Sérgio Miranda e Eduardo Lima
A
propaganda nazista sempre vendeu Adolf Hitler como um sujeito de atitudes
irrepreensíveis durante a Primeira Guerra Mundial. No conflito que convulsionou
o mundo entre 1914 e 1918, o austríaco voluntariamente alistado no 1º Regimento
de Infantaria da Bavária foi apenas um cabo mensageiro, encarregado de entregar
recados aos oficiais. Mesmo assim, teria sido um herói – pelo menos, segundo a
versão oficial. Um rapaz tão corajoso e abnegado que acabou recebendo mais de
uma condecoração por bravura.
Mas
essa ideia vem sendo desmontada com a ajuda de documentos que só recentemente
começaram a vir a público. Vários pesquisadores acreditam que a imagem de um
combatente heroico na Primeira Guerra nunca passou de uma invenção da máquina
de propaganda nazista. Um desses estudiosos é o alemão Thomas Weber, professor
de História Moderna da Universidade de Aberdeen, na Escócia, e autor de
Hitler’s First War (“A Primeira Guerra de Hitler”, inédito no Brasil). Segundo
Weber, o cabo Hitler da vida real foi pouco mais que um mensageiro de
retaguarda durante o conflito. Algo como um ajudante de ordens – ou, como ele
mesmo gosta de chamá-lo, o “garoto do chá”.
Para
pintar esse retrato nada favorável daquele que se tornaria o líder supremo do
Terceiro Reich, o pesquisador precisou realizar um verdadeiro trabalho de
detetive, investigando meticulosamente cada citação a atos de coragem ou
altruísmo atribuídos a Hitler durante o conflito nas suas principais
biografias. Mas isso não é nada perto do tesouro ao qual ele conseguiu ter
acesso para escrever seu livro. Weber pôde ler cartas, diários e relatórios
militares que ficaram guardados no Arquivo de Guerra da Bavária por quase 100
anos. Toda essa papelada, segundo o autor, demonstra que o Hitler destemido da
Primeira Guerra é, sem a menor dúvida, uma obra de ficção, puro marketing do
regime nazista.
“A
visão de um Hitler sempre exposto ao perigo, correndo entre trincheiras sob
fogo cerrado para entregar mensagens aos oficiais em serviço no front, não
resiste aos relatos contidos nesses documentos”, diz o historiador. “O que
encontrei revela que seu trabalho era feito longe da frente de batalha. Ele
servia principalmente no Centro de Comando de seu regimento.” Segundo Weber, o
cabo levava mensagens de um líder para outro sem sair dos limites de seu
próprio batalhão. Ou seja: nunca se expunha ao risco de levar uma bala ou ser
capturado pelos inimigos. Cumpria suas tarefas, de acordo com o pesquisador,
sempre a 4 ou 5 quilômetros de distância da frente de batalha. E era tido pelos
outros soldados como uma espécie de burocrata. “As cartas revelam ainda que sua
unidade, popularmente conhecida como Regimento List, estava muito longe de ser
uma espécie Band of Brothers da Primeira Guerra [caracterizado pelo
companheirismo entre seus integrantes].”
O SOLITÁRIO
Em
um dos documentos analisados por Weber, o tenente do Regimento List faz menção
a alguns de seus homens que eram motivo de piada na tropa por causa da pouca
habilidade com as armas. Hitler aparece entre os citados. As anotações
prosseguem com a descrição, em tom jocoso, do episódio em que uma fábrica de
alimentos enlatados foi invadida pela tropa. Segundo o relato, Hitler estava
faminto, a exemplo de todos os outros soldados. Mas continuou com fome porque
simplesmente não foi capaz de abrir uma lata de presunto com sua baioneta.
Em
outro ponto do mesmo documento, o tenente lista algumas das características
mais marcantes de cada soldado do regimento – iniciativa, popularidade, força,
entre outras. Esse tipo de registro, diz o historiador, era feito para orientar
os oficiais na escolha de “voluntários” para missões de campo. Junto ao nome de
Hitler, uma única anotação: “solitário”. Segundo Weber, percebe-se na
correspondência de vários combatentes que o futuro Führer era um indivíduo
apagado mesmo. Seus colegas frequentemente se referiam ao cabo como “o pintor”
ou “o artista”. Ele ajudava os companheiros a escrever para a família. E
passava a maioria do tempo escrevendo, lendo ou pintando.
Para
o historiador, está claro que, ao dimensionar os perigos da função desempenhada
por Hitler, muitos biógrafos jamais fizeram a devida distinção entre
mensageiros que se deslocavam dentro de seu próprio regimento e aqueles que
levavam mensagens para outros batalhões ou companhias. Esses últimos, sim,
muitas vezes precisavam se arriscar sob fogo cruzado para cumprir suas missões.
“O cabo Hitler, porém, jamais enfrentava tais riscos.”
Isso
não quer dizer que ele tenha sido um mero turista na Primeira Guerra Mundial,
nem que tenha passado absolutamente incólume pela violência que o cercou
durante os quatro longos anos do conflito. Em outubro de 1916, na Batalha do
Somme, o cabo foi ferido na perna. E bem no finalzinho da guerra, em 1918, um
ataque com armas químicas acabou por levá-lo parcialmente cego ao hospital,
onde receberia a notícia de que a guerra tinha finalmente chegado ao fim.
Ainda
naquele ano, seria instaurada na Alemanha a República de Weimar, uma precária
experiência democrática criada sobre os escombros do outrora glorioso império
germânico. Também entraria em vigor o tratado – misto de armistício e rendição
– que impôs duras condições de sobrevivência aos alemães. Para Hitler, aquilo
tudo era uma inaceitável traição. Foi quando ele decidiu que faria carreira
política. Dali em diante, sua missão seria vingar a Alemanha contra a
“punhalada” desferida pelos arquitetos da república. “Era uma mentira óbvia”,
diz o jornalista americano Ron Rosenbaum, autor do livro Para Entender Hitler.
“Mas uma mentira que ele usaria como veículo para chegar ao poder.”
O LÍDER CARISMÁTICO
Ao
sair do hospital, ainda como integrante do Exército alemão, Hitler foi enviado
a Munique para investigar grupos extremistas. A cidade estava mergulhada no
caos, com dezenas de grupos em conflito e dirigentes sendo assassinados ou
depostos. Foi nesse cenário tumultuado que a história do futuro ditador nazista
começou a ser escrita. Nas cervejarias de Munique, ele passou a discursar em
defesa do seu diagnóstico dos fatos. E se descobriu um talentoso orador. “Tive
a oportunidade de falar diante de uma grande audiência”, escreveria anos mais
tarde em seu livro, Minha Luta. “E o que sempre pressenti se confirmou: eu
sabia falar.”
O
passo seguinte seria a filiação ao pequeno Partido dos Trabalhadores da
Alemanha, que logo mudaria de nome para Partido dos Trabalhadores
Nacional-Socialistas Alemães. Rapidamente ele chegou ao posto de porta-voz da
agremiação. Em pouco mais de um ano, entre 1919 e 1920, o número de filiados ao
Partido Nazista (abreviação de “nacional-socialista”) passou de poucas dezenas
para mais de 2 mil pessoas – em parte, graças ao efeito persuasivo de seus
discursos em praça pública. Assim, aquele cabo aparentemente insosso e inexpressivo
da Primeira Guerra Mundial foi gradualmente se transformando em um líder
carismático, arrebatador de corações e mentes.
Para
alguém tão inspirador, com a ambição de vingar o país e devolvê-lo ao status de
potência mundial, não era conveniente ter um passado de “garoto de recados”.
Muito melhor seria que povo alemão o enxergasse como herói de guerra, digno dos
discursos inflamados que proferia. Segundo Thomas Weber, coube à máquina de
propaganda nazista que foi sendo montada ao redor de Hitler a tarefa de forjar
esse mito. “Desde o início, a publicidade foi uma das bases de sua ascensão ao
poder na Alemanha”, afirma o historiador. “E muitos biógrafos acabaram bebendo
demais nessa fonte, pois nunca existiram arquivos facilmente acessíveis sobre a
sua participação na Primeira Guerra.”
Mas
espera aí: se o cabo Adolf Hitler não foi o herói da Primeira Guerra Mundial
que muita gente imaginava, como explicar as medalhas que ele recebeu por
bravura? A primeira lhe foi dada em 1914, uma Cruz de Ferro 2ª Classe. A
segunda, em 1918, dessa vez uma Cruz de Ferro 1ª Classe. “A medalha de 2ª
Classe era relativamente comum”, diz Weber. “Qualquer soldado que saísse ferido
de um combate e tivesse boa ficha militar estava apto a recebê-la. Já para
ganhar a de 1ª Classe, era necessária uma recomendação, fato raro entre os
cabos.”
Acontece
que o cabo Hitler, no desempenho da sua função de mensageiro, acabou cultivando
um bom relacionamento com vários oficiais de alta patente. Para o historiador,
isso ajuda a explicar a Cruz de Ferro 1ª Classe.
O ANTISEMITA
Outra
visão recorrente cada vez mais questionável, segundo Weber, é a de que a
Primeira Guerra Mundial foi determinante para que Hitler se transformasse no
genocida que ele foi. Certamente havia soldados antissemitas em seu regimento,
o futuro Führer entre eles. Nenhuma surpresa nisso, já que judeus eram
perseguidos na Europa desde a Idade Média. Mas nada indica, de acordo com o
historiador, que se tratasse de um antissemitismo assassino como se veria mais
tarde, no auge do regime nazista. Entre os papéis do Arquivo de Guerra da
Bavária estudados por ele, há listas de vários veteranos de guerra judeus. “Em
nenhum documento encontrei qualquer indício de que eles fossem incomodados ou
tratados de forma diferente.”
Detalhe
dos mais curiosos – e irônicos – nessa história toda: em um dos documentos
analisados por Thomas Weber, várias assinaturas endossam a recomendação da Cruz
de Ferro ao cabo Hitler. Entre elas, a de um oficial judeu: Hugo Gutmann, seu
superior imediato. Mais tarde, esse episódio acabaria salvando sua vida. Em
1937, Gutmann foi preso pela Gestapo em decorrência da perseguição aos judeus
na Alemanha nazista. Mas não foi parar num campo de concentração. “Ele e sua
família foram mandados para um presídio na Áustria e poupados até o fim da
guerra.”
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