Quando O rei inglês Eduardo III declarou guerra ao monarca
francês Filipe VI, em 1337, estava fazendo mais do que dar início à série de
conflitos que seria chamada de Guerra dos Cem Anos. Ele sacramentava mais de
400 anos de ressentimentos entre França e Inglaterra. A guerra mais
significativa do período medieval, que trouxe mudanças que vão desde as armas e
estratégias de batalha até a estrutura socioeconômica feudal – propiciando o
nascimento das nações europeias –, tem raízes em 911.
Foi nesse ano que, após várias batalhas
contra a tribo viking do gigante Rollo, o rei francês Carlos, o Simples,
entendeu que os bárbaros do norte queriam apenas um lugar para viver. Concedeu
a eles um território, que ficou conhecido como Normandia. Em 150 anos, os
normandos já haviam criado uma nação e ajudavam os ingleses do outro lado do
canal contra outros vikings. Em 1066, os normandos se rebelaram e tomaram as
ilhas sob o comando de Guilherme I, o Conquistador, autoproclamado rei da
Inglaterra.
Por mais 150 anos, os anglo-normandos
descendentes de Guilherme I reinaram tanto sobre a Normandia quanto sobre o
solo inglês. Em 1216, porém, a Normandia voltou para mãos francesas, o que
nunca mais seria esquecido pelos nobres ingleses. Começava aí uma disputa de
direitos e brios nacionalistas que culminaria na Guerra dos 100 Anos – e, antes
de ela começar, um nobre inglês seria o personagem principal da crise entre a
Inglaterra e a França.
A
mãe tenta derrubar o pai
A história de Ricardo Coração de Leão é
intricada, porém fascinante. Seu pai, Henrique II, foi rei inglês. Coroado em
1154, em seus 35 anos de reinado englobou nacos da Escócia e da Irlanda, herdou
as províncias de Anjou e Normandia e ainda conquistou o coração e as terras de
Eleanor de Aquitânia, antes casada com o rei Luís VII da França.
Além de a bela rainha não ter deixado
herdeiros ao rei francês, ainda levou seu dote, a Aquitânia (região do sudoeste
da França), para as mãos de Henrique II. Terceiro filho do casal, Ricardo não
tinha a menor perspectiva de se tornaria rei, mas tinha uma vantagem: era o
predileto da mãe. Em 1173, ela traiu o marido como cérebro de uma conspiração
que envolveu os três filhos mais velhos, Henrique, Ricardo e Geoffrey.
Eleanor queria derrubar o rei através
de uma guerra civil. Não conseguiu. A rebelião destruiu a confiança de Henrique
nos filhos, principalmente em Ricardo. O caçula, João, o único a não participar
do plano, se tornou o favorito à sucessão. Eleanor terminou presa por ordem de
Henrique.
Forte
vínculo
Foi nesse período que Ricardo
desenvolveu um forte vínculo com o jovem Filipe Augusto, o herdeiro que sua mãe
não dera a Luís VII. Filipe era filho de Luís VII com a terceira esposa dele,
Adèle de Champagne. Foi assim que, apesar de inglês, o jovem Ricardo foi viver
na França. Teve ironicamente uma educação francesa e cresceu aprendendo a
chamar a França de lar. Essa amizade entre Filipe Augusto e Ricardo seria
essencial em 1188, quando Henrique II tentou tomar a Aquitânia para o filho
caçula, conhecido jocosamente como João sem Terras.
Ricardo, já um soldado e um nobre que
sabia atuar como político, se aliou a Filipe com a promessa de lhe conceder a
Normandia. Um ano depois, derrotado, Henrique II resignou-se e concedeu a
Ricardo o título de herdeiro – e morreu meses depois. Um dos primeiros atos do
novo rei inglês foi tirar sua mãe da prisão.
Ricardo não cumpriu a
promessa com Filipe – que nunca esqueceu o incidente. Em 1190, a
convocação para libertar a Terra Santa de mãos muçulmanas na Terceira Cruzada
juntou novamente Ricardo I, da Inglaterra, e o agora rei Filipe II, da França.
A coragem do rei Ricardo como general nessa cruzada lhe valeu o título de
Coração de Leão – mas ele ganhou também a fama de matador de árabes.
Filipe via algo a mais que a Terra Santa em jogo. A historiadora
austríaca Ulrike Kessler diz que Filipe tentava “tanto selar a derrota de
Ricardo quanto evitar seu retorno. Para ele, não havia motivo para tomar
Jerusalém. Sabia que a vitória seria creditada somente a Ricardo”.
Castigo
Castigado pela disenteria, o monarca
francês abandonou a cruzada. “Filipe era ardiloso. Ele iniciou a desconstrução
do reino e da imagem de Ricardo assim que voltou à França”, afirma Paul
Halsall, professor de história medieval da Universidade Fordham, em Nova York.
Enquanto isso, a força de Eleanor de Aquitânia como regente começava a
esmorecer diante do poder aliado de seu filho João sem Terras e de Filipe II.
No caminho de retorno da cruzada,
Ricardo acabou capturado pelo duque Leopoldo V da Áustria, ficando prisioneiro
do rei germânico Henrique VI. Ricardo só se libertou com o pagamento de 150 mil
marcos, o equivalente a dois anos dos dividendos da coroa inglesa. Filipe e
João se uniram para oferecer a mesma quantia para que Ricardo continuasse
preso.
Não conseguiram deixá-lo encarcerado.
De volta à Inglaterra, em 1194, Ricardo precisou apenas de algumas semanas para
recuperar os castelos tomados por João. Dos dez anos de reinado, Ricardo não
passou mais do que seis meses nas ilhas britânicas – estava sempre em combate.
Em 1199, quando foi pessoalmente recuperar uma botija de ouro em uma rixa,
levou uma flechada no ombro esquerdo de um jovem arqueiro de nome Peter Basil.
Estava sem armadura e usava apenas capacete e escudo.
Morte
A falta de cuidados médicos condenou o
rei guerreiro à morte aos 41 anos. Ricardo só teve tempo de ordenar a divisão
de seu reino. Três quartos de suas terras ficariam para seu irmão João. O corpo
embalsamado foi enterrado no Mosteiro de Fontevrauld, aos pés da tumba de seu
pai. Para a Inglaterra, o Leão não deixou nada, mas os ingleses entoariam suas
façanhas para aumentar o sentimento patriótico na guerra que viria depois
contra os franceses – um conflito que teria como motivo as mesmas regiões
disputadas entre Ricardo, João, sua mãe e Filipe.
A Guerra dos Cem Anos
começou 123 anos após a morte de Coração de Leão. A lã inglesa foi o estopim. É
que, por volta de 1320, a região de Flandres (atual Bélgica) era uma grande
produtora de tecidos. Os comerciantes apoiavam os ingleses, de cuja lã
dependiam.
Mas o território
estava sob vassalagem francesa e, em 1329, o rei francês Filipe VI decidiu
intervir, levando o inglês Eduardo III a suspender a venda de lã para a região
e a retirar o juramento de fidelidade ao monarca – e ainda por cima exigir seu
trono. Deu-se então o impasse que finalmente le-vou a Inglaterra, onde nasceu
Ricardo Coração de Leão.
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