Luis
Pereira
Aventuras
na História, 05/07/2016
No
filme A Queda, de Bernd Eichinger, o famoso ator Bruno Ganz
interpreta Adolf Hitler em seus últimos dias, acuado no bunker da Chancelaria
do Reich, em pleno processo de negação e declínio psicológico. A atuação
magistral de Ganz fez com que muitos se perguntassem: “Podemos retratar Hitler
como um ser humano?”. O historiador alemão Volker Ullrich defende que não só
podemos como devemos. Ullrich é o autor de uma nova biografia do ditador
nazista, Adolf Hitler Vol. 1 – Os Anos de Ascensão, 1889-1939 (Amarilys,
2016). O trabalho, aclamado pela crítica e best-seller instantâneo na Alemanha
e na Inglaterra, é o primeiro tomo de uma obra em dois volumes que se propõe a
preencher lacunas na bibliografia já existente e, principalmente, tratar do ser
humano por trás da persona pública.
O
simples processo de demonização, segundo o autor, é um erro perigoso, pois
distorce a avaliação da verdadeira personalidade de Hitler, com suas
contradições e antagonismos, deixando de lado os traços empáticos que fizeram
dele um líder palatável às massas populares e às elites política e econômica da
Alemanha. O objetivo é desconstruir o mito Hitler, presente de variadas
maneiras na literatura e no debate público após 1945 como uma “fascinação
(negativa) pelo monstro”. Na nova obra, Hitler é “normalizado”, mas isso não o
torna “mais normal”; pelo contrário, ele parece ainda mais indecifrável. Sua
imagem torna-se mais complexa, um homem de muitas faces, sempre adaptadas a
diferentes públicos.
Baseando-se
em pistas conhecidas e documentos revelados apenas recentemente, Ullrich
discute que, se não fosse pela Primeira Guerra Mundial e as revoluções sociais
que ela provocou na Europa, talvez Hitler permanecesse uma figura desconhecida
às margens da História. Suas origens são, para dizer o mínimo, nebulosas. “Não
sei de nada sobre a história da minha família. Nessa questão, sou uma pessoa
muito mal informada (...) sou completamente desprovido de sentimentos
familiares e não tenho nenhuma ligação com um clã. Isso não é de minha
natureza. Eu pertenço à minha comunidade étnica”, confessou Hitler em 1942, num
de seus muitos monólogos.
Talvez
ele visse boas razões para ocultar sua ascendência. O pai de Hitler, Alois
Schicklgruber, era um filho ilegítimo adotado por um tio postiço, Johann
Nepomuk Hiedler (irmão mais novo do marido da mãe de Alois), numa história
enrolada que sugere algum escândalo familiar abafado. Somente aos 19 anos Alois
foi registrado como filho legítimo de Johann Georg, o irmão de Johann Nepomuk.
Nessa ocasião, o notário alterou o sobrenome Hiedler para Hitler. Alois Hitler
viria a ser um funcionário-modelo na alfândega de Braunau. Em 1885, após ficar
viúvo pela segunda vez (as taxas de mortalidade na época eram altíssimas),
Alois casou-se com Klara Pölz. Klara era neta do tio postiço de Alois.
Portanto, se de fato Alois era filho de Johann Georg, os dois seriam primos em
segundo grau. Se, como se suspeita, fosse filho de Nepomuk, o parentesco seria
ainda mais próximo, o de tio e sobrinha. Em 1889, nascia Adolf Hitler, o quarto
filho do casal (os três primeiros morreram cedo). Boatos sobre uma possível
origem judaica de Hitler (que circulavam desde a década de 1920) não se
confirmaram. Ainda assim, é irônico que o ditador que exigia um certificado de
“ascendência ariana” de cada cidadão alemão não fosse capaz de demonstrar a
própria.
Existem
poucos testemunhos sobre os primeiros anos de vida de Adolf Hitler. As
informações publicadas por ele sobre o ambiente familiar no primeiro capítulo
de Minha Luta certamente são uma mistura de meias-verdades e invenções, com as
quais tentou angariar simpatias e tornar crível sua vocação política como líder
de um novo Reich alemão. Sabe-se que Alois fora um pai severo, adepto de
castigos físicos. A experiência da violência doméstica foi interpretada como
uma das causas para a política assassina do ditador. No entanto, Ullrich
adverte que se deve tomar cuidado ao tirar conclusões: naquela época, castigos
físicos eram comumente usados com finalidade educativa. Um pai repressor e uma
mãe amorosa não eram uma combinação rara entre as famílias de classe média por
volta da virada do século. Hitler, portanto, teve uma infância bastante
normal.
Juventude
incerta
Adolf
Hitler fora um excelente aluno nos primeiros anos escolares. Como todos os
garotos de sua idade, era leitor dos romances de aventura do escritor alemão
Karl May (dizem que durante a guerra, principalmente nas situações mais
difíceis, Hitler citava um dos heróis de May, o índio apache Winnetou, como um
“paradigma de comandante militar”). Entretanto, quando fez a transição para a
escola secundária em Linz, Hitler passou a ser mais um entre muitos. Terminou
por abandonar a escola, após reprovações e resultados medíocres.
O
fracasso em terminar o grau secundário custou caro, quando ele se inscreveu
para o exame de admissão na Academia de Belas-Artes de Viena, já que o diploma
era um requisito básico. Hitler (mais livre após a morte do pai, em 1903)
passara a fazer visitas frequentes à capital, em que se deleitava com as
paisagens da metrópole austríaca, com seus museus, a ópera, o Parlamento e a
magnífica Ringstrasse. O fracasso acadêmico, que ele não contara à família ou
aos amigos, foi difícil de aceitar. Muitos atribuem a perseguição aos
intelectuais e seu desprezo pela intelligentsia alemã como resultado dessa
rejeição.
O ano
de 1907 foi marcado pela morte da mãe, em consequência de um câncer de mama.
“Em meus quase 40 anos de atividade, nunca vi um jovem tão indescritivelmente
triste e arrasado como o jovem Adolf Hitler”, escreveu o médico judeu que tratara
Klara Hitler, doutor Eduard Bloch, em uma anotação de 1938. Não há indícios de
que o tratamento médico feito por Bloch tenha sido a causa do patológico ódio
antissemita de futuro Führer. No próprio dia do funeral, Hitler foi até o
consultório dele para agradecer pelos cuidados com a mãe. Em 1938, quando o
líder fez sua entrada triunfal na “cidade natal” Linz, após ter anexado
a Áustria, dizem que perguntou imediatamente pela saúde do “bom e velho doutor
Bloch”. Dentre todos os judeus de Linz, Hitler colocou o médico sob a proteção
da Gestapo. No final de 1940, a família Bloch conseguiu emigrar em segurança
para os Estados Unidos.
Há
relatos de que Hitler também manteve relações cordiais com judeus nos abrigos e
pensionatos vienenses em que morou entre 1908 e 1913. Viena era na época a
grande metrópole europeia, centro de uma vida econômica e cultural
efervescente, com uma enorme comunidade de intelectuais e artistas de
vanguarda.
Naquela
cidade, os problemas do Estado multinacional austro-húngaro podiam ser
observados como numa lente de aumento. Nenhuma outra apresentava uma taxa de
imigrantes tão elevada. A reação dos habitantes locais ao “perigo” de uma
“infiltração estrangeira” produzira desde o final do século 19 a criação de
associações e partidos que estampavam o nacionalismo radical entre as suas
bandeiras. A imigração maciça, principalmente de judeus orientais, despertou
temores de uma “judaização” de Viena; o sucesso dos imigrantes judeus,
bem-educados e orientados a subir na vida, despertou inveja e amargura nos
habitantes nativos.
Hitler
escreve em Minha Luta que os anos em Viena foram de miséria e pobreza. Outra
meia-verdade, pois, enquanto durou a herança materna, a pensão de órfão e a
ajuda que recebia de uma tia, Hitler teve condições de manter seu estilo de
vida habitual: não fazer nada. Quando a tia que o socorria também faleceu, ele
então teve de buscar o próprio sustento.
Artista
sem futuro
No
outono de 1909, Hitler chegou a viver num abrigo para moradores de rua, onde
conheceu Reinhold Hanisch. De manhã cedo, os ocupantes do abrigo tinham de
deixar o lugar, retornando somente à noite. Durante o dia, Hanisch e Hitler
tentavam ganhar alguns trocados fazendo bicos. Ao saber da inclinação artística
do colega de abrigo, Hanisch sugeriu que Hitler pintasse os cartões-postais da
cidade para que ele os vendesse em bares e restaurantes, dividindo a receita. O
sucesso da empreitada foi maior que o esperado e em 9 de fevereiro de 1910
ambos conseguiram trocar o abrigo por um pensionato masculino. Hitler viria a
morar ali pelos três anos seguintes.
A
parceria com Hanisch durou pouco. Para que o negócio fosse rentável, era
preciso pintar um quadro por dia, como cobrava o colega. Mas Hitler argumentava
que se tratava de um trabalho artístico, para o qual era necessário estar
inspirado; quando não estava, passava o dia lendo jornais ou participando de
discussões políticas na sala de leitura do pensionato. Em agosto de 1910,
Hitler acusou Hanisch de tê-lo enganado e deixado de pagar por algumas telas vendidas.
Passou então a vender suas obras por meio de Jacob Altenberg e Samuel
Morgenstern, dois judeus proprietários de uma loja de artes. Ambos pagavam a
Hitler muito bem, permitindo-lhe independência financeira. Além de preferir
fazer negócios com comerciantes judeus, Hitler mantinha boa convivência com
outros moradores do pensionato que eram de origem judaica. O ex-sócio Hanisch
viria a afirmar que “naquela época, Hitler não odiava os judeus. Isso só
aconteceu mais tarde”.
O
contraste entre o pintor de telas parceiro de marchands, colega de quarto de
judeus e o futuro ditador genocida é desconcertante. Para Ullrich, uma coisa é
certa: mesmo que quisesse, Hitler não teria conseguido evitar contato com
correntes antissemitas naquela Viena da virada do século. Políticos vienenses
que Hitler admirava batiam constantemente na tecla do inimigo externo judeu:
Georg von Schörener, o líder do pangermanismo austríaco a quem Hitler cita como
influência fundamental em Minha Luta, associou sua campanha pelo “germanismo”
com um antissemitismo até então desconhecido na Áustria; o prefeito Karl Lueger
não media palavras ao dizer que “a Grande Viena não deve se transformar numa
Grande Jerusalém”, além de acusar a “imprensa judaica” de compor uma imagem
estereotipada de judeus abastados, intelectualmente refinados e arrogantes.
Seria uma surpresa se o jovem Hitler não tivesse sido influenciado por isso.
Um
outro aspecto desses anos que alimenta a curiosidade de historiadores é a
suposta homossexualidade de Hitler. Na contramão de diversas obras que veem nas
ações do ditador indícios de uma orientação sexual frustrada e reprimida,
Ullrich não se convence de que Hitler pudesse ter tido relações homoafetivas no
período em que morou nos pensionatos masculinos. No entanto, inúmeras fontes
dão conta de um comportamento celibatário do futuro Führer. Numa metrópole
vanguardista e de costumes em ebulição como era Viena, em que peças teatrais de
Arhtur Schnitzler e quadros permissivos de Gustav Klimt causavam escândalo, o
jovem Hitler vivia um ascetismo quase monástico.
Ao que
tudo indica, ele também não recorria a prostitutas. Segundo um amigo da época,
isso se dava principalmente pelo medo de contrair uma doença sexualmente
transmissível bastante comum na época: a sífilis. Mas talvez a ideologia
pangermanista de Schörener também tenha desempenhado um papel nisso. Além de
defender a superioridade cultural dos alemães, a dissolução do império
multinacional Habsburgo e a formação de um Império Alemão único, Schörener
defendia também o celibato até os 25 anos, a fim de tonificar a força física e
intelectual. Se Hitler se manteve fiel a esse mandamento de castidade, ele
ainda não tinha dormido com nenhuma mulher ao deixar Viena, aos 24 anos de
idade.
Hitler
já pensava em emigrar para a Alemanha havia algum tempo. Munique era a cidade
que mais o atraía. Ali, ele frequentou o meio boêmio de Schwabing e seguiu
ganhando a vida pintando paisagens. Sua senhoria o descreveu como um jovem
retraído, que se fechava no quarto como um eremita. Para Ullrich, a falta de
contatos era apenas um sinal externo de sua profunda insegurança interna. Após
um ano na cidade, Hitler teve de admitir que sua carreira artística não lhe
oferecia futuro. Somente o início da Primeira Guerra Mundial, no começo de
1914, o libertaria daquele estado frustrante e sem perspectivas.
Primeira Guerra Mundial
A
escalada de hostilidades que se seguiu ao assassinato do arquiduque Francisco
Ferdinando produziu na Alemanha um estado de euforia patriótica a favor da
guerra. O escritor Stefan Zweig viria a descrever esse momento “arrebatador”
como “algo de que era difícil escapar”. Com o início do conflito, Hitler afirma
ter obtido uma autorização do rei Ludwig III da Baviera para servir em um
regimento bávaro apesar de sua nacionalidade austríaca. O mais provável é que
naqueles dias tumultuados ninguém checasse com afinco a nacionalidade dos
recrutas voluntários; do contrário, Hitler não poderia ter servido.
Em
meados de outubro de 1914, o recruta Hitler enfrentou seu “batismo de fogo”.
Seu regimento lutou em violentas batalhas homem a homem no front ocidental,
tendo perdas imensas (de 3 500 oficiais, restaram 600). Em novembro, Hitler
seria promovido a cabo, encarregado de levar mensagens e ordens dos comandantes
de regimento até a linha de frente. Segundo Hitler, esse trabalho colocava
todos os dias sua vida em risco. Para os soldados de trincheira, os mensageiros
militares não passavam de oficiais de caserna. De uma forma ou de outra, Hitler
escreveu em Minha Luta: “O horror assumiu o lugar do romantismo da guerra. O
entusiasmo arrefeceu gradualmente e o júbilo excessivo foi sufocado pelo medo
da morte”. Antes mesmo do final da guerra, a direita radical e os
pangermanistas já haviam eleito bodes expiatórios para os revezes da Alemanha:
as “atividades subversivas” de sociais-democratas e esquerdistas em geral, e a
suposta falta de engajamento dos judeus no esforço de guerra. A despeito dos
milhares de judeus que morreram nas trincheiras, foi convocada em 1916 uma
“contagem de judeus” a fim de verificar a situação do serviço militar de judeus
alemães (um primeiro passo para os registros que viriam a ocorrer nos anos
seguintes). Em 1918, diante da derrota iminente da Alemanha, esses grupos
intensificaram sua propaganda antissemita.
O
rapaz tímido ainda estava para descobrir seus dons extraordinários de oratória,
mas a Revolucão Alemã, que derrubou o kaiser e instaurou uma república
parlamentarista de inspiração esquerdista, provocou em Hitler tal comoção que o
convenceu a abdicar de suas ambições artísticas e entrar na política. Junte-se
a esse político aspirante com patronos influentes no meio militar a reação das
elites econômicas ao novo governo, a fobia contra a esquerda e o ressentimento
contra os judeus, e temos montado o cenário para a ascensão de Hitler e do
nazismo. O Hitler pós-guerra se reinventou completamente, para prejuízo de
milhões de vítimas que ele viria a fazer em sua ascensão sanguinolenta ao
poder. Uma ascensão que, como Ullrich defende, merece ser mais bem
compreendida.
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