Maurício Brum
Em
7 de novembro de 1917, a previsão de Karl Marx se concretizou em um país
impensado: não na industrializada Inglaterra, mas em uma Rússia recém-saída de
um feudalismo tardio, o espectro do comunismo que rondava a Europa aniquilou a
tricentenária Dinastia Romanov, seu Império, e iniciou uma nova era para o
mundo. A Revolução de Outubro (que ocorreu em novembro, no calendário
gregoriano) triunfava e, cinco anos mais tarde, tendo incentivado movimentos
similares no Leste Europeu, daria origem à União Soviética.
Assim como, 128 anos antes, a
Revolução Francesa havia se valido da violência extrema para acabar com os
antigos donos do poder e modificar as estruturas da sociedade, aqueles liderados
por Lenin também perseguiram, exilaram e mataram quem pudesse ser identificado
como inimigo dos ideais da Revolução – desde os czaristas até os “burgueses”.
Em julho de 1918, a própria família Romanov seria executada, oito meses depois
da vitória do Exército Vermelho.
A manutenção do novo regime do poder
exigiu um sistema totalitário e repressivo desde o princípio: o primeiro gulag
surgiria em 1919 e as táticas para desqualificar a oposição chegariam até mesmo
à deturpação da psiquiatria para enquadrar adversários políticos como
“esquizofrênicos”. As atrocidades iniciais da rebelião bolchevique, que na
época foram justificadas como consequências da Guerra Civil, tornaram-se
sistemáticas após Josef Stalin assumir o poder em 1922.
“Para pesquisadores da história
soviética, nenhum problema é maior do que o stalinismo. Como era possível que a
Revolução de Outubro de 1917, que parecia prometer a liberdade e igualdade
humanas, resultou não em uma utopia comunista mas em uma ditadura stalinista?
Por que essa tentativa de criar uma sociedade perfeita levou aos gulags,
expurgos sangrentos e níveis de repressão estatal sem precedentes?”, questiona
o historiador David Hoffmann, da Ohio State University, na introdução da
coletânea “Stalinism: the Essential Readings” (Stalinismo: Leituras Essenciais,
sem tradução no Brasil).
A maior parte das atrocidades
cometidas no período soviético, inclusive os crimes de guerra durante o
confronto com os nazistas, ocorreram sob o olhar do ditador mais sangrento de
sua história. Mas, embora em menor intensidade, a União Soviética continuaria a
reprimir opositores muito tempo depois da morte de Stalin – até às vésperas de
seu colapso final.
1. O Terror
Vermelho
A primeira violência veio acompanhada
da Guerra Civil que marcou os anos iniciais da Revolução. Oficialmente, o
“Terror Vermelho” foi o período de perseguições deliberadas por parte dos
bolcheviques contra seus adversários políticos, entre setembro e outubro de
1918 – cerca de 10 mil pessoas pereceram nos assassinatos massivos do período.
Mas muitos historiadores vão além e argumentam que o Terror deveria compreender
todo o período de conflitos, desde o início da Revolução, em 1917, até o
triunfo definitivo dos comunistas em 1922.
Estima-se que, durante a totalidade da
Guerra Civil, além daqueles mortos nas batalhas, pelo menos 100 mil
pessoas tenham sido executadas por motivação política, acusadas de colaborar
com o czarismo e conspirar contra a Revolução. A repressão foi marcada por
torturas com requintes de crueldade. O historiador britânico Orlando Figes,
autor do livro “A tragédia de um povo: A Revolução Russa, 1891-1924”, diz que
as técnicas lembravam aquelas da Inquisição Espanhola – em algumas cidades,
houve registros de escalpelamentos, empalamentos e fogueiras humanas.
2. Perseguição aos
kulaks e aos cossacos
Os kulaks compunham uma classe de
proprietários rurais relativamente ricos para os padrões do país, contando com
mais terras e a capacidade de contratar agricultores assalariados. Camponeses
que haviam enriquecido após as reformas sociais ocorridas no Império Russo em
1906, os kulaks estiveram entre os primeiros grupos a serem tachados de
“inimigos do povo” e serem perseguidos, expropriados e deportados após a
Revolução, considerados um dos símbolos do capitalismo no campo.
Nos primeiros anos do novo regime, a
definição de kulak foi ampliada e, em muitos casos, passou a abranger qualquer
camponês que se negasse a ceder suas colheitas às tropas soviéticas – e, mais
tarde, até mesmo para camponeses que, sem ser exatamente ricos, possuíam mais
recursos do que a média. O processo de “deskulakização” se tornou ainda mais
violento após a ordem emitida por Stalin no final de 1929, ordenando que os
kulaks fossem “liquidados” enquanto classe. Estima-se que até 5 milhões
de pessoas tenham perdido a vida entre a Revolução e 1933, data que os
historiadores costumam apontar como o fim do processo.
Os cossacos, por sua vez, eram
comunidades historicamente formadas por camponeses que haviam fugido da
servidão em locais como Polônia, Lituânia, Rússia e Ucrânia. Com um forte viés
militar, os cossacos passaram longo tempo oferecendo seus serviços ao Império
Russo em troca da manutenção da sua autonomia. Tendo defendido majoritariamente
as forças mencheviques e o Exército Branco em 1917, foram reprimidos e perderam
sua autonomia após a vitória dos revolucionários: estimativas conservadoras
indicam que pelo menos 10% da população de 3 milhões foi deportada ou
morta nos anos seguintes à Revolução.
3. A fome no
Tartaristão (1921-22)
Ocorrida entre 1921 e 1922, a primeira
grande fome russa após a queda dos Romanov é considerada uma soma de fatores
que vão além dos erros das políticas comunistas: se é verdade que Lenin vinha
confiscando alimentos em nome da Revolução, pesquisadores argumentam que a
principal causa da fome foram as dificuldades de distribuição que vinham desde
a Primeira Guerra Mundial e as grandes secas ocorridas em 1921. Foi um dos
períodos mais sombrios na Rússia pós-revolucionária, com registros de atos de
canibalismo em algumas das áreas afetadas.
Na época, a comunidade internacional
considerou a fome uma tragédia humanitária sem grande influência da nova
ditadura, e ofereceu enorme apoio, enviando toneladas de alimentos. Mesmo
assim, documentos do período indicam que, em algumas regiões, os esforços para
debelar a fome foram deliberadamente mais lentos, em um ato de limpeza étnica:
no final dos anos 80, em meio à abertura dos arquivos soviéticos, o historiador
ucraniano radicado no Canadá Roman Serbyn apontou que a fome havia sido causada
e intensificada por ações humanas propositais.
Esse seria o caso, sobretudo, do
Tartaristão, região às margens do rio Volga habitada pelo povo tártaro. Com um
nacionalismo perigoso aos interesses revolucionários, motivo que tornava sua
eliminação “necessária”, os tártaros sofreram perdas proporcionalmente muito
maiores que o restante da Rússia – representariam até 2 milhões dos 5
milhões de vidas que, se acredita, foram perdidas no período. Ao final da
grande fome, cerca de um quarto dos habitantes do Tartaristão havia perecido ou
emigrado.
4. O Holodomor
(1932-1933)
Se as secas ainda são debatidas como a
principal causa da fome na década de 20, o Holodomor (ucraniano para “matar
pela fome”) é muito menos dúbio: tendo sua existência negada oficialmente pelo
governo soviético até a abertura provocada pela Glasnost na década de 80,
a grande fome ucraniana hoje é formalmente reconhecida como um ato de genocídio
por países como Austrália, Canadá, México e Portugal. A Rússia, embora admita
atualmente que o Holodomor ocorreu, continua negando que tenha sido uma
política deliberada de extermínio da população ucraniana.
Stalin temia o nacionalismo ucraniano
como um movimento capaz de fragmentar a jovem União Soviética e, no longo
prazo, colocar em risco a própria sobrevivência do comunismo. A retirada
gradual de alimentos da região – uma área produtora de cereais e grãos – e a
lenta resposta à fome, quando ela se tornou endêmica, teriam como objetivo
enfraquecer decisivamente qualquer resistência aos desígnios de Moscou.
O total de mortos no Holodomor varia
de acordo com as estimativas – chegando até a 12 milhões em alguns cálculos. Em
2010, o Tribunal de Recursos de Kiev concluiu uma investigação afirmando que a
perda demográfica da Ucrânia no período ultrapassou 10 milhões de pessoas –
quase 4 milhões vitimados diretamente pela fome, e o restante causado por
nascimentos que deixaram de ocorrer em função da desnutrição.
5. Gulag
Gulag era, originalmente, uma sigla.
Vinha de Glavnoye Upravleniye Lagerej, nome resumido, em russo, para a
Administração Central dos Campos de Trabalho Corretivo e das Colônias de
Trabalho. Era o local onde acabavam criminosos comuns e também os políticos –
que poderiam ser desde opositores reais até pessoas inocentes acusadas de
conspirar contra a Revolução.
Com o tempo, gulag tornou-se uma
palavra destinada a descrever os próprios campos, popularizada pelo escritor (e
dissidente) soviético Aleksandr Solzhenitsyn, ganhador do Nobel de Literatura
de 1970 e autor do clássico “O Arquipélago Gulag” (1973), livro em que denuncia
as condições subumanas dos campos de trabalho forçados. Solzhenitsyn, que
permaneceu oito anos preso em um gulag, foi expulso da URSS em 1974, após a
publicação de seu livro sobre as colônias penais, que descrevia como lugares
onde se trabalhava até morrer de exaustão.
O primeiro gulag, o de Solovski, foi
criado em 1919 e apenas um ano depois já havia 100 mil pessoas presas em campos
similares espalhados pela Rússia – a maioria deles localizados nas regiões mais
inóspitas da Sibéria. Pelo menos 476 campos existiram em algum momento na URSS,
a maioria deles durante o período stalinista. Os gulag não funcionavam apenas
como depósito de criminosos e opositores políticos: segundo a historiadora Galina
Ivanova, também tinham uma importância gigantesca na economia soviética. Pouco
antes do início da Segunda Guerra, 76% do estanho e 60% do ouro extraídos na
União Soviética vinham dos campos de trabalhos forçados.
Acredita-se que, até o final da vida
de Stalin, mais de 14 milhões de pessoas tenham passado pelos campos. Alguns
eram mais inóspitos do que outros: os campos às margens do rio Indigirka, por
exemplo, chegavam a registrar temperaturas na casa dos 70 graus negativos
durante o inverno e eram tido como os piores de todos. Após a morte de Stalin,
os campos foram sendo gradativamente fechados e os prisioneiros receberam
anistias. A instituição burocrática conhecida pela sigla Gulag foi formalmente
fechada em 1960, mas colônias de trabalhos forçados continuaram a existir até o
final da década de 80.
O último campo, conhecido como
Perm-36, operou até dezembro de 1987 – e permanece como o único antigo gulag
ainda existente, após a destruição dos demais pelos governos soviéticos.
Próximo aos montes Urais, o Perm-36 foi convertido em um museu e ainda está
aberto para visitação, mas cortes no orçamento do governo russo vêm ameaçando
seu funcionamento nos últimos anos.
6. Yezhovshchina: os
Grandes Expurgos
Grande parte dos crimes atribuídos a
Josef Stalin parece marcada por uma paranoia permanente: o medo de ser traído e
derrubado do poder, por inimigos estrangeiros ou internos – frequentemente,
dentro do próprio Partido Comunista. O assassinato de Trotsky, em 1940,
perseguido até o México, é um dos episódios mais famosos da caça interminável
de Stalin a aqueles que considerava inimigos políticos, mas a busca havia
começado muito antes.
Um dos períodos de maior perseguição
interna começou após o 17º Congresso do Partido Comunista da União Soviética,
em 1934, que mais tarde ficaria conhecido como o “Congresso dos Condenados”. Na
ocasião, a reeleição de Stalin como secretário-geral era mera formalidade, mas
a contrariedade em relação às suas políticas ficou clara quando se apuraram os
votos para o Comitê Central: acredita-se que mais de cem delegados do PCUS
tenham dado votos negativos ao nome de Stalin (o número exato foi apagado dos
registros por ordem do ditador), enquanto somente três votaram contra Sergei
Kirov, líder do Partido em Leningrado (atual São Petersburgo) e um dos
favoritos para “renovar” o comunismo.
Poucos meses depois, Kirov apareceu
assassinado em circunstâncias misteriosas. Stalin, possivelmente o mandante do
crime, usou a morte como pretexto para anunciar que havia traidores dentro do PCUS
e “expurgos” eram necessários. Nos anos seguintes, mais de 600 mil membros
do Partido e do Exército Vermelho seriam presos ou mortos. Dos 139 membros do
Comitê Central eleitos no 17º Congresso, 98 foram executados sumariamente. Os
Grandes Expurgos também ficaram conhecidos como Yezhovshchina (literalmente,
“fenômeno Yezhov”), por conta de Nikolai Yezhov, chefe da NKVD, a polícia
secreta soviética que coordenava a perseguição. Mas, no fim das contas, nem
Yezhov escapou da ira de Stalin: após desagradar o ditador, o próprio
inquisidor soviético perdeu seu cargo, acabou preso e foi executado em
1940.
7. Intervenção na
Mongólia (1937)
O controle da União Soviética sobre
países-satélite começou desde muito cedo. A Mongólia havia se tornado uma nação
independente em 1911, após escapar ao domínio da Dinastia Qing (a última casa
imperial chinesa que, em declínio, veria a China se tornar uma república no ano
seguinte), e em 1924 se tornou um país socialista.
Desde o início, os mongóis estiveram
sob o domínio do Kremlin. Quando Stalin iniciou os seus expurgos, o ditador
Khorloogiin Choibalsan pediu apoio à NKVD para fazer o mesmo em seu país.
Em solo mongol, os “inimigos da
revolução” eram principalmente os budistas: entre 20 mil e 35 mil pessoas
foram mortas, incluindo lamas, e mais de 700 mosteiros foram destruídos. Mas
até ex-líderes socialistas foram vítimas da perseguição indiscriminada: os
ex-primeiro-ministros Peljidiin Genden e Anandyn Amar também foram executados.
Choibalsan, a exemplo de Stalin, continuaria no poder até sua morte, em
1952.
8. Invasão à Polônia
(1939)
Assinado secretamente por nazistas e
soviéticos em 23 de agosto de 1939, o Pacto Molotov-Ribbentrop seria depois
justificado por Stalin como uma ação necessária para proteger o seu país. Mas o
tratado era mais do que um acordo de não-agressão entre alemães e comunistas:
também garantia a partilha da Polônia entre os dois lados. Hitler invadiu pelo
lado ocidental no início de setembro, no episódio que marcou o começo formal da
Segunda Guerra Mundial na Europa. Stalin deu início à sua invasão, desde o
oriente, dezesseis dias mais tarde.
Já combalida pela resistência aos
nazistas, a Polônia caiu rapidamente sob o jugo de Moscou. O território foi
anexado pela URSS e, de imediato, mais de 300 mil pessoas foram deportadas à
Sibéria. Calcula-se em torno de 150 mil as vítimas fatais desse período
inicial. A Polônia só teria sua soberania formal devolvida ao final da Segunda
Guerra, e mesmo assim como uma fachada: seria um dos mais importantes estados-satélite
da União Soviética até a ascensão do movimento Solidariedade e a eventual queda
da Cortina de Ferro.
Ainda na Segunda Guerra, a parceria
inicial entre Hitler e Stalin logo seria deixada de lado, também por causa da
Polônia: em 1941, os alemães invadiram o lado soviético do país, iniciando sua
investida na direção da Rússia. O fim do pacto de não-agressão entre nazistas e
comunistas levou a algumas das mais sangrentas batalhas do período – e, dos
dois lados, a alguns dos piores crimes de guerra já registrados.
9. Massacre de Katyn
(1940)
Logo após a invasão à Polônia, Stalin
decidiu cortar qualquer resistência pela raiz, executando sumariamente os
principais líderes políticos e militares do país. A URSS passaria meio século
negando seu envolvimento no crime de guerra, afirmando que o massacre havia
sido obra dos nazistas, mas reconheceu sua responsabilidade em 1990 – já no fim
do comunismo.
Em 2010, o governo russo aprovou uma
declaração culpando Stalin e outros altos oficiais soviéticos por ter dado a
ordem do massacre. Mais de 20 mil pessoas foram mortas em diferentes
lugares da União Soviética, mas o episódio passou a ser conhecido pelo nome em
que a primeira vala comum foi encontrada, a floresta de Katyn, na fronteira
entre a Rússia e a Bielorrússia.
10. Massacre de
Teodósia (1942)
Localizada na Crimeia, região foco de
disputas territoriais até hoje (pertencendo oficialmente à Ucrânia, mas ocupada
pela Rússia desde 2014), a cidade de Teodósia já esteve sob o domínio de
gregos, mongóis, tártaros, genoveses, otomanos e russos. Também uma zona
disputada na Segunda Guerra, esteve sob ocupação alemã até o final de 1941,
quando foi recuperada pelo Exército Vermelho.
Ao tomar Teodósia, os militares
soviéticos encontraram um hospital repleto de soldados nazistas convalescendo,
e os assassinaram massivamente. O crime de guerra foi descoberto após as tropas
alemãs reconquistarem a cidade, cerca de três semanas mais tarde, e encontrarem
em torno de 150 soldados da Wehrmacht mortos, alguns ainda nos leitos do
hospital, outros atirados pelas janelas e empilhados na praia próxima.
11. Massacre de
Grischino (1943)
Os soviéticos capturados pelos
nazistas acabavam se tornando vítimas de alguns dos piores crimes da Segunda
Guerra Mundial – e o Exército Vermelho acabava respondendo da mesma
forma.
O massacre de Grischino ocorreu na
Ucrânia, no início de 1943, quando 508 prisioneiros de guerra e 88 civis
foram assassinados brutalmente pelas tropas soviéticas.
Os corpos foram encontrados depois com
mutilações terríveis: segundo testemunhas, vários soldados tiveram suas
genitais arrancadas e colocadas em suas bocas; enfermeiras alemãs também foram
encontradas com os seios cortados e com sinais de estupro.
12. O “estupro de
Berlim”
Durante a conquista da Alemanha no
final da Segunda Guerra, soldados enfurecidos do Exército Vermelho queriam
vingança das atrocidades cometidas pelos nazistas durante a campanha no front
oriental.
Entre as memórias que traziam da
invasão alemã à União Soviética estavam os estupros massivos das mulheres
locais. Um dos crimes mais vis da guerra, a violência sexual ocorreu tanto por
parte de tropas aliadas quanto do Eixo – em anos recentes, nova documentação
revelando atrocidades cometidas por americanos, britânicos e franceses, além
dos soviéticos, ajudou a jogar luz sobre atrocidades que na época não foram
reportadas por muitas das mulheres, envergonhadas e amedrontadas.
A memória alemã, porém, guarda os
soldados soviéticos como os mais violentos desse período, e atribui a isso o
sentimento de vingança em relação ao que havia acontecido em suas cidades. O
Memorial Soviético de Guerra, em Berlim, é conhecido informalmente por muitos
germânicos como a “Tumba do Estuprador Desconhecido”. O número de mulheres
estupradas na Alemanha ou de crianças nascidas dessas violações permanece
desconhecido, mas alguns historiadores estimam o número em 100 mil, apenas
em Berlim.
A violência foi tamanha que mesmo
Stalin achou necessário colocar limites em suas tropas: segundo Oleg
Rzheshevsky, um dos diretores da Associação Russa de Historiadores da Segunda
Guerra, mais de 4 mil oficiais do Exército Vermelho foram condenados à morte
pelos crimes contra civis alemães nos primeiros meses de 1945.
Em seu poema épico “Noites
prussianas”, Aleksandr Solzhenitsyn escreveu sobre os estupros que testemunhou
enquanto lutou pelo lado soviético na Segunda Guerra, e o sentimento de
vingança que pairava em relação às atrocidades cometidas pelos nazistas durante
a invasão à Rússia:
“A pequena filha está no colchão,/
Morta. Quantos a possuíram/ Um pelotão, talvez uma companhia?/ Uma menina
tornou-se uma mulher,? Uma mulher transformou-se num cadáver./ Tudo se resume a
simples frases:/ Não se esqueçam! Não perdoem!/ Sangue por sangue! Dente por
dente!”
13. A “esquizofrenia
progressiva”
Opor-se ao governo não era apenas
ilegal: em muitos casos, era visto como uma doença. O uso político da
psiquiatria pelo governo soviético intensificou-se nos anos 50, por influência
de Andrei Snezhnevsky. Por pressão do governo e do próprio Snezhnevsky,
psiquiatras ligados à Academia Soviética de Ciências Médicas passaram a
rejeitar as descobertas científicas que vinham sendo feitas no país e no
exterior e se filiar ao conceito de “esquizofrenia progressiva” – um
instrumento vastamente utilizado para desqualificar opositores
publicamente.
A “esquizofrenia progressiva” trazia
sintomas que, convenientemente, se assemelhavam ao comportamento de um típico
opositor do regime: demonstrar pessimismo, não conseguir se conformar à ordem
social existente e tentar questionar as autoridades seriam sintomas claros de
que um paciente estaria desenvolvendo a fictícia desordem psiquiátrica.
Foi também uma forma de fazer a
repressão chamar menos atenção da comunidade internacional: os diagnósticos,
crescentes após o fim do stalinismo, permitiam enviar os dissidentes a
hospitais psiquiátricos em vez dos velhos gulags, que vinham sendo fechados
progressivamente – e davam a possibilidade de confinar indivíduos indesejáveis
por períodos indeterminados, muito além das penas comuns.
Os dados foram ocultados pela ditadura
e só nos anos 90 comissões investigadoras começaram a mensurar a dimensão da
repressão por vias psiquiátricas. Os números de afetados variam enormemente:
alguns pesquisadores dizem que não teriam sido mais que 200 pessoas, outros
acreditam que o número poderia passar de 20 mil internados em hospitais
psiquiátricos por demonstrar um comportamento contrário ao governo.
A corrupção da psiquiatria não caiu
por terra totalmente com o fim do regime comunista, e ainda hoje opositores de
Vladimir Putin se deparam com a velha realidade. Em 2012, as integrantes da
banda punk feminista Pussy Riot, conhecida por suas críticas ao governo,
passaram por avaliação psiquiátrica a pedido da procuradoria, que usou o
controverso diagnóstico de “transtorno de personalidade” para pedir seu
isolamento da sociedade.
14. Deportações
internas
Entre as políticas para facilitar a
conquista de novas Repúblicas Soviéticas para compor a URSS, estava a
deportação massiva e forçada de pessoas identificadas de alguma forma como
inimigas da Revolução – geralmente, setores “burgueses” e membros
da intelligentsia local. Os lugares em que os deslocamentos obrigatórios foram
impostos de maneira mais sistemática foram os países do Báltico (Estônia,
Letônia e Lituânia).
Ocupados durante a Segunda Guerra,
eles se tornaram os membros da União Soviética menos afeitos a fazer parte do
país – enquanto a maioria das outras repúblicas havia tido uma revolução
interna antes, a anexação do Báltico foi forçada desde o início.
As deportações, geralmente para a
Sibéria, ocorreram ao longo de vários anos, mas tiveram algumas ondas
principais: a Deportação de Junho, em 1941; a Operação Priboi, em 1949 e a
Operação Osen, em 1951, são algumas das mais famosas.
Vendidas como uma nova campanha de
deskulakização, elas deslocaram em torno de 150 mil pessoas e dizimaram a
resistência aos comunistas, especialmente o grupo guerrilheiro “Irmãos da Floresta”.
Após a morte de Stalin, muitos habitantes foram autorizados a voltar, mas
estima-se que cerca de 60% dos deportados já tinham morrido – e muitos
outros acabaram fundando vilarejos na Sibéria, onde permanecem até hoje.
Outros deslocamentos forçados tiveram
um forte componente racista: buscando a “russificação” de territórios, a
ditadura stalinista promoveu a limpeza étnica de grupos regionais,
substituindo-os por aqueles que considerava menos resistentes à sua política.
Quase 100 mil membros do povo kalmyk, originário do sudoeste da Rússia, foram
deportados na Operação Ulussy de 1943, e metade deles morreu na Sibéria
antes de um decreto autorizá-los a voltar para casa, treze anos depois.
A violência das deportações foi
tamanha que a própria URSS, já próxima do fim, acabaria reconhecendo como um
crime contra a humanidade – identificando-as como uma “ação bárbara do regime
de Stalin”. Em novembro de 1989, o Soviete Supremo condenou as deportações como
algo que “contradiz as fundações da lei internacional e a natureza humanista do
sistema socialista”.
15. Repressão à
Revolução Húngara (1956)
Com o final da Segunda Guerra, a
Europa passou a conviver com a ideia da Cortina de Ferro. “De Stettin, no
Báltico, a Triste, no Adriático, uma ‘Cortina de Ferro’ desceu sobre o
continente. Atrás daquela linha estão todas as capitais dos antigos estados da
Europa Central e Oriental. Varsóvia, Berlim, Praga, Viena, Budapeste, Belgrado,
Bucareste e Sofia; todas essas cidades famosas e as populações ao redor delas
estão agora naquilo que eu chamo de esfera soviética, e todas estão sujeitas,
de uma forma ou de outra, não apenas à influência soviética, mas a um controle
muito alto e em alguns casos crescente desde Moscou”, disse o premiê britânico
Winston Churchill, nos estertores da Guerra Mundial.
A Revolução Húngara de 1956 seria o
primeiro grande questionamento ao domínio soviético vindo de trás da Cortina de
Ferro – a tentativa inicial de um estado-satélite de Moscou tentar recuperar a
sua soberania e autodeterminação.
Foi, também, um teste de fogo para
detectar qual seria a nova postura do Partido Comunista após a morte de Stalin,
que naquele ano havia sido denunciado pelo seu sucessor, Nikita
Khrushchev.
O que começou como uma revolta
estudantil tomou proporções nacionais após um manifestante ser morto pela
polícia estatal húngara, a ÁVH. Nos dias seguintes, milícias armadas
anti-soviéticas começaram a bater de frente dom as tropas locais e com os
soldados do Exército Vermelho presentes no país.
Embora o governo húngaro inicialmente
tenha anunciado o interesse em negociar uma saída dos soldados soviéticos, logo
a revolta passou a ser reprimida com violência, acabando em 10 de novembro de
1956, apenas dezoito dias após o seu início.
Ao todo, cerca de 3 mil húngaros foram
mortos nos conflitos, e outros 200 mil se exilaram. O número de asilados
políticos incluía até mesmo os craques da Seleção Húngara, vice-campeã mundial
dois anos antes. Boa parte do time defendia o Honvéd de Budapeste e estava na
Espanha para uma partida quando a revolta estourou, decidindo jamais voltar.
Ferenc Puskás, maior jogador húngaro da história, acabaria assinando contrato
com o Real Madrid e chegaria a defender a Seleção Espanhola.
Dois anos após o levante, aqueles que
Moscou consideravam os principais líderes foram gradativamente executados,
entre eles Pál Maléter, o líder militar dos revolucionários, e Imre Nagy, o
primeiro-ministro húngaro no momento em que a revolução estourou, considerado
um “traidor”.
A violenta repressão, somada à denúncia
do stalinismo ocorrida mais cedo naquele ano, abalou muitos membros do Partido
Comunista ao redor do mundo, que nos anos seguintes passariam a questionar os
rumos dados pela URSS à Revolução.
16. Intervenção na
Primavera de Praga 1968
Um novo questionamento ao domínio
soviético sobre o Leste Europeu ocorreu na Tchecoslováquia entre janeiro e
agosto de 1968.
Alexander Dubcek havia sido eleito
Primeiro Secretário do Partido Comunista do país e passou a implementar uma
série de reformas que reduziam a centralização do poder e da economia,
ensaiando uma abertura em relação ao Ocidente.
Moscou buscou negociar a interrupção
das reformas nos bastidores e, diante da recusa do governo de Praga em ceder
sua autonomia, mais de meio milhão de soldados das nações ligadas ao Pacto de
Varsóvia invadiram a Tchecoslováquia na madrugada de 21 de agosto.
A intervenção militar foi uma
demonstração de força e um alerta a outros países. Marcava o início do que
ficaria conhecido como a Doutrina Brezhnev (Leonid Brezhnev havia derrubado
Khrushchev e passado a comandar a URSS em 1964): segundo ela, a
autodeterminação dos povos e a soberania das nações podiam ficar de lado se o
socialismo estivesse ameaçado – neste caso, a ameaça não era apenas ao país em
que as reformas ocorriam, mas a todas as nações sob a esfera soviética.
Relativamente, a invasão soviética de
1968 não teve um derramamento de sangue tão grande quanto outros episódios
dessa lista: foram registradas 137 mortes de civis. Alexander Dubcek também não
foi removido imediatamente de seu posto – isso só ocorreria em abril de 1969,
após a Tchecoslováquia vencer a URSS na final do Campeonato Mundial de Hóquei e
a multidão usar a celebração do título como pretexto para tomar as ruas em
protesto contra a ocupação do Exército Vermelho. Mas o encerramento forçado da
Primavera de Praga indicava que tempos duros voltariam à vida cotidiana: quase
300 mil tchecoslovacos fugiriam do país nos anos seguintes.
Como havia ocorrido em 1956, a
ocupação de 1968 também foi um momento de ruptura para comunistas e socialistas
ao redor do mundo, que passaram a criticar cada vez mais abertamente as
políticas de Moscou.
17. Janeiro Negro
(1990)
Depois de tentativas frustradas nas
décadas anteriores, a Cortina de Ferro acabaria sendo derrubada rapidamente no
final dos anos 80. A partir de 1989, regimes comunistas do Leste Europeu foram
se esfacelando um a um, e a onda de mudanças chegou também à União Soviética,
onde a Perestroika e a Glasnost de Mikhail Gorbachev haviam aumentado a liberdade
de questionar o governo e reduzido os níveis de repressão que costumavam
sufocar os movimentos opositores.
Quando ficou claro que a situação
estava saindo de controle, o governo soviético chegou a reviver a mão pesada de
outros tempos, matando centenas de manifestantes em episódios como os protestos
de Jeltoqsan, no Cazaquistão (1986), e a chamada Tragédia de 9 de Abril, na
Geórgia (1989). Um dos episódios mais conhecidos da queda da URSS foi o chamado
Janeiro Negro, quando pelo menos 90 pessoas foram mortas durante a repressão
aos protestos que pediam a independência da então República Socialista
Soviética do Azerbaijão, em janeiro de 1990.
A repressão no Azerbaijão foi
duramente censurada por oficiais do Kremlin, que proibiram a circulação da
mídia impressa e destruíram o fornecimento de energia à TV e rádio estatais na
capital, Baku.
Mesmo assim, a Rádio Free Europe,
mantida com financiamento norte-americano, conseguiu emitir as notícias para o
restante do mundo, gerando protestos em escala global. O Azerbaijão decretaria
sua independência formal em outubro de 1991. A União Soviética implodiria
definitivamente dois meses mais tarde, quando a bandeira vermelha foi baixada
em Moscou pela última vez, em 26 de dezembro de 1991.
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