de um combatente heroico na Primeira Guerra nunca passou de uma invenção da máquina de propaganda nazista. Um desses estudiosos é o alemão Thomas Weber, professor de História Moderna da Universidade de Aberdeen, na Escócia, e autor de Hitler’s First War (“A Primeira Guerra de Hitler”, inédito no Brasil). Segundo Weber, o cabo Hitler da vida real foi pouco mais que um mensageiro de retaguarda durante o conflito. Algo como um ajudante de ordens – ou, como ele mesmo gosta de chamá-lo, o “garoto do chá”.

Para pintar esse retrato nada favorável daquele que se tornaria o líder supremo do Terceiro Reich, o pesquisador precisou realizar um verdadeiro trabalho de detetive, investigando meticulosamente cada citação a atos de coragem ou altruísmo atribuídos a Hitler durante o conflito nas suas principais biografias. Mas isso não é nada perto do tesouro ao qual ele conseguiu ter acesso para escrever seu livro. Weber pôde ler cartas, diários e relatórios militares que ficaram guardados no Arquivo de Guerra da Bavária por quase 100 anos. Toda essa papelada, segundo o autor, demonstra que o Hitler destemido da Primeira Guerra é, sem a menor dúvida, uma obra de ficção, puro marketing do regime nazista.

“A visão de um Hitler sempre exposto ao perigo, correndo entre trincheiras sob fogo cerrado para entregar mensagens aos oficiais em serviço no front, não resiste aos relatos contidos nesses documentos”, diz o historiador. “O que encontrei revela que seu trabalho era feito longe da frente de batalha. Ele servia principalmente no Centro de Comando de seu regimento.” Segundo Weber, o cabo levava mensagens de um líder para outro sem sair dos limites de seu próprio batalhão. Ou seja: nunca se expunha ao risco de levar uma bala ou ser capturado pelos inimigos. Cumpria suas tarefas, de acordo com o pesquisador, sempre a 4 ou 5 quilômetros de distância da frente de batalha. E era tido pelos outros soldados como uma espécie de burocrata. “As cartas revelam ainda que sua unidade, popularmente conhecida como Regimento List, estava muito longe de ser uma espécie Band of Brothers da Primeira Guerra [caracterizado pelo companheirismo entre seus integrantes].”

O SOLITÁRIO

Em um dos documentos analisados por Weber, o tenente do Regimento List faz menção a alguns de seus homens que eram motivo de piada na tropa por causa da pouca habilidade com as armas. Hitler aparece entre os citados. As anotações prosseguem com a descrição, em tom jocoso, do episódio em que uma fábrica de alimentos enlatados foi invadida pela tropa. Segundo o relato, Hitler estava faminto, a exemplo de todos os outros soldados. Mas continuou com fome porque simplesmente não foi capaz de abrir uma lata de presunto com sua baioneta.

Em outro ponto do mesmo documento, o tenente lista algumas das características mais marcantes de cada soldado do regimento – iniciativa, popularidade, força, entre outras. Esse tipo de registro, diz o historiador, era feito para orientar os oficiais na escolha de “voluntários” para missões de campo. Junto ao nome de Hitler, uma única anotação: “solitário”. Segundo Weber, percebe-se na correspondência de vários combatentes que o futuro Führer era um indivíduo apagado mesmo. Seus colegas frequentemente se referiam ao cabo como “o pintor” ou “o artista”. Ele ajudava os companheiros a escrever para a família. E passava a maioria do tempo escrevendo, lendo ou pintando.

Para o historiador, está claro que, ao dimensionar os perigos da função desempenhada por Hitler, muitos biógrafos jamais fizeram a devida distinção entre mensageiros que se deslocavam dentro de seu próprio regimento e aqueles que levavam mensagens para outros batalhões ou companhias. Esses últimos, sim, muitas vezes precisavam se arriscar sob fogo cruzado para cumprir suas missões. “O cabo Hitler, porém, jamais enfrentava tais riscos.”

Isso não quer dizer que ele tenha sido um mero turista na Primeira Guerra Mundial, nem que tenha passado absolutamente incólume pela violência que o cercou durante os quatro longos anos do conflito. Em outubro de 1916, na Batalha do Somme, o cabo foi ferido na perna. E bem no finalzinho da guerra, em 1918, um ataque com armas químicas acabou por levá-lo parcialmente cego ao hospital, onde receberia a notícia de que a guerra tinha finalmente chegado ao fim.

Ainda naquele ano, seria instaurada na Alemanha a República de Weimar, uma precária experiência democrática criada sobre os escombros do outrora glorioso império germânico. Também entraria em vigor o tratado – misto de armistício e rendição – que impôs duras condições de sobrevivência aos alemães. Para Hitler, aquilo tudo era uma inaceitável traição. Foi quando ele decidiu que faria carreira política. Dali em diante, sua missão seria vingar a Alemanha contra a “punhalada” desferida pelos arquitetos da república. “Era uma mentira óbvia”, diz o jornalista americano Ron Rosenbaum, autor do livro Para Entender Hitler. “Mas uma mentira que ele usaria como veículo para chegar ao poder.”

O LÍDER CARISMÁTICO

Ao sair do hospital, ainda como integrante do Exército alemão, Hitler foi enviado a Munique para investigar grupos extremistas. A cidade estava mergulhada no caos, com dezenas de grupos em conflito e dirigentes sendo assassinados ou depostos. Foi nesse cenário tumultuado que a história do futuro ditador nazista começou a ser escrita. Nas cervejarias de Munique, ele passou a discursar em defesa do seu diagnóstico dos fatos. E se descobriu um talentoso orador. “Tive a oportunidade de falar diante de uma grande audiência”, escreveria anos mais tarde em seu livro, Minha Luta. “E o que sempre pressenti se confirmou: eu sabia falar.”

O passo seguinte seria a filiação ao pequeno Partido dos Trabalhadores da Alemanha, que logo mudaria de nome para Partido dos Trabalhadores Nacional-Socialistas Alemães. Rapidamente ele chegou ao posto de porta-voz da agremiação. Em pouco mais de um ano, entre 1919 e 1920, o número de filiados ao Partido Nazista (abreviação de “nacional-socialista”) passou de poucas dezenas para mais de 2 mil pessoas – em parte, graças ao efeito persuasivo de seus discursos em praça pública. Assim, aquele cabo aparentemente insosso e inexpressivo da Primeira Guerra Mundial foi gradualmente se transformando em um líder carismático, arrebatador de corações e mentes.

Para alguém tão inspirador, com a ambição de vingar o país e devolvê-lo ao status de potência mundial, não era conveniente ter um passado de “garoto de recados”. Muito melhor seria que povo alemão o enxergasse como herói de guerra, digno dos discursos inflamados que proferia. Segundo Thomas Weber, coube à máquina de propaganda nazista que foi sendo montada ao redor de Hitler a tarefa de forjar esse mito. “Desde o início, a publicidade foi uma das bases de sua ascensão ao poder na Alemanha”, afirma o historiador. “E muitos biógrafos acabaram bebendo demais nessa fonte, pois nunca existiram arquivos facilmente acessíveis sobre a sua participação na Primeira Guerra.”

Mas espera aí: se o cabo Adolf Hitler não foi o herói da Primeira Guerra Mundial que muita gente imaginava, como explicar as medalhas que ele recebeu por bravura? A primeira lhe foi dada em 1914, uma Cruz de Ferro 2ª Classe. A segunda, em 1918, dessa vez uma Cruz de Ferro 1ª Classe. “A medalha de 2ª Classe era relativamente comum”, diz Weber. “Qualquer soldado que saísse ferido de um combate e tivesse boa ficha militar estava apto a recebê-la. Já para ganhar a de 1ª Classe, era necessária uma recomendação, fato raro entre os cabos.”

Acontece que o cabo Hitler, no desempenho da sua função de mensageiro, acabou cultivando um bom relacionamento com vários oficiais de alta patente. Para o historiador, isso ajuda a explicar a Cruz de Ferro 1ª Classe.

O ANTISEMITA

Outra visão recorrente cada vez mais questionável, segundo Weber, é a de que a Primeira Guerra Mundial foi determinante para que Hitler se transformasse no genocida que ele foi. Certamente havia soldados antissemitas em seu regimento, o futuro Führer entre eles. Nenhuma surpresa nisso, já que judeus eram perseguidos na Europa desde a Idade Média. Mas nada indica, de acordo com o historiador, que se tratasse de um antissemitismo assassino como se veria mais tarde, no auge do regime nazista. Entre os papéis do Arquivo de Guerra da Bavária estudados por ele, há listas de vários veteranos de guerra judeus. “Em nenhum documento encontrei qualquer indício de que eles fossem incomodados ou tratados de forma diferente.”

Detalhe dos mais curiosos – e irônicos – nessa história toda: em um dos documentos analisados por Thomas Weber, várias assinaturas endossam a recomendação da Cruz de Ferro ao cabo Hitler. Entre elas, a de um oficial judeu: Hugo Gutmann, seu superior imediato. Mais tarde, esse episódio acabaria salvando sua vida. Em 1937, Gutmann foi preso pela Gestapo em decorrência da perseguição aos judeus na Alemanha nazista. Mas não foi parar num campo de concentração. “Ele e sua família foram mandados para um presídio na Áustria e poupados até o fim da guerra.”


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