segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Atenas vs Esparta: Um abismo no mundo grego

Reinaldo José Lopes


Nunca um rei espartano tinha sido tão humilhado. Depois de passar fome e sede e aguentar um calor dos diabos por quase três dias, o soberano Cleômenes e sua guarda pessoal tiveram de pôr o rabo entre as pernas, entregar suas armas e deixar Atenas.

Não seria exagero dizer que essa era a primeira grande vitória de uma invenção ateniense que ainda ia dar muito trabalho aos espartanos, a democracia – e, que ironia, o próprio rei de Esparta é que tinha tornado isso possível.

Até aí você não deve estar surpreso. Afinal, todo mundo aprende que as duas cidades-estado mais poderosas da antiga Grécia eram inimigas, e não podiam ser mais diferentes entre si.

Os atenienses valorizavam a arte e a literatura, brigavam por participação popular no governo e eram grandes navegantes. Os espartanos achavam que homem que é homem fala pouco, louvavam a obediência acima de tudo e ficavam de perna bamba só de ver um navio.

Acontece, porém, que as relações entre Atenas e Esparta estão longe de ter sido tão simples. Que o digam os filósofos, escritores e políticos atenienses que não escondiam sua admiração pelos rivais do sul.

Durante a guerra dos gregos contra os persas, a partir de 480 a.C., as duas cidades comandaram lado a lado a resistência ao invasor, Esparta em terra e Atenas no mar.

Sob certos aspectos, pode-se mesmo afirmar que os espartanos foram pioneiros nas reformas políticas que depois fariam a fama de Atenas, aumentando a participação dos cidadãos comuns nas decisões do governo. Foram primeiro os conflitos de interesse (a supremacia sobre as outras cidades gregas e o controle do comércio com a Ásia), e só depois as diferenças ideológicas entre democracia ateniense e rigidez espartana, que acabaram levando a uma baita briga entre as cidades, na qual a Grécia inteira afundou.

Separadas no nascimento

Embora a origem de ambas seja misteriosa, tudo indica que os atenienses chegaram primeiro. Eles já ocupavam a península de Ática desde o período micênico (antes do século 13 a.C.). Não é à toa que eles costumavam se considerar autóctones, isto é, eles achavam que seus antepassados haviam nascido por ali mesmo.

Por volta de 700 a.C., pelo menos, toda a região, composta por assentamentos rurais relativamente distantes uns dos outros, já se constituía numa unidade política comandada por Atenas. O solo pobre produzia trigo, uva e azeitona e fornecia a argila para produzir a boa cerâmica, que logo se tornou um dos principais artigos de exportação.

Já em Esparta todo mundo sabia que era recém-chegado. Os espartanos eram dórios, um dos quatro principais grupos étnicos em que se dividiam os gregos (aqueus, jônios e eólios eram os outros) e chegaram ao Peloponeso (sul da península grega) vindos do noroeste, depois do fim do período micênico. Eles derrotaram os antigos habitantes e transformaram alguns em vassalos.

Outros, os hilotas, não tiveram tanta sorte: viraram escravos e tinham de cultivar as terras dos cidadãos espartanos. Até por volta de 700 a.C., o domínio se estendia apenas pela Lacônia (onde ficava a própria Esparta), mas uma bem-sucedida expansão para o oeste acabou lhes dando também a fértil Messênia.

Por muito tempo, acreditou-se que o subproduto dessa conquista foi a primeira e única revolução da história de Esparta. Uma minoria de nobres teria abocanhado a maioria das terras da Messênia. Os cidadãos mais pobres se revoltaram e conseguiram redistribuir a terra e obtiveram o direito a vetar as decisões dos dois reis (sim, havia dois deles em Esparta) e da Gerúsia, ou Senado. “Mas uma equipe inglesa que publicou seus achados sobre a Lacônia em 2003 sugere que essa Esparta austera talvez tenha surgido mais tarde, por volta de 540 a.C.”, diz o historiador José Francisco Moura, da Universidade Veiga de Almeida, no Rio de Janeiro.

Apesar da incerteza quanto à data, o fato é que as mudanças em Esparta brotaram dos mesmos problemas que atormentavam Atenas nos séculos 7 e 6 a.C. Ali também só uma minoria de cidadãos, de origem nobre, podia exercer os principais cargos públicos. Os homens livres, mas pobres, tendo de se virar com pedaços de terra que mal davam para o seu sustento, viviam sob a ameaça da escravidão por dívidas.

As reformas do político e poeta Sólon (por volta de 590 a.C.) acabaram com essa prática e permitiram que pessoas ricas de origem plebeia entrassem na política, mas não foram suficientes para acabar com as tensões sociais. Quem se aproveitou disso foi Pisístrato, que assumiu o poder na cidade.

O governo do tirano até que conseguiu trazer um pouco de paz às terras atenienses, mas bastou que ele morresse para que a cidade voltasse às turras, com seus filhos Hípias e Hiparco brigando juntos para se manter no poder. É aí que entra Cleômenes, um dos reis de Esparta. “Até então, parece que havia pouco contato entre as cidades. Nem mesmo cerâmica ateniense foi encontrada em Esparta, ou vice-versa”, afirma Moura.

A cerâmica era uma espécie de saquinho plástico do mundo antigo, que transportava de azeitonas a lixo e, na época, peças atenienses já podiam ser encontradas na Itália e nas cidades gregas da Ásia. No entanto, por volta de 520 a.C., Esparta havia se tornado a potência dominante do sul da Grécia, à frente da chamada Liga do Peloponeso.

Os espartanos passaram a ter interesses mais amplos e, além do mais, tinham fama de não tolerar tiranos. Que tal unir o útil ao agradável e restaurar o governo legítimo em Atenas – um governo que seria eternamente agradecido (e, talvez, subordinado) a Esparta?

Foi o que Cleômenes fez em 510 a.C., botando Hípias para correr. Porém, as lutas na cidade não cessaram. Em meio a uma guerra civil, quem estava levando a melhor era Clístenes, um membro da nobreza, que propunha uma lista de reformas que, na prática, criava uma democracia.

O rei de Esparta não gostou da ideia e se dispôs a derrubar o novo regime em favor de um amigo ateniense, Iságoras. Mas a flecha saiu para o lado errado: embora conseguisse tomar a Acrópole, sede do poder ateniense, Cleômenes não contava com a resistência do povo comum, que o cercou e acabou forçando-o à rendição.

Inimigo comum

Vinte anos depois da ascensão da democracia em Atenas e da derrota de Cleômenes, as duas potências tiveram de colocar as diferenças de lado, para enfrentar um problema maior. Liderado pelo rei Xerxes, o Império Persa lançou um ataque maciço contra a Grécia, e Atenas e Esparta decidiram resistir.

Graças a sua aliança com quase todas as cidades do Peloponeso, os espartanos ainda eram os mais poderosos dos gregos, mas sua força só era realmente respeitável em terra. Os persas, no entanto, atacavam por terra e por mar, e no oceano a frota ateniense foi fundamental. Mesmo assim, a influência espartana era tamanha que o comando da frota grega também ficou nas mãos deles, ao menos no nome.

Por alguns anos, a parceria foi um sucesso. Em 480 a.C., a frota unida dos gregos esmagou as forças persas perto da ilha de Salamina, na Ática, e um ano depois o regente espartano Pausânias completou o serviço em terra, na batalha de Platéia. A caça virou caçador: os atenienses e o rei espartano Leutiquides avançaram para as cidades gregas da Ásia e lá venceram a frota persa outra vez, em 478 a.C.

Nesse momento, porém, os espartanos, desacostumados ao papel de potência marítima, deixaram que Atenas continuasse a missão de libertar os gregos asiáticos da Pérsia. “No fim das contas, os gregos deveram sua libertação não apenas a Esparta, mas principalmente a uma Atenas que Cleômenes tinha criado por engano, e que fizera de tudo para destruir”, afirma W.G. Forrest, historiador da Universidade de Oxford e autor do livro A History of Sparta (“Uma História de Esparta”).

Cada um para o seu lado

Ao longo do século 5 a.C., Atenas se transformou na principal potência marítima da região. A princípio, muitas das cidades gregas aceitaram se aliar a ela, mas, aos poucos, o que era uma liga de alianças acabou virando um império. Para José Francisco Moura, cidades como Corinto, que fazia parte da Liga do Peloponeso e também tinha interesses marítimos, acabaram levando Esparta a entrar em conflito com Atenas.

As duas gigantes ficaram frente a frente na chamada Guerra do Peloponeso, em 432 a.C. A princípio, os atenienses conseguiram escapar do pior dominando os mares e se refugiando atrás de suas muralhas. A captura de centenas de soldados espartanos no próprio Peloponeso chegou até a instaurar uma paz passageira entre os rivais.

Mas Atenas perdeu a maior parte da frota num ataque desastrado na costa da atual Itália, e os espartanos aproveitaram para contra-atacar. Dessa vez financiados por um inusitado aliado, os persas, eles possuíam uma frota respeitável.

O conflito terminou com a vitória de Esparta em 404 a.C. Mas nenhum dos dois lados saiu realmente vencedor. Atenas perdeu os navios que lhe tinham restado e as muralhas que defendiam a cidade e, em Esparta, o impacto da guerra foi ainda maior. Apesar da vitória, a sociedade espartana desmoronou – as riquezas vindas do ex-império ateniense exacerbaram as diferenças sociais entre os espartanos.

Na cidade, a concentração de terras voltou com tudo, e o número de homens com direitos de cidadania, que formavam o coração do Exército espartano, diminuiu muito. É que só os homens que podiam contribuir financeiramente para as refeições comunais do Exército eram considerados cidadãos plenos, e muitos espartanos tinham se tornado pobres demais para isso. Ao ser esmagado em Leuctra pelos soldados da cidade de Tebas, em 370 a.C., o Exército de Esparta não contava com muito mais que mil soldados.

Por algum tempo, até a metade do século 4, Tebas se tornou o poder dominante da Grécia, ao lado de uma Atenas recuperada da guerra e ainda democrática. Esparta tinha virado carta fora do baralho, para todos os efeitos: perdeu até a Messênia (os tebanos proclamaram a independência da região).

Mas uma nova força estava surgindo no tabuleiro: o rei Filipe, da Macedônia, pai de Alexandre, o Grande. Em 338 a.C., ele exterminou as forças combinadas de Atenas e Tebas, submentendo-as e acabando com a independência helênica.


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