Aventuras
na História, nº 95, junho 2011
Esqueça a imagem do tirano pervertido
e insano. O imperador era, sim, um hábil populista. Acontece que sua história
foi escrita pelos inimigos.
Perdulário,
suas extravagâncias incluíam pérolas banhadas em vinagre como aperitivo.
Gastava tanto dinheiro que a dada hora se viu obrigado a confiscar propriedades
e a criar impostos sobre tudo, até a prostituição.
Atribuía
a si mesmo qualidades divinas. Encomendou da Grécia uma estátua de Júpiter
Olímpico, mandou cortar a cabeça e a substituiu por uma inspirada na sua
própria. Num templo dedicado a ele, ostentava uma estátua de ouro em tamanho
natural, vestida todos os dias com uma cópia de seus trajes.
Líder
incompetente, humilhava com frequência seus pares, na indiscrição dos banquetes
ou na política. Nomeou o cavalo Incitatus magistrado superior de Roma. O animal
era mantido num luxuoso estábulo dentro do palácio imperial. E Calígula exigia
que os senadores despachassem com o colega equino.
Um
crápula completo, certo? Errado. Calígula não é tão diferente dos demais
imperadores romanos. E, até pelo pouco tempo que permaneceu no poder, quatro
anos, conseguiu feitos importantes. Mas a fama de maníaco atravessou os séculos
intacta – que o diga o filme Calígula,
de 1979. Mas por que sua imagem foi tão deturpada?
Um
olhar atento sobre os autores das histórias originais a respeito do imperador
ajuda a esclarecer as distorções. Como autoridade política, Calígula trabalhou
sobretudo para concentrar poder, confrontando o Senado e a aristocracia romana.
Os historiadores da época dependiam ou eram representantes do Senado. “É como
tentar entender a história do século 21 e tudo o que sobrou foi o tabloide National Enquirer (uma espécie de Notícias Populares americano)”, diz
Anthony Barrett, professor de história romana na Universidade da Columbia
Britânica. “É uma fonte importante, mas não pode ser tomada como totalmente
verdadeira. Os fatos demandam análise crítica e é preciso tentar corroborá-los
com evidências arqueológicas.”
O
filósofo Sêneca, o Jovem, fez um dos poucos relatos contemporâneos ao governo.
Ele era rival da dinastia Júlio-Claudiana, à qual pertencia o imperador. Acabou
exilado em 41. Suetônio, conhecido por abordar seus personagens sob o viés mais
pitoresco possível, escreveu sete décadas após a morte do governante. Já Cássio
Dio o fez quase 200 anos depois. Dos Anais
de Tácito sobre Calígula, uma das narrativas mais confiáveis da Roma
antiga, apenas algumas referências são encontradas hoje. “São textos
literários, com pretensões retóricas, e não científicas”, diz Paulo Sergio de
Vasconcellos, professor de letras da Unicamp.
A
revisão desses textos confrontados com investigações arqueológicas e o estudo
de moedas do período, está longe de reproduzir um maluco desvairado.
Está
claro que o imperador se relacionava com a sua família de maneira diferente que
os outros fizeram. As irmãs eram presença constante ao seu lado nos eventos
públicos e foram imortalizadas em moedas. Mas nada disso significa que havia
uma orgia em família. “O incesto foi uma criação posterior da historiografia”,
diz Fábio Faversani, historiador da Universidade Federal de Ouro Preto. Há
ainda uma explicação política. Como não tinha grandes conquistas militares,
Calígula precisava se provar merecedor do posto pela linhagem que remontava a
Augusto. Ao homenagear os familiares, justificava a própria posição.
Ele
foi acusado de levar Roma à falência. Mas realizou grandes construções.
Concluiu projetos iniciados por Tibério e iniciou outros. Na área militar, ele
não teve nada de brilhante, mas sua atuação foi positiva. Iniciou a conquista
da Britânia, atual Inglaterra. Antes, indicam as evidências arqueológicas,
criou uma estrutura de fortes e armazéns, preparando-se para a conquista do
território, efetivada por seu sucessor, Cláudio.
Mas
a característica mais marcante de Calígula está na sua adoração pelo entretenimento.
Em contraste com a severidade de Tibério, abraçou as aparições públicas e a
realização de festivais, que incluíam combates de gladiadores e com feras
selvagens, corridas de cavalos e peças teatrais. Mandou reduzir as armaduras
dos lutadores, o que o fez ser ainda mais adorado pela plebe, especialmente nas
ocasiões em que distribuía comida e dinheiro.
Essa
gastança poderia ter destruído as finanças públicas e iniciado uma espiral
inflacionária. E Cláudio teria pago o pato. Mas não, não há registro de
problemas financeiros no governo dele. Isso não quer dizer que a economia foi
perfeita sob Calígula. Serve, porém, como
indício de que ele talvez não fosse o perdulário inconsequente que os
historiadores clássicos pintaram. Definir sua figura por estereótipos, como os
fatos demonstram, está longe de apresentar uma noção satisfatória de quem foi
Calígula.
Nero
incendiou Roma?
Hitler
era um pervertido sexual?
3 comentários:
Uma matéria da revista História Viva sobre Calígula, que me parece mais esclarecedora e realista:
http://www2.uol.com.br/historiaviva/reportagens/um_maluco_no_poder.html
Interessante o artigo da História Viva. Isso demonstra o quanto os historiadores divergem sobre a vida de Calígula. Entretanto, a principal biografia do imperador foi feita por uma pessoa que viveu décadas após a morte dele, e mesmo assim era adversário político. Numa situação dessas, é claro que há exageros. me parece claro que a vida dos imperadores, até por causa do clima de instabilidade que tal cargo gerava, poderia fazer com que o imperador fizesse loucuras, mas as extravagâncias de Calígula são tão medonhas que parecem ter sido descritas deliberadamente apenas para desmerecê-lo diante da História.
"confio mais em monumentos e na lógica que em relatos históricos."
André Geiger
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