segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Batalha no Gelo

Sergio Cauti



Santo para a Igreja Ortodoxa, herói para o povo, mito para a Rússia. Protagonista central de eventos que realinharam o equilíbrio religioso e político no Leste Europeu, na Idade Média, e grande líder militar e político. O príncipe Alexandre Nevsky foi tudo isso. O feito que lhe garantiu lugar na História e no imaginário mundial foi a vitória em uma batalha decisiva para a nação russa, travada sobre um lago congelado. A Batalha do Gelo foi um confronto modesto diante de épicos que mudaram a História, como Waterloo e Stalingrado. Mas mudaria para sempre o destino da Rússia.

Ataques de vikings

Os antecedentes do confronto têm lugar décadas antes. Na primeira metade do século 13, o Rus’ de Kiev – primeiro grande Estado eslavo da História – era uma mistura de etnias e culturas e vivia um período de prosperidade. Isso até os vikings dominarem a região. Mas Kiev entraria definitivamente em colapso em 1240, quando o mongol Batu Khan, descendente de Gêngis Khan, tomaria definitivamente a capital do Rus’. Os príncipes russos sobreviventes e as cidades-estado que não foram destruídas submeteram-se ao Khan, que fundou na região o Canato da Horda Dourada, anexando-o ao Império Mongol.

Novgorod estava entre as poucas que escaparam. Unindo habilidade política ao pagamento de pesados tributos aos mongóis, conseguiu manter sua independência.

Mas na Idade Média, bonança atraía violência. Se Novgorod escapara da ameaça dos mongóis vindos do leste, estava prestes a enfrentar um perigo maior: os europeus, que pressionavam do oeste. Os suecos foram os primeiros. Queriam controlar as ricas rotas fluviais entre o Báltico e o Mar Negro. Com uma forma de governo rara para a época, Novgorod escolhia, entre a aristocracia, o Kniaz, um príncipe com o mandato temporário de comandante político e militar. O cargo era revogável pela assembleia do povo, a Vetche. O Kniaz de então era Alexandre Jaruslavic, de 19 anos.

Alexandre e sua pequena armada atacaram o Exército sueco às margens do Rio Neva, destruindo-o completamente. Foi tão definitiva a derrota, que a vontade dos suecos em conquistar o território russo desmoronou. A vitória mudaria o sobrenome de Alexandre para “Nevsky” (em russo, “do Neva”). Mas faria surgir forte inveja na aristocracia, os chamados boiardos, o que obrigaria o Kniaz a se exilar. Logo, uma ameaça bem pior do que os suecos faria a aristocracia mudar de ideia. Uma ordem de monges guerreiros de origem alemã, os Cavaleiros Teutônicos, invadira a vizinha Livônia, atual Letônia, que havia se tornado o epicentro das Cruzadas do Norte.

O que os movia era o impulso de levar o cristianismo, pela espada, aos povos pagãos da Europa do Leste. Novgorod professava o cristianismo ortodoxo.

Mas, se algum cavaleiro teutônico foi tomado por alguma dúvida moral sobre uma possível luta de cristãos contra cristãos, o papa Gregório IX, não. Abençoou a expansão como forma de glorificação do catolicismo.

Os cruzados avançavam em direção de Novgorod e os boiardos chamaram o príncipe de volta. A ofensiva teutônica começou no inverno de 1240. Os cruzados chegaram com sua pesada cavalaria. Devastaram e saquearam o que encontraram pela frente e conquistaram Pskov, parceira comercial de Novgorod. O jovem príncipe juntou à sua guarda pessoal, formada por cavaleiros de elite, uma milícia com gente de Novgorod e dos clãs tribais. Atacou de surpresa e reconquistou Pskov. Os prisioneiros foram libertados, mas não houve piedade aos boiardos que colaboraram com o invasor. Foram enforcados.

A armadilha

Os teutônicos eram soldados profissionais. Passada a surpresa, reorganizaram-se e passaram ao contra-ataque. Perto de Tartu exterminaram parte do Exército de Nevsky em missão de observação. O revés fez o príncipe mudar sua estratégia. Era hora de recuar para enfrentar os teutônicos em terras conhecidas. Como local do confronto, Nevsky escolheu o Lago Peipus. O lago era profundo, estava congelado e era cercado por pântanos que davam passagem somente em três pontos, que Nevsky conhecia bem. O príncipe também sabia que naquele começo de abril a superfície gelada do lago era fina. E não aguentaria o peso da cavalaria teutônica. Era possível montar uma armadilha para os cruzados, percebeu. Posicionou suas tropas para obrigar o inimigo a cavalgar bem em cima do gelo e aguardou. Os alemães caíram no engodo. Mesmo em inferioridade numérica, 800 cavaleiros contra 5 mil russos, estavam seguros de sua superioridade bélica, com seus poderosos cavalos e pesadas armaduras.

Assim, subestimaram o inimigo, considerando-os um bando de camponeses mal-armados e sem treinamento militar. Não deixavam de ter razão. “Os homens de Nevsky não eram soldados. Eram camponeses tirados à força de seus trabalhos rurais, não treinados e mal-armados”, diz Mikhail Krom, professor de Estudos Históricos Comparados na Universidade Europeia de São Petersburgo.

Os cruzados repetiram a clássica e bem-sucedida tática utilizada em todos os confrontos precedentes: cavalgar compactos para o centro do Exército inimigo, usando a força de impacto da cavalaria pesada para dividi-lo em duas partes e enfrentá-las separadamente. Nevsky estava preparado. Quando o inimigo estava próximo, deu a ordem de abrir a frente em duas partes, que atacaram os invasores pelos flancos. Isso obrigou os teutônicos a permanecerem no centro do lago. O príncipe escondia mais um trunfo: arqueiros mercenários mongóis a cavalo. Foram decisivos. Esse detalhe tático entrou na tradição eslava como o mito de que anjos chegaram dos céus salvando o príncipe.

Sob a água e o gelo

Cercados e ofuscados pelo sol refletido no gelo, os cruzados foram fustigados pelas flechas e atacados pela infantaria. O confronto foi rápido, mas sangrento. Os cruzados tentaram se retirar da superfície do lago, mas o gelo quebrava por debaixo deles. Cavalos e cavaleiros desapareciam nas águas geladas. O ponto de força da cavalaria teutônica, as armaduras pesadas, se revelou sua maldição. Somente 300 cruzados se salvaram do massacre. Mais uma vez, Nevsky voltou triunfante como gênio militar. A estratégia de amizade com os dominadores asiáticos lhe assegurou, em 1252, a nomeação como Grão-Príncipe. Alexandre começou uma política de acomodação com os mongóis. Não lutou contra eles e perseguiu os rebeldes que não queriam pagar os tributos ao Canato da Horda Dourada.

Mas, segundo uma versão aceita pelos historiadores, os mongóis mostraram-se ingratos e o teriam envenenado, aos 43 anos, durante uma visita oficial. “Provavelmente, ele tinha se tornado independente demais”, especula Mari Isoaho, professora de História da Universidade de Helsinque e autora do livro The Image of Aleksandr Nevskiy in Medieval Russia. Três séculos mais tarde, a Igreja Ortodoxa proclamou Alexandre Nevsky santo, dedicando-lhe igrejas e monastérios em toda a Rússia.



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EUA: os donos do mundo

Igor Fuser



Responda rápido: quem descobriu os Estados Unidos? Se você é como eu e não sabe a resposta, não se acanhe. Os americanos também não. É que para eles, diferentemente de nós, brasileiros, que marcamos o nascimento do Brasil na chegada de Cabral, o evento fundador de sua nacionalidade é outro: a chegada do advogado britânico John Winthrop a Massachusetts, em 1630. Adepto de uma seita religiosa radical para a época, os puritanos, e descontente com o anglicanismo – a religião oficial dos ingleses e do rei Carlos I –, Winthrop e as cerca de 700 pessoas que o acompanharam deixaram a Inglaterra para criar sua própria sociedade, num lugar ainda intocado pelos vícios: a América. Winthrop e sua turma adoravam a idéia de estarem chegando a uma espécie de Terra Prometida, a ser regida pelas leis divinas e, portanto, predestinada a dar certo e a se tornar um exemplo de virtude para o resto do mundo. Os Estados Unidos ainda levariam 140 anos para nascer, mas a idéia do que é ser americano estava lançada.

Para entender esses primeiros americanos, no entanto, é preciso lembrar como era a Inglaterra e como era a vida por lá, no século 17. Sim, porque os primeiros americanos eram britânicos e, portanto, súditos do maior império de seu tempo.

Desde o século anterior, principalmente no reinado de Elizabeth I, os ingleses vinham assumindo o posto de superpotência que pertencera à Espanha (e do qual até Portugal já tirara uma casquinha). Ser uma potência, na época, era ter navios. E a Inglaterra tinha uma grande, uma baita frota para levar seus produtos o mais longe possível e trazer de lá matérias-primas baratinhas, quando não de graça, para fazer mais produtos e levá-los ainda mais longe. Do ponto de vista social, o vaivém de mercadorias havia criado nas cidades uma camada de homens ricos, chamados burgueses, e uma grande massa de homens pobres, resultado do êxodo rural. Winthrop fazia parte do primeiro grupo, bem como a imensa maioria dos puritanos, que estavam preocupados com a elasticidade moral típica das grandes cidades: ninguém mais ia à igreja, os políticos mandavam mais que os religiosos e o dinheiro mandava ainda mais que os políticos. A colonização de novas terras pareceu, então, uma boa idéia em todos os sentidos e, para colocá-la em prática, a coroa inglesa chamou duas empresas: as companhias de Londres e de Plymouth, que ficaram responsáveis por recrutar, armar e, mais importante, financiar as viagens. É por isso que é comum dizer que a colonização dos Estados Unidos foi feita pela iniciativa privada. Fato que se tornou um dos pilares da civilização norte-americana, do qual eles se orgulham tanto.

Esses seriam os fundadores dos Estados Unidos, mas é bom lembrar que eles não eram os únicos a ocupar o território americano, no século 17. Ou seja, sua Terra Prometida já tinha dono. Os primeiros a chegar lá foram os espanhóis, no século 16. Mais preocupados em explorar as ilhas do Caribe e o ouro e a prata do México, eles se aventuraram pela costa da atual Flórida, onde, quando não estavam procurando a fonte da juventude ou sendo devorados por aligatores, criaram meia dúzia de entrepostos comerciais. No século 17, porém, os espanhóis já não podiam mais sustentar seus interesses imperiais na América e se concentraram em administrar e explorar a Nova Espanha, ou México (região que ia, além do México atual, ao Texas e à Califórnia). Havia ainda uma larga fatia pertencente aos franceses, a chamada Louisiana, que ia do Mississípi à fronteira com o Canadá. Além, é claro, dos índios que já estavam lá. Vinte e cinco milhões deles.

Inimigo interno

A predominância dos colonos ingleses sobre seus vizinhos foi um longo processo que incluiu negociações diplomáticas, algum dinheiro e muita, muita porrada. Os primeiros a dançar, só para variar, foram os índios que ocupavam a região litorânea onde os ingleses aportaram. Quem não fugiu morreu pela guerra e, sobretudo, pelas doenças que os brancos espalhavam, muitas vezes, de propósito. Em 1673, cercado no forte Pitt pelos guerreiros do chefe Pontiac, o general inglês Jeffrey Amherst ordenou ao capitão Simon Ecuyer que enviasse aos índios cobertores e lençóis. Mostra de boa bontade? Que nada: os cobertores vinham direto da enfermaria, onde os soldados padeciam vítimas de uma epidemia de sarampo. Em alguns dias, os ingleses estavam curados e os índios, milhares deles, mortos.

O próprio John Winthrop, eleito o primeiro governador de Massachusetts, tinha uma desculpa na ponta da língua para justificar a tomada das terras dos índios. Ele as declarou “vácuo legal”. Os índios, dizia, não “subjugaram” a terra e, portanto, possuíam apenas “direito natural” sobre ela, mas não “direito civil”. E, como bom advogado que era, para ele um direito apenas “natural” não tinha nenhum valor jurídico.

A oeste e norte dos assentamentos ingleses, colonos franceses ocupavam regiões que, para populações dedicadas à caça e ao comércio de peles, eram de grande importância econômica, como as terras banhadas pelos rios Ohio, Missouri e Mississípi. As hostilidades eram constantes e, até a metade do século, em pelo menos cinco ocasiões os vizinhos acabaram em guerra.

A animosidade entre os colonos na América era alimentada, ainda, pela rivalidade entre Inglaterra e França na Europa, fato determinante nas relações internacionais do século 18. Em pleno processo de desenvolvimento capitalista, a burguesia inglesa via na França, onde a monarquia entrava em crise, um obstáculo a sua expansão comercial, marítima e colonial. A rixa chegaria ao ponto máximo entre 1756 e 1763, durante a Guerra dos Sete Anos, e teria impacto decisivo sobre a vida na América. Após a guerra, com o pretexto de recuperar as finanças do Estado, os ingleses, que já vinham adotando medidas mais rígidas em relação ao monopólio sobre as colônias americanas (como as proibições da fabricacão de aço, em 1750, e de tecido, em 1754), adotaram uma série de leis para garantir as vendas (e os lucros e os impostos pagos pelos produtos de empresas inglesas, particularmente o chá). A insatisfação nas colônias atingiu o máximo quando os territórios da Lousiana, tomados da França, foram declarados da coroa e os colonos, proibidos de pisar por lá. Uma senhora decepção, principalmente para fazendeiros e criadores de gado do sul que esperavam ocupar essas terras.

Em 1774, os americanos estavam cheios dos ingleses e para se livrar deles foram tão, mas tão tipicamente americanos. Primeiro organizaram um boicote (um bloqueio comercial) aos produtos da metrópole. Em seguida, formaram comitês pró-independência que tinham duas funções: fazer propaganda antibritânica e juntar armas e munições. No ano seguinte, a guerra começou e, em 1776, os americanos declararam-se independentes. Para tanto, escreveram um documento maravilhoso. A Declaração da Independência teve grande significado político não só porque formalizou a independência das primeiras colônias na América, dando origem à primeira nação livre do continente, mas porque trazia em seu bojo o ideal de liberdade e de direito individual e o conceito de soberania popular, representando uma síntese da mentalidade democrática e liberal da época. Redigido por Thomas Jefferson, o texto, em seu trecho mais famoso, afirma: “Todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, entre estes a vida, a liberdade e a procura da felicidade. A fim de assegurar esses direitos, governos são instituídos entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento dos governados. Sempre que qualquer forma de governo se torne destrutiva de tais fins, cabe ao povo o direito de alterá-la ou aboli-la e instituir novo governo, baseando-o em tais princípios e organizando-lhe os poderes pela forma que lhe pareça mais conveniente para realizar-lhe a segurança e a felicidade”. Isso, no fim do século 18, soou como revolução. E era. Pela primeira vez na história uma colônia se tornava independente por meio de uma revolução. Com essa iniciativa, os americanos se anteciparam à Revolução Francesa e criaram o primeiro regime democrático do planeta. E isso não era pouca coisa.

Mas os ingleses, é claro, não deram a menor bola para toda essa poesia e enviaram tropas para tomar os principais portos e vias fluviais e isolar as colônias. Liderados por George Washington, os americanos organizaram um exército, formaram milícias populares e reagiram. Mas não lutaram sozinhos: a França, eterna inimiga dos ingleses, entrou na guerra em 1778 e a Espanha, no ano seguinte. Em 1781 as tropas coloniais e francesas derrotaram os ingleses na decisiva Batalha de Yorktown e, em 1783, foi assinado o Tratado de Paris, no qual a Inglaterra reconhecia a independência das 13 colônias.

Rumo oeste

Após a independência, os agora denominados Estados Unidos da América ainda eram um paisinho nanico que se estendia verticalmente entre o Maine e a Flórida e horizontalmente entre o Atlântico e o Mississípi. Mas isso estava prestes a mudar. Alimentados ideologicamente pelo chamado “destino manifesto”, que defendia a idéia de que os americanos teriam sido escolhidos por Deus para a missão de ocupar as terras entre os oceanos Atlântico e Pacífico, os Estados Unidos iniciaram um processo de expansão que se estenderia por mais de um século e que, no final, lhes daria as fronteiras atuais e o posto de quarto maior país do mundo. Primeiro eles foram às compras e, em 1803, adquiriram dos franceses a Lousiana, por 15 milhões de dólares (ou 257 bilhões de dólares em valores atualizados). Em seguida, em 1819, compraram a Flórida da Espanha por apenas 5 milhões de dólares. O Oregon, na costa do Pacífico, cedido pela Inglaterra em 1846, saiu de graça, e o Alasca, comprado da Rússia em 1867, custou 7 milhões de dólares.

O novo país não parava de crescer e, enquanto a Europa era varrida pelas guerras napoleônicas, os Estados Unidos tornavam-se a terra das oportunidades, da liberdade e dos imigrantes. Atraídos pelo trabalho ou pelo ouro – descoberto na Califórnia, em 1848 –, milhões deles chegavam da Inglaterra, Itália, Irlanda, Espanha, Suécia, Polônia e Rússia, entre outros, no maior movimento migratório internacional da história. A população do país saltou de 4 milhões, em 1801, para 32 milhões em 1860.

No campo político, o expansionismo tinha um patrocinador de peso: o presidente James Monroe, que governou entre 1817 e 1825 e foi autor da frase “América para os americanos”. A idéia da chamada Doutrina Monroe era fazer frente à onda recolonizadora que tomou conta da Europa, após a derrota de Napoleão. Para o historiador americano Howard Zinn, a frase “deixou claro para as nações imperialistas européias, como Inglaterra, Prússia e França, que os Estados Unidos consideravam a América Latina como sua área de influência”. Na prática, conforme os interesses territoriais dos Estados Unidos aumentaram, a Doutrina Monroe ganharia outra definição, muito mais sarcástica: “América para os norte-americanos”.

Dita com sarcasmo ou não, a Doutrina Monroe funcionou no caso da ocupação dos territórios do México. Desde que se tornaram independentes da Espanha, em 1824, os mexicanos permitiram que os americanos ocupassem terras no norte do país, exigindo em troca apenas a adoção do catolicismo nessas áreas. Envolvido em constantes conflitos pelo poder e por ditaduras, os mexicanos nunca consolidaram seu poder na região e, em 1845, os colonos americanos proclamaram a independência do Texas em relação ao México, incorporando-o aos Estados Unidos. Iniciava-se a Guerra do México. Em três anos, a ex-colônia espanhola perdeu, além do Texas, o Novo México, a Califórnia, Utah, Nevada e partes do Colorado e do Arizona. Ou seja, depois da guerra, cerca de metade das terras do México incorporou-se aos Estados Unidos.

Restava a conquista das terras indígenas, conhecidas como Oeste Selvagem. Quando os ingleses chegaram, havia mais de 25 milhões de índios na América do Norte e cerca de 2 mil idiomas diferentes. Ao fim das chamadas “guerras indígenas”, restavam 2 milhões, menos de 10% do total. Para o etnólogo americano Ward Churchill, da Universidade do Colorado, esses três séculos de extermínio e, particularmente, o ritmo com que isso ocorreu no século 19 caracterizaram-se “como um enorme genocídio, o mais prolongado que a humanidade registra”.

Ao lado da expansão, veio a prosperidade econômica. Enquanto o norte crescia com o comércio e a indústria cada vez mais sólida, o sul permanecia agrícola e as novas terras do oeste eram tomadas pela pecuária e pela mineração. Ao longo do século 19, essas diferenças se agravaram. “Os Estados Unidos formavam um único país, mas esse país pensava, trabalhava e vivia diferente, abrigando na realidade duas nações: o Norte-Nordeste, industrial e abolicionista, de um lado, e o Sul-Sudeste, rural e escravista, de outro”, afirma o historiador Phil Landon, da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos. Segundo ele, a manutenção da escravidão no Sul, associada a outros elementos também conflitantes, como questões alfandegárias, levaram, em 1860, as duas metades à guerra civil, na qual morreram 620 mil americanos, ou 2% da população.

Fronteira final

O Norte ganhou a guerra, os Estados permaneceram unidos e partiram na direção do desenvolvimento, o que, na época, significava ir mundo afora buscando consumidores para os produtos de sua indústria. O acesso ao Pacífico deu às ambições americanas um caminho óbvio: a Ásia. E foi ali que os Estados Unidos definiram as linhas mestras da sua influência internacional. Ao contrário das potências coloniais européias, que ocupavam e mantinham o controle político de suas colônias – caso da Inglaterra na Índia e da França na Indochina, por exemplo –, a jovem nação americana não estava interessada em exercer o domínio sobre outros povos. Cada país que cuidasse dos assuntos internos à sua maneira, desde que os interesses comerciais americanos fossem preservados. Essa estratégia levava o nome de “Portas Abertas”, ou seja, o acesso dos produtos e dos capitais americanos a qualquer lugar do mundo.

Mas o fato é que nem sempre as portas se abriam apenas com a conversa dos enviados de Washington. Nesses casos, era preciso um empurrãozinho. Foi o que ocorreu com o Império Japonês, que ficou fechado, durante séculos, ao intercâmbio com o exterior. Em 1852, depois de 15 anos de infrutíferos esforços diplomáticos, a paciência americana acabou. Quatro navios de guerra, sob o comando do comodoro Matthew Perry, posicionaram-se na baía de Tóquio e apontaram seus canhões para a cidade. Um emissário foi à terra para negociar – e ameaçar – as autoridades japonesas. Caso se recusassem a liberar os portos do país ao comércio, seriam bombardeados. Os japoneses toparam. Acordo semelhante foi firmado com a China, que estendeu aos americanos os privilégios concedidos aos europeus.

No fim do século 19, o país já possuía a maior economia do planeta e uma força naval só comparável à inglesa e à prussiana. O avanço das fronteiras estava esgotado e todos os territórios, no leste e no oeste, colonizados. Uma severa recessão econômica, iniciada em 1893, insuflou as tensões sociais até então mantidas sob controle graças à permanente abertura de novas terras para a exploração. Entre as elites econômicas, começou a prosperar a idéia de que a única saída para a crise era a ampliação dos mercados no além-mar. Na mesma época, um capitão da Marinha americana, Alfred Thayer Mahan, publicou seu livro A Influência do Poder Marítimo na História. A obra, que teve entre seus leitores mais entusiastas o futuro presidente Theodore Roosevelt, propunha a instalação de bases navais americanas no Caribe e no Pacífico e a abertura de uma ligação entre os oceanos pelo Panamá. Só assim seria possível sustentar o avanço comercial dos americanos no Extremo Oriente, onde se concentrava a competição entre as potências econômicas ocidentais. As idéias de Mahan orientaram a decisão de anexar o Havaí, em 1897. Também influenciaram na determinação de recorrer às armas para abiscoitar as possessões espanholas que ainda restavam.

Fazer uma guerra contra a Espanha – e sua influência imperial – tinha entre seus líderes, além de políticos ambiciosos como Ted Roosevelt, donos de jornais, como William Randolph Hearst – o magnata da imprensa que inspirou o filme Cidadão Kane, de Orson Welles. Era gente que achava que o “destino manifesto”, ou seja, a predestinação americana para liderar os países rumo à democracia, deveria ir além da América do Norte. “A Espanha, em plena decadência, enfrentava rebeliões anticoloniais em Cuba e nas Filipinas, e os partidários da guerra diziam que os Estados Unidos tinham o dever de ajudar os rebeldes em luta pela liberdade”, diz a historiadora Sophia Rosenfeld, da Universidade da Virgínia. O pretexto para a ação militar ocorreu depois da explosão de um navio americano no porto de Havana, em 18 de fevereiro de 1898. Os jornais americanos trataram o fato como um atentado arquitetado pela Espanha. “Querendo evitar a guerra, os espanhóis chegaram a se desculpar, mas hoje há praticamente um consenso entre os historiadores de que a explosão não foi um ato de guerra, mas, provavelmente, acidental”, afirma Sophia. Pressionado pela histeria belicista, em 25 de abril o presidente William McKinley declarou guerra à Espanha.

A Espanha, totalmente despreparada, com equipamento antiquado, quase não ofereceu resistência. Dos 200 mil espanhóis em Cuba, apenas 12 mil foram mobilizados para defender Santiago, na maior batalha terrestre contra os americanos. A Marinha americana arrasou os antigos navios espanhóis sem sofrer qualquer baixa. Nas Filipinas, a situação não foi diferente. A principal batalha naval foi travada na baía de Manila, no dia 1º de maio. Seis dos mais modernos e bem armados navios de guerra americanos enfrentaram a esquadra espanhola formada por sete navios. Três deles eram de madeira e um quarto precisou ser rebocado até o local da batalha. Os canhões instalados em terra, em Manila, não puderam ser usados, pois os comerciantes espanhóis impediram que entrassem em combate temendo que isso provocasse disparos dos navios americanos contra suas propriedades na orla.

Os espanhóis se renderam em menos de quatro meses, em 12 de agosto, e os Estados Unidos emergiram, aos olhos do mundo, como uma verdadeira potência imperial. Cuba, formalmente libertada do jugo colonial, passou a ser administrada pelos americanos, que mantiveram os rebeldes locais à margem do poder. Porto Rico se integrou aos Estados Unidos e as distantes ilhas Filipinas foram anexadas, transformando-se na primeira colônia americana.

Os filipinos, frustrados por não obterem a independência, se rebelaram em 1899. Os Estados Unidos levaram três anos para esmagar a insurreição, numa campanha em que mobilizaram 120 mil soldados. Os combates provocaram a morte de 4 mil americanos e mais de 200 mil filipinos, na maioria civis, vítimas dos bombardeios indiscriminados e da fome, causada pela destruição das lavouras. Foi a primeira vez que os americanos enfrentaram um povo em luta pela libertação nacional.

Poder global

A vitória na Guerra Hispano-Americana garantiu aos americanos o controle do Caribe e da América Central. Na gestão de Ted Roosevelt, iniciada em 1901, o país instalou um regime de tutela política e financeira sobre a região e despachou tropas para o México, Nicarágua, Haiti e outros países, a pretexto de ensiná-los a “eleger os homens certos”, como diziam as propagandas americanas da época, para os postos de governo. A velha Doutrina Monroe, de 1823, ganhou finalmente vigência plena. Em 1904, o Congresso americano adotou como política oficial o direito de intervir nos países latino-americanos que se mostrassem incapazes de garantir a ordem interna ou de honrar suas dívidas com os bancos estrangeiros. Roosevelt escreveu textualmente na sua mensagem ao Congresso, por ocasião de sua posse, que os Estados Unidos, “embora relutantes”, estavam prontos a “exercer seu papel de polícia internacional” na América Latina nos casos em que se verificasse “a crônica incapacidade” (dos governantes locais) ou “a impotência que resulte no enfraquecimento dos laços da sociedade civilizada”.

Os Estados Unidos entraram na Primeira Guerra Mundial, em 1917, como a única potência hegemônica em seu próprio hemisfério, e saíram dela ainda mais fortes, como a maior força militar do planeta – afinal, foi o Tio Sam quem desempatou o jogo nas trincheiras da Europa, selando a derrota dos impérios alemão, austro-húngaro e turco-otomano. Começava a investida americana pela supremacia global que, no mundo abalado pela recessão do período entre-guerras, pela ascensão das ideologias fascistas e, por fim, pela Segunda Guerra, só se confirmaria nas cinzas de Hiroshima, quando os Estados Unidos deram uma mostra – talvez a maior de todas – de seu poder e determinação militar. “Depois da guerra e diante da destruição sofrida pelos eventuais competidores, os americanos passaram a dominar a maior parte do globo”, diz o historiador Amadeo Giceri, da Universidade Estadual do Kansas. O vazio de poder em escala global e o confronto com a União Soviética – um rival de segunda classe, restrito a seu cinturão de segurança no Leste Europeu e irrelevante como potência econômica – deram aos americanos a chance de alcançar a meta que perseguiam desde o século 19: usar seu poderio militar para abrir o mundo ao comércio e aos investimentos das empresas americanas.

“Os Estados Unidos estenderam sua influência à Indochina e ao Oriente Médio, diante da incapacidade de França e Inglaterra de preservar seus interesses nas ex-colônias”, afirma Giceri. Para ele, a Guerra Fria contra os soviéticos e a teoria da luta contra o “mal maior”, ou seja, o comunismo, justificava a presença e a interferência americana nos assuntos internos dos países espalhados pelo globo. Enfrentar o “mal maior” por vezes significou patrocinar guerrilheiros e golpistas, como no Irã e na Guatemala, na década de 1950. O fim da União Soviética, em 1991, instalou confortável e definitivamente os Estados Unidos no posto de única superpotência.

Ser ou não ser

Mas é justo, diante das guerras do Iraque e do Afeganistão, chamá-los de “império”. Os americanos, de um modo geral, acham muito estranho, e até se sentem ofendidos. Em 230 anos de independência, sucessivos ocupantes da Casa Branca têm se esmerado em desmentir a intenção de dominar outras nações. O primeiro foi McKinley, em 1898, que depois da guerra com a Espanha garantiu que “nenhum desejo imperial se espreita na mente americana”. O último foi George W. Bush em sua campanha à reeleição, que depois de invadir o Afeganistão disse que “nosso país não busca a expansão do seu território, e sim a ampliação do campo da liberdade”. Para o sociólogo americano Michael Mann, a hegemonia dos Estados Unidos contém um paradoxo. Segundo ele, ao espalharem pelo mundo os valores democráticos, os Estados Unidos reforçam a noção de que cada povo deve ser dono do seu próprio nariz. “A ideologia do liberalismo e a disseminação do conceito moderno de soberania nacional trariam embutidos os anticorpos contra qualquer plano de dominação.” Ou seja, se os Estados Unidos são o problema, também são a solução, pois, diferentemente de qualquer conquistador do passado, os americanos, que carregam na bagagem o ideal da liberdade e da democracia, levam junto os canhões e os capitais. Aí residem a força e a fraqueza do seu império.



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sábado, 12 de novembro de 2016

[POL] O Fascismo Japonês Revisitado

Marcus Willensky


Impacto do IMTFE

Em 4 de junho de 1946, o Tribunal Militar Internacional para o Extremo Oriente (IMTFE, sigla em inglês) reuniu-se no antigo prédio do Ministério do Exército Japonês. Durante o discurso inicial, o Promotor-Chefe Joseph B. Keenan pronunciou o seguinte:

A evidência mostrará que sociedades secretas ultranacionalistas e a camarilha militarista recorreram a crimes e, assim, exerceram grande influência em favor da agressão militar. Os assassinatos e ameaças de revolta permitiram aos militares maior dominação sobre o governo civil e a indicação de novas pessoas favoráveis a eles e suas políticas. Esta tendência tornou-se maior e mais entrincheirada até 18 de outubro de 1941, quando os militares assumiram o controle completo e total de todos os órgãos do governo, tanto civis como militares.

A acusação de Keenan continua a alimentar o debate dentro dos círculos acadêmicos a respeito do Japão pré-guerra e a natureza de seu governo imperial. A alegação da promotoria de que o governo japonês participou de uma conspiração para iniciar uma guerra declarada ou não ou guerras de agressão... em violação à lei internacional... com o objetivo de assegurar o domínio militar, naval, político e econômico do Extremo Oriente... e no final a dominação mundial” implica em todos os japoneses da era pré-guerra como cúmplices desse plano sinistro.

Esta análise, embora baseada em elementos verdadeiros, infelizmente esconde a cadeia de eventos e seu contexto mais amplo global e histórico, impedindo uma compreensão mais profunda do que aconteceu no Japão. Historiadores, jornalistas e escritores ocidentais, estando conscientes ou não das especificidades da acusação do IMTFE, têm respondido a elas de uma forma ou de outra por aproximadamente 60 anos (n. do T.: artigo escrito em 2005). Para estas pessoas, o IMTFE tem tido um impacto duradouro completamente desproporcional ao seu efeito no resto do mundo.

Em 1946, a ideia de que o Japão Imperial, como a Alemanha Nazista e a Itália Fascista, era uma nação criminosa que se envolveu numa conspiração para controlar o mundo era, logo após o lançamento de duas bombas atômicas, um argumento definitivo para os Aliados vitoriosos. Em 2005, contudo, a acusação do IMTFE não precisa dominar as discussões sobre o Japão Imperial. O acesso atual aos documentos nos Arquivos Nacionais nos EUA e na Biblioteca Nacional e Instituto Nacional para Estudos de Defesa no Japão dão aos estudiosos atuais uma vasta gama de informações, tudo isso livre da mácula da justiça dos vencedores e da necessidade de transformar os líderes do Japão na guerra em culpados de crimes contra a humanidade.

Um aspecto crítico do legado do IMTFE que nunca foi entendido satisfatoriamente é a questão do fascismo no Japão pré-guerra. Uma análise mais recente destas questões e o estabelecimento de um diálogo através do qual o assunto pode ser visto de uma forma mais moderna, sem os preconceitos do IMTFE ou da Guerra Fria, é dolorosamente necessário devido à realidade criada pelo mundo fechado e isolado dos estudiosos ocidentais do Japão Imperial.

Japão Imperial, Fascismo e Extrema Direita

No final dos anos 1920, 30 e 40 a imprensa japonesa estava envolvida completamente em discussões sobre o fascismo e centenas de livros foram escritos antes e após a Segunda Guerra Mundial discutiram sua aplicabilidade, tanto pró como contra, ao Japão Imperial. Para o IMTFE e os Aliados vitoriosos não havia dúvidas de que o Japão Imperial era uma nação “fascista” forjada segundo os moldes da Alemanha Nazista e da Itália Fascista. Foi somente na era pós-julgamento que autores japoneses, como Maruyama Masao, começaram a discutir seriamente as implicações para os historiadores em rotular a era pré-guerra como fascista. Nos 50 anos seguintes, o consenso equilibrou-se na questão e hoje há tantos estudiosos que usam o termo quanto aqueles que o recusam, tanto no Japão como no Ocidente.

O fascismo foi um tópico importante e controverso no período inicial Showa[1]. A ala direita reformista, kakushin uyoku, exibia mais do que um fascínio passageiro com o conceito e muitos de seus membros, em especial Nakano Seigo, não escondiam sua admiração por Mussolini e pelos sucessos de seu Partido Fascista, o Fascio di Combattimento. A direita idealista, kannen uyoku, por outro lado, rejeitava o fascismo assim como rejeitavam todas as coisas de clara origem ocidental. Grandes áreas cinzentas existiam, por exemplo, a Grande Partido da Produção do Grande Japão, Dai Nippon Seisan To, proeminente partido autodeclarado fascista, foi criado com a ajuda de Toyama Mitsuru – sem dúvida o membro mais poderoso da direita idealista. Estudiosos atuais são frequentemente esquerda em relação à tarefa ingrata de apenas concluir que a direita estava ciente da, ou influenciado pela, existência do Fascismo na Itália.

O que é Fascismo?

Qualquer leitura mais atenta dos jornais, tratados políticos, diários e periódicos japoneses do pré-guerra confirma o uso comum do termo fashizumu. Um aspecto importante deste fenômeno foi o debate acalorado sobre o significado de fascismo na Europa e as implicações para sua ascensão no Japão que enfureceu a mídia japonesa no pré-guerra. Começando no início dos anos 1930, autores japoneses progressivamente deram vazão a um medo atormentador de que o fascismo já poderia ter chegado ao Japão. Um exemplo é um artigo de 1932 da Trans-Pacífico intitulado “O Conflito entre o Fascismo e o Parlamentarismo”, o que dizia:

O Japão está desordenadamente temeroso do que implica o termo Fascismo, mas na verdade muito dele já chegou. O próprio governo Saito pode ser considerado um já que ele suspendeu muitas das funções do Parlamento como uma máquina para a discussão dos planos nacionais.

A discussão japonesa do pós-guerra sobre o Japão Imperial engloba esses receios e geralmente considera a aplicabilidade do termo fascista no período. Este não é o caso com os estudiosos ocidentais e talvez nenhum tópico simples – com a possível exceção do Massacre de Nanquim[2] – divida de forma tão honesta a pesquisa dos atuais historiadores e cientistas sociais no Japão e no Ocidente. Em geral, estudiosos ocidentais rejeitam o uso do termo, enquanto que suas contrapartes japonesas largamente o aceitam.

Na era pré-guerra, a situação era quase exatamente o reverso; escritores ocidentais sentenciaram majoritariamente que o Japão Imperial era uma nação fascista e os escritores japoneses frequentemente o negavam, preferindo a descrever os eventos em ermos de japanismo ou nipponshugi. Membros da direita eram rotineiramente acusados de ser fascistas, mesmo pela imprensa japonesa, mas por motivos que permanecem obscuros eles negavam qualquer conexão. Por que os estudiosos modernos negligenciam este fenômeno interessante?

Uma tendência em pesquisa, especialmente no Ocidente, é diluir o assunto e falar de exemplos isolados de fascismo tendo existido, assim evitando a grande questão de se o sistema japonês de governo era, ele próprio, fascista. Reconhecendo a existência do fascismo no Japão pré-guerra, contudo, é diferente e muito menos complicada do que dizer que o governo do Japão Imperial era fascista. Nesta questão, existe uma dúvida razoável e isto justifica uma análise mais cuidadosa do governo imperial. Também exige uma definição precisa do termo fascismo.

Em qualquer tentativa de explicar o fascismo, cuidado deve ser tomado para diferenciar entre as definições teórica, política e governamental. Uma coisa é dizer que as instituições, grupos ou mesmo a burocracia japonesas do pré-guerra estavam praticando uma forma de fascismo e totalmente diferente é dizer que eles estavam praticando o fascismo tal como o entendemos ter sido aplicado na Itália e na Alemanha. Existem grandes diferenças entre o que Mussolini e Hitler fizeram antes de chegarem ao poder e o que geralmente é reconhecido ter sido as políticas de seus governos na prática. Logo, para começar, gostaria de postular que fascismo como teoria e o fascismo na prática podem ser tão disparates que se podem considera-los sem relação entre si.

Quando Ivan Morris escreve que “o fascismo perdeu muito do seu valor semântico desde que foi transformado como um termo pejorativo para descrever pessoas ou ideias impopulares”, ele inconscientemente determina o grande problema com muitas discussões pós-guerra do termo. Em 2005, “fascista” é frequentemente um epíteto para quaisquer grupos vistos como reacionários ou autoritários. Assim, vemos grupos de esquerda se referindo ao governo americano como fascista ao mesmo tempo que vemos membros do governo se referindo a grupos extremistas como Nação Ariana e Ku Klux Klan como fascistas.

Esta situação resultou na necessidade de analisar o fascismo através de fontes primárias, especificamente o artigo de 1932 de Mussolini, “A Doutrina do Fascismo” e ao trabalho de 1925 do Ministro da Justiça fascista, Alfredo Rocco, “A Doutrina Política do Fascismo”. Ambos são conceitos esquecidos do fascismo e ambos pretendem ser definições do fascismo teórico. Podemos assumir então que é possível ligar a teoria fascista à forma de governo, e Mussolini parece fazê-lo quando ele escreve:

O fascismo é hoje claramente definido não somente como um regime, mas como uma doutrina. E quero dizer com isso que o fascismo hoje, autocrítico assim como crítico de outros movimentos, tem um ponto de vista inequívoco de si mesmo, um critério e, portanto, um objetivo em face de todos os problemas materiais e intelectuais que oprimem os povos do mundo.

Não obstante, este artigo pode ter sido uma fonte de confusão mais tarde ao nível teórico e jamais conecta a doutrina fascista com seu próprio regime. Ao invés disso, o artigo limita-se a definições bombásticas e dramáticas para o fascismo teórico.

Apesar deste problema, o uso do trabalho de Mussolini – como fundador do movimento fascista e criador do termo fascismo – é, sem dúvidas, válido. A Doutrina Política do Fascismo de Rocco é citado porque é um dos primeiros trabalhos publicados a tentar decifrar o termo e também porque Mussolini aprovou totalmente o conteúdo como apresentando “de uma forma brilhante a doutrina do Fascismo”. O fascismo, em sua forma original, era um movimento de ação e não fórmulas - o primeiro slogan do regime foi: “Sem dogma! A Disciplina é suficiente!” Consequentemente, confusão sobre o significado de fascismo existiu desde o início. Angelo Tasca, um marxista italiano do pré-guerra, na tentativa de definir fascismo descobriu a impossibilidade da tarefa e finalmente concluiu que “Fascismo é uma ditadura; tal é o ponto de partida de todas as definições que até o presente têm sido tentadas. Além disso não há consenso... Nosso modo de definir o fascismo é escrever sua história.”

Escrevendo no início da história do fascismo, Mussolini e Rocco não precisavam se preocupar com a consistência entre teoria e prática se na Itália ou em qualquer outro lugar. Eles foram, portanto, capazes de evitar uma das maiores perguntas mais irritantes, que agora atormenta os estudiosos – como definir fascismo de modo que ele possa ser usado como termo comparativo.

Rocco começa identificando os pontos salientes encontrados nas doutrinas políticas contra os quais o fascismo se posicionaria e, então, as contrastaria com sua visão do movimento:

O fascismo jamais levanta a questão de métodos, usando em sua prática política agora métodos liberais, meios democráticos e, algumas vezes, dispositivos socialistas. Esta indiferença com o método frequentemente expõe o fascismo à acusação de incoerente em relação a observadores superficiais, que não veem que o que conta para nós são os fins e que, assim, mesmo quando empregamos os mesmos meios agimos com um espírito radicalmente diferente e aspiramos resultados totalmente diferentes.

        
Fica claro desta passagem que Rocco abraça a ideia de que o fascismo era multifacetado e, às vezes, contraditório e isto tem implicações mais abrangentes para o debate atual.

Se aceitarmos a confissão de Rocco que para o fascismo os fins e não os meios são a chave para qualquer entendimento do termo, então aceitamos a ideia de que o fascismo pode assumir muitas formas em diferentes países e situações. O objetivo final que Rocco e Mussolini estavam perseguindo era a criação de um Estado todo-poderoso que teria um papel central na organização das vidas de todos os cidadãos. Como isto seria atingido era menos importante para eles do que sua realização. Isto afasta muitas das afirmações ubíquas sobre a aplicação do termo fascismo ao Japão Imperial, qual seja, que as realidades políticas da Alemanha Nazista, Itália Fascista e Império Japonês desafiam uma definição comum. A posição de muitos estudiosos japoneses que “algumas vezes as diferenças acidentais são somadas para formar uma diferença essencial” é uma falha em entender as intenções dos criadores do fascismo.

Giovanni Gentile, Ministro da Educação de Mussolini e um proeminente teórico fascista, comentou que o Fascismo “pela virtude de sua repugnância ao ‘intelectualismo’ prefere não perder tempo construindo teorias abstratas sobre si próprio.” Dada esta reticência, estudiosos modernos são mal conduzidos quando eles tentam uma definição que depende da especificidade dos métodos políticos e estruturas. Parece claro que o governo da Itália Fascista exibia uma preferência por ação política pragmática livre de princípios políticos. François Furet, conhecido historiador francês, escreve em “A Morte de uma Ilusão” sobre a natureza maquiavélica do fascismo e mesmo vai longe fazendo comparações com o Comunismo Soviético – seu opositor político e intelectual – quando ele diz que ambos abraçaram o “conceito que qualquer coisa que servia à causa era boa.”

Se os fascistas viam seu movimento como aquele que estava livre em copiar outras fontes políticas e aplica-las a situações específicas, então parece razoável aceitar que o fascismo poderia assumir diferentes formas nos países europeus e asiáticos. Apesar de Gentile insistir que o fascismo “...não é uma teoria política que pode ser definida em uma série de fórmulas,” analistas modernos geralmente entendem o fascismo em aplicação ser “...a organização totalitária de governo e sociedade de uma ditadura de partido único, intensamente nacionalista, racialista, militarista e imperialista.” Obviamente, isso está extremamente simplificado, mas esta definição certamente aplica-se à Itália Fascista; analogamente, escritores japoneses nos anos 1930 parecem ter compreendido o fascismo sob esta luz. Escrevendo em 1932, o mesmo ano que o artigo de Mussolini foi publicado, Yoshino Sakuzo escreveu,

Definir o Fascismo é uma tarefa extremamente difícil. Podemos, contudo, dizer, em termos gerais, que ele implica no governo de uns poucos disciplinados e decididos sobre a maioria indisciplinada e indecisa. É antidemocrático, e particularmente antiparlamentarista; é nacional ao invés de internacional; e tende a adorar o Estado ao invés do indivíduo, ou qualquer grupo de indivíduos, exceto, é claro, o grupo decidido em cujas mãos o poder está concentrado. Estas são as ideias que animam os vários grupos no Japão [...] e, portanto, apesar de seu repúdio ocasional do título, eles podem ser tranquilamente chamados de fascistas.

O comentário de Yoshino apresenta uma questão interessante: por que era necessário para os japoneses do pré-guerra, não somente os membros do uyoku, mas os membros das forças armadas, a burocracia e mesmo os partidos políticos – notavelmente o Seiyukai – negar que eles eram fascistas? E se estes grupos e indivíduos não eram fascistas, por que tantos escritores os descrevem como tais? O que motivou a mídia pré-guerra discutir a dinâmica política japonesa em termos de fascismo? Em 1936, a Trans-Pacific fez uma entrevista com o coronel Hashimoto Kingoro com o título “Chefe do Partido Novo nega que ele seja fascista”:

Algumas pessoas dizem que eu sou fascista ou um tipo de Hitler feito no Japão, eles não entendem minhas intenções. Não sou um simples soldado aposentado... Olhem para a bandeira de nosso partido. É um sol branco contra um fundo vermelho. Na cabeça branca do sol, estamos aqui para servir ao imperador com patriotismo vermelho de sangue. Apenas me observe! Hashimoto não é homem de ficar sentado e falando.

Excluindo-se a negação veemente de Hashimoto, contemporâneos dele frequentemente o descreviam como nacional-socialista e fascista. Seu Partido dos Jovens do Grande Japão, Dai Nippon Seinen To, copiou a imagem dos camisas negras de Mussolini com versões negras dos uniformes do Exército Imperial e uma bandeira que era um pouco mais do que uma cópia da bandeira nazista de Hitler sem a suástica. Além disso, a política de Hashimoto focava em um governo altamente centralizado interno e uma política externa agressiva. Deveríamos acreditar nas negações de Hashimoto? Qual qualidade outra que o fato dele ser japonês, e não italiano ou alemão, distinguia sua agenda da do fascismo?

O Império do Japão era Fascista?

O Japão pré-guerra exibia muitas das condições que os estudiosos modernos descrevem como fascismo. O Japão no início da Era Showa era intensamente nacionalista, racialista (incluindo a crença arraigada de que os japoneses eram racialmente superiores aos ocidentais e outros povos asiaticos), militarista e também imperialista. O que parece estar faltando é, nas palavras de Ebenstein, uma “organização totalitária de governo e sociedade por uma ditadura de um único partido.”

Se, contudo, aceitarmos que em 1940, seguindo o banimento do Minseito, do Seiyukai e de outros partidos políticos, a Associação para Assistência do Governo Imperial (IRAA, sigla em inglês), ou Taisei Yokusan Kai, era o único partido político existente, e se considerarmos que a Constituição Meiji deu ao Imperador poderes discricionários e garantiu-lhe de facto o status de comandante-em-chefe sobre todo o Exército e Marinha Imperiais, além de premiá-lo com o poder de criar e modificar leis, logo a estrutura básica do fascismo parece ter firmemente acontecido no Japão Imperial no período imedianto pré-guerra.

Alguns autores, em especial John Holiday em seu estudo marxista do capitalismo japonês argumentou mesmo que não devemos focar no período imediatamente anterior ao início da Segunda Guerra Mundial concluindo que, “se o Japão era ‘fascista’ em 1941, ele talvez devesse ser chamado ‘fascista’ em 1915.” E ainda, o consenso de que o Japão Imperial não era fascista inclui virtualmente todo autor ocidental sobre o tema, incluindo Gorden Berger, James Crowley, Peter Duus e mesmo os autores de história geral do Japão.

Qual característica do fascismo tal como praticado em outros países era tão notoriamente diferente que os estudiosos ocidentais a rejeitaram de forma universal quando aplicada ao Japão Imperial? Poderia ser simplesmente uma falha em entender o espírito do fascismo; uma falha em compreender que o fascismo na teoria e na prática podem ser totalmente diferentes; uma falha em perceber a natureza maquiavélica do fascismo? Abe Horozumi diz na conclusão do seu livro Introdução à Pesquisa do Fascismo Japonês (Nihon Fashizumu Kenkyu Josetsu):

Ninguém pode fugir à impressão de que a pesquisa sobre o fascismo japonês é muito dividida e confusa ao nível teórico. A confusão na teoria fascista não está confinada ao japão, mas... desde o final dos anos 1960 é um fenômeno mundial.

Este não precisa ser o caso. Se voltarmos às fontes primárias, torna-se claro que a visão de Mussolini existia no Japão Imperial em diversos níveis.

As forças armadas japonesas e a burocracia colocava grande ênfase ao pertencimento coletivo e a um passado comum. Iniciando no Meiji, Taisho e certamente no começo da Era Showa não havia  falta de propaganda mantida pelo governo planejada para ajudar o cidadão médio japonês a ver seu lugar em termos de “família”, “lar”, “nação” e sua relação com o Imperador em uma linha inquebrável através da história. Este processo garantiu a importância sagrada da língua japonesa, cultura e história. Parte desta doutrinação era uma ênfase na importância do kokutai, literalmente “o corpo do Estado”, no qual o conceito do indivíduo deve ser subsumido. Isto é um elemento importante do Fascismo tal como Mussolini o via:

Para o fascista, tudo é o Estado e nada humano ou espiritual existe, nada tem valor fora do Estado. Neste sentido, o fascismo é totalitário e o Estado Fascista, a síntese e unidade de todos os valores, interpreta, desenvolve e dá força à toda vida do povo.

Os líderes da burocracia imperial japonesa, notavelmente Hiranuma Kiichiro, viu a relação entre o cidadão japonês e o kokutai em termos muito semelhantes e pode ser argumentado que isto é o que o Primeiro-Ministro Konoye Fumimaro estava tentando fazer, ao instigar as forças armadas, com a aprovação da Lei de Mobilização Geral Nacional, Kokka Sodoin Ho. Esta lei objetivava não somente criar uma economia de guerra sintonizada, mas também transformar os cidadãos japoneses em súditos obedientes e inspirados do Estado. E o que o kokutai supostamente representava a não ser a soma total de tudo o que existia no Japão – um Estado que incluía todo cidadão do Império sob o jugo divino do Imperador? Não apenas um monarca absoluto, o Imperador era um governante divino e seu desejo era a raison d´etre da nação japonesa. Isto é o fascismo tal como Mussolini o via:

Indivíduos de classes de acordo com a semelhança de seus interesses, eles formam sindicatos de acordo com as atividades econômicas diferenciadas dentro destes interesses; mas eles formam primeiro, e acima de tudo, o Estado... não uma raça, nem uma determinada região geográfica, mas uma comunidade historicamente se perpetuando, uma multidão unificada por uma única idéia, que é o desejo de existência e poder.

No caso do Japão Imperial, este desejo à existência e poder era entendido como o desejo do Imperador e o kokutai que ele incorporava. Tivesse Mussolini escrito “A Doutrina do Fascismo” no século XIX, os oligarcas Meiji poderiam bem tê-lo usado como um esboço de sua visão do Japão Imperial, já que ele contém idéias paralelas ao que eles tentavam fazer. Eles não viam o Império sob a luz das democracias européias, não sob a luz de uma nação de indivíduos como os Estados Unidos, mas uma nação de um coração e mente. Como Hiranuma Kiichiro escreveu em 1932:

Nossa nação é constituída de um único governante, em uma linha inquebrável de descendência imperial, e seus súditos. É uma nação baseada na centralização da Família Imperial, com o povo inteiro ajudando seu governante na realização dos ideais nacionais. Em outras palavras, é o dever do povo, sob o comando do Imperador, exercer seus melhores esforços no sentido da realização das tarefas designadas a ele.

Não interessa que, como marionetistas, os oligarcas Meiji dissessem ao Imperador qual sua visão deveria ser; o que importa é que eles criaram uma cornucópia particular de mitos e valores modernos que, com a passagem do tempo, criou a fundação para uma nação “fascista”. O Japão Imperial era fascista não porque ele copiou de forma bem sucedida o que estava acontecendo na Itália e na Alemanha, mas porque era o que os oligarcas Meiji pretendiam acontecer, apesar de que na época eles não tinham uma palavra particular para descrevê-lo.   



Notas:

[1] O período Showa (literalmente "período iluminado de paz/harmonia), ou Era Showa, é o período da história do Japão correspondente ao reinado do Imperador Showa, Hirohito, de 25 de dezembro de 1926 até 7 de janeiro de 1989. O período Showa foi o mais longo período de todos os reinados dos Imperadores japoneses anteriores.

[2] O Massacre de Nanquim, também conhecido como o Estupro de Nanquim, foi um episódio de assassinato em massa e estupros em massa cometidos por tropas do Império do Japão contra a cidade de Nanquim, na China, durante a Segunda Guerra Sino-Japonesa, na Segunda Guerra Mundial. O massacre ocorreu durante um período de seis semanas a partir de 13 de dezembro de 1937, o dia em que os japoneses tomaram Nanquim, que na época era a capital chinesa. Durante este período, dezenas de milhares, se não centenas de milhares de civis chineses e combatentes desarmados foram mortos por soldados do Exército Imperial Japonês. Estupros e saques também ocorreram.

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