NY
Times, 27/05/2011
A
passagem do tempo não apenas transforma a vida em história; ela também muda os
contornos da própria história. Nos últimos anos, historiadores, filósofos e
outros começaram a repensar a Segunda Guerra de uma forma desafiadora e
perturbadora, refletindo a crescente distância entre o país que lutou a guerra
e o país que lembra dela. Como sempre, quando a história é debatida, os limites
não são apenas o passado, mas o presente e futuro também. Mesmo que as longas
guerras no Iraque e Afeganistão tenham tornado os americanos menos confiantes na
forma como usamos nosso poder militar, a luta contra o Eixo permanece o exemplo
clássico do poder americano colocado a serviço de objetivos virtuosos. O
presidente Obama tinha esta história em mente quando explicou sua decisão de
intervir na guerra civil líbia: “Deixar de lado a responsabilidade da América
como líder e – mais profundamente – nossas responsabilidades com nossos irmãos
humanos sob tais circunstâncias teriam sido uma traição de quem somos,” disse
Obama. “Algumas nações podem ser capazes de fazer vista grossa às atrocidades
em outros países. Os Estados Unidos da América são diferentes.” Mesmo hoje, a
Segunda Guerra Mundial ajuda a subscrever nossa afirmação para esta diferença
moral.
As
estórias favoritas da Segunda Guerra Mundial sempre foram aquelas do heroísmo
democrático de soldados comuns; este tipo de história popular nunca desapareceu
e provavelmente jamais desaparecerá. O livro Inquebrável (2010) de Laura Hillenbrand, que permaneceu por meses
próximo ao topo dos Best-sellers, conta a estória de Louis Zamperini, um
ex-maratonista campeão convertido em piloto aéreo, cujo avião foi derrubado no
Pacífico e que sobreviveu semanas à deriva numa balsa e passou por privações
ainda maiores em um campo de prisioneiros japonês. Como o título sugere,
Zamperini é o típico herói de guerra, por causa de sua grandeza em sua recusa
em se entregar, não sua habilidade em quebrar os outros – uma parte do trabalho
do soldado que é de longe menos aprazível de ler. Zamperini era piloto de um
bombardeiro B-24, e na época em que ele estava sendo torturado pelos japoneses,
outros pilotos, tão bons ou ruins quanto ele, realizavam a “Operação Gomorra” –
as missões semanais sobre Hamburgo, Alemanha, que em julho de 1943 mataram
cerca de 40.000 civis e destruíram virtualmente a cidade inteira. Podemos
festejar estórias desse tipo, e outras parecidas com essa, em nossa memória da
Segunda Guerra Mundial? E se o fizermos, podemos manter nosso orgulho da “boa
guerra”?
Estas
são perguntas a serem respondidas na nova onda das histórias da Segunda Guerra
Mundial. Estes livros não são “revisionistas”, no sentido pejorativo: eles não
sugerem uma equivalência moral entre o Eixo e os Aliados, ou minimizar os
crimes nazistas, ou negar o Holocausto. Ao invés disso, eles são trabalhos
intelectuais de historiadores profissionais, que estão menos interessados em
reescrever os fatos da guerra do que reconsiderar suas implicações morais.
Americanos que aprenderam sobre a guerra na Europa a partir de livros como Band of Brothers de Stephen Ambrose
(1992), por exemplo, podem ser perdoados por achar que a derrota da Alemanha
foi trabalho de soldados americanos durões. Assim, em Uma Vitória dura: a Segunda Guerra Mundial na Europa, 1939 – 1945,
o historiador britânico Norman Davies começa da premissa que “o esforço de
guerra das potências ocidentais” foi “um tipo de espetáculo secundário” A
América perdeu 143.000 soldados na luta contra a Alemanha, Davies esclarece,
enquanto que a União Soviética perdeu 11 milhões.
E
se o principal espetáculo era a guerra entre Hitler e Stalin, ele pondera, não
foi a Segunda Guerra Mundial um confronto entre tiranos quase equivalentes?
“Alguém realmente comprometido com a liberdade, justiça e democracia é
militante da condenação dos dois grandes regimes totalitários sem medo ou
benevolência,” ele concluí. Como historiador da Polônia, Davies é especialmente
informado sobre o que poucos americanos lembram: que a Segunda Guerra Mundial
começou pela invasão conjunta nazi-soviética daquele país. Durante os dois
primeiros anos da guerra, Hitler e Stalin eram aliados; o fato deles terem se
voltado um contra o outro, quando Hitler invadiu a União Soviética em junho de
1941, não altera a equação moral. “Se olhamos dois bandidos lutando entre si,
não existe validade moral nenhuma se aproximar de um deles para derrotar o
outro. O único teste válido é se eles merecem ou não o título de bandidos.”
O
livro deliberadamente provocativo de Davies teve uma recepção mista, em parte
por causa de seu relato da guerra na Europa Oriental parecer minimizar a
importância do Holocausto. Nenhuma objeção pode ser feita em relação ao livro
moralmente escrupuloso Terras de Sangue:
A Europa entre Hitler e Stalin (2010) de Timothy Snyder[1], que centraliza
também a Europa Oriental – em particular a região compreendida entre os Bálcãs,
Ucrânia, Bielorússia, Rússia Ocidental e Polônia que Snyder denomina “as terras
de sangue”, pois elas foram o maior campo de massacres da Segunda Guerra
Mundial. Este foi o local das batalhas titânicas entre a Wehrmacht e o Exército
Vermelho: ele foi também o palco das 14 milhões de mortes de não-combatentes
entre 1933 e 1945. Este número compreende 10 milhões de civis e prisioneiros de
guerra mortos pelos nazistas – incluindo os seis milhões de judeus mortos no
Holocausto – e quatro milhões de civis e prisioneiros de guerra mortos pelos
soviéticos.
Ao
agrupar as baixas alemãs e soviéticas juntas, Snyder está sugerindo uma questão
implícita. A União Soviética era o aliado americano, a Alemanha nosso inimigo;
mas ambos os regimes foram culpados de matar milhões de pessoas por motivos
ideológicos. Não foram os três milhões de ucranianos levados à inanição por
Stalin em 1932-33 vítimas deliberadas da agressão estatal e do terror
ideológico não menos do que os três milhões de prisioneiros de guerra levados à
inanição por Hitler em 1941-42? “Somente uma aceitação ousada das semelhanças
entre os sistemas soviético e nazista permite uma compreensão de suas
diferenças,” mantém Snyder.
Se
Stalin permanece em nossa memória como um tirano igual a Hitler, Winston
Churchill é possivelmente o estadista estrangeiro mais amado pelos americanos.
Por esta simples razão, entretanto, Churchill tem sido assunto de algumas das
mais apaixonadas tentativas de revisar nossa compreensão da Segunda Guerra
Mundial. O subtexto desse debate, e talvez a principal razão para a sua veemência, tem a ver com o papel simbólico
descomunal que Churchill chegou a ter nos debates
de política externa norte-americanos
após o 11 de setembro. Quando o presidente Bush aludiu à
retórica da época de guerra de Churchill em seu discurso ao Congresso após os
ataques, Norman Podhoretz escreveu em A
Quarta Guerra Mundial (2007) que ele “inequivocamente e sem qualquer
ambiguidade colocou a guerra contra a ‘rede terrorista global’ em direta
sucessão à Segunda Guerra Mundial.” Foi amplamente divulgado que Bush mantinha
um busto de Churchill no Salão Oval – e que Obama o removeu.
Não é de surpreender, então, que os historiadores começariam a ver
Churchill, por bem ou por mal, através do prisma da política atual. O
historiador conservador Paul Johnson, para pegar um exemplo, escreveu uma
pequena biografia, Churchill (2009),
cuja premissa é que “de todas as grandes figuras do século 20, tanto boas como
más, Winston Churchill era a mais valiosa para a humanidade.” Simultaneamente,
relatos altamente críticos de Churchill proliferaram: A Loucura de Churchill: Como Winston Churchill criou o Iraque moderno
(2004), Sangue, Suor e Arrogância: e os
Mitos da Guerra de Churchill (2006). Não-historiadores com suas agendas
políticas também entraram em cena. O romancista Nicholson Baker escreveu um
relato revisionista da Segunda Guerra Mundial, Fumaça Humana: O começo da Segunda Guerra Mundial, o fim da Civilização
(2008), no qual Churchill torna-se tão responsável pela Segunda Guerra
quanto Hitler. Enquanto isso, Pat Buchanan escreveu Churchill, Hitler e a Guerra Desnecessária: Como a Grã-Bretanha perdeu
seu Império e o Ocidente perdeu o mundo (2008), culpando Churchill por
conduzir a Grã-Bretanha numa guerra contra a Alemanha acima de tudo. Esta lição
isolacionista foi direcionada, disse explicitamente Buchanan, ao “culto a
Churchill” que convenceu Bush, “um presidente inculto”, que libertar o Iraque
de Saddam Hussein era parecido como libertar a Europa de Hitler.
Em um período que viu historiadores como Niall Ferguson recomendar
o Império Britânico como um modelo para o exercício do poder americano no
exterior, a conexão entre o imperialismo de Churchill e seu preconceito racial
tornou-se um grande problema. Isso foi abordado com mais veemência em O Império
de Churchill (2010), de Richard Toye, que explorou de forma honesta as razões
do “humanitarismo não significa numa crença em igualdade racial” de Churchill.
Toye frequentemente escreve de forma admirada sobre Churchill, mas não deixa de
se envergonhar com a feiura de alguns de seus pontos de vista – como a
confissão de que “odeio pessoas com olhos puxados e tranças nos cabelos,” ou
sua nostalgia pelas “pequenas guerras contra os povos bárbaros.”
Mais sério que as declarações racistas é a acusação feita a
Churchill em um livro de Madhusree Mukerjee, A Guerra Secreta de
Churchill: O Império Britânico e a Devastação da Índia durante a Segunda
Guerra Mundial. Mukerjee coloca a responsabilidade pela epidemia de fome em
Bengala em 1943, que resultou na morte de cerca de três milhões de pessoas, nas
costas de Churchill. Ela aguça seu ponto fazendo analogias provocantes entre os
ingleses e os nazistas. No auge da epidemia, ela escreve, alguns restaurantes
populares em Bengala estavam oferecendo uma ração de apenas 400 calorias de
arroz por dia, “no nível mais baixo da escala na qual, simultaneamente, os
internos de Buchenwald eram alimentados.”
Críticos têm desafiado as conclusões de Mukerjee sobre a divisão
de culpa pela fome entre os britânicos, a invasão japonesa, clima inclemente em
Bengala e acumulação. Mas A Guerra
Secreta de Churchill é convincente em um ponto fundamental. Churchill se
recusou em desviar recursos alimentícios dos britânicos para os indianos
porque, seguindo a lógica do imperialismo, ele dava um valor mais alto às vidas
britânicas do que às indianas. O número de bengalenses que morreram em 1943
rivaliza com o número de ucranianos que, como Timothy Snyder mostra, foram
deliberadamente mortos por inanição por Stalin em 1932-33. Isto significa que
uma atrocidade comparável deve ser colocada contra a posição moral da
Grã-Bretanha e seus aliados na Segunda Guerra Mundial?
Ou a maior atrocidade dos Aliados cometida foi contra a própria Europa?
Os horrores dos bombardeios aéreos britânicos e americanos nas cidades alemãs
nunca foram segredo; O Matadouro Cinco (1969) de Kurt Vonnegut, com sua
evocação terrível do bombardeio de Dresden, permanece como um dos romances de
guerra americanos mais populares. Mas os debates americanos sobre a moralidade
do bombardeio tem tradicionalmente se centrado na bomba atômica, uma arma única
que levanta questões únicas.
O que torna os novos textos sobre o bombardeamento da Alemanha
especialmente significativos é que eles têm sido influenciados por aqueles que
o vivenciaram. Em um ensaio brilhante, Guerra
Aérea e Literatura, o romancista alemão W. G. Sebald se pergunta por que o
bombardeio aliado – que matou meio milhão de civis e devastou a maioria das
cidades alemãs – “parece ter deixado poucos traços de dor na consciência coletiva.”
Uns poucos anos antes, como se fosse uma resposta, o historiador alemão Jörg
Friedrich publicou O Incêndio: O
Bombardeamento da Alemanha, 1940 – 1945. Friedrich descreve o tipo de cena
que aconteceu nas ruas alemãs após os bombardeios: por exemplo, “um homem arrastando um
saco com cinco ou seis protuberâncias
nele como se estivesse carregando
cabeças de repolho. Eram as
cabeças dos membros de sua família, uma família inteira, que ele encontrou na
adega.”
Friedrich foi acusado, na Alemanha e em outros lugares, de usar
linguagem que implicitamente igualava o bombardeio aliado aos crimes de guerra
nazistas. Mas sua conclusão sobre a lição da Segunda Guerra Mundial – “civis
não mostram piedade a civis... a guerra total consome o povo totalmente, e seu
senso de humanidade é a primeira coisa a ir embora” – desafia a memória
anglo-americana da guerra em modos que são impossíveis de ignorar. Em Entre as Cidades Mortas: A História e o
Legado Moral do Bombardeio de civis na Alemanha e Japão na Segunda Guerra
Mundial (2006), o filósofo inglês A. C. Grayling estende o desafio,
perguntando: “Deveríamos nós, descendentes dos Aliados que ganharam a vitória
na Segunda Guerra Mundial, responder ao desafio moral dos descendentes
dasquelas cidades que foram almejadas pelos bombardeiros aliados?”
Grayling está certo de que ele, como todos na Inglaterra e América
(e na atual Alemanha também), lembra a Segunda Guerra Mundial como “apenas uma
guerra entre inimigos moralmente criminosos.” Mesmo assim, ele concluí que a
prática do bombardeio de área – no qual o Comando de Bombardeiros da Força
Aérea Real, em particular, bombardeou indiscriminadamente áreas urbanas na esperança
de infligir danos morais e econômicos à Alemanha – foi “um crime moral”: “Qual
é a diferença moral entre bombardear mulheres e crianças e atirar nelas com uma
pistola?... O anonimato do ato de matar a uma altitude de 20.000 pés?” No
final, Grayling é carregado pela força de seu próprio argumento em direção de
um veredito ultrajante: “Assim, vemos que existe pouca diferença entre a
Operação Gomorra da RAF, ou os ataques atômicos da Força Aérea americana a
Hiroshima e Nagasaki, e a destruição do World Trade Center em Nova York pelos
terroristas... Todos estes ataques terroristas são atrocidades.”
Os Aliados como a Al-Qaeda: está é a conclusão para a qual uma
reavaliação da Segunda Guerra Mundial deve nos levar? Se for assim, não admira
que alguns historiadores estejam impacientes com o novo projeto. O título do
historiador inglês Michael Burleigh Combate
Moral: Bem e Mal na Segunda Guerra Mundial, que foi publicado mês passado,
resume sua resposta aos descrentes: sim, foi realmente uma combate moral. Em
sua introdução, Burleigh tenta garantir que havia ambiguidades morais
envolvidas, mesmo dizendo que ele não tenta “desculpar os crimes de guerra
aliados.” Mesmo assim, quando ele discute o bombardeio aliado, é sob o
cabeçalho do capítulo “Os raios do Rei são justos” – o lema do 44º. Esquadrão
de Bombardeiros da RAF. E enquanto Burleigh tem consciência de que Arthur
Harris, o chefe do Comando de Bombardeiros, era “obcecado por devastar as
cidades alemãs,” ele fica mais irritado com aqueles que julgam Harris após o
ocorrido. Visando Grayling, talvez, Burleigh fulmina, “Guerras não são
conduzidas de acordo com deliberações dissecadas de um seminário filosófico
repleto de velhas senhoras.”
Isto é bruto e mal-humorado, mas o impulso defensivo de Burleigh é
compreensível. Se perdermos nossa habilidade de sentirmos orgulho da vitória
sobre Hitler, ficaremos privados de um de nossos nortes morais mais garantidos.
Mesmo assim, o patriotismo, sacrifício e bravura que lemos em um livro como Band of Brothers não podem ser anulados
pelo conhecimento da guerra na qual eles apareceram. De fato, o melhor das
novas histórias da Segunda Guerra Mundial pode ser encarado como uma tentativa
de nos dar, em 2011, um senso mais completo e autêntico do que realmente foi a
guerra para aqueles que a lutaram.
Nota:
[1]
Terras de Sangue: A Europa entre
Hitler e Stalin
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