domingo, 7 de maio de 2017

[POL] Hiroíto: Monstro ou marionete?

Cecília Selbach


Cansado dos bombardeios freqüentes, das mortes e da fome causadas pela Segunda Guerra, o povo japonês esperava o anúncio que o imperador faria pelo rádio. Apesar da tristeza e da exaustão, sobrava espaço para um certo frisson no ar. Naquele 15 de agosto de 1945, ao meio-dia, pela primeira vez o monarca iria falar diretamente a seus súditos. Até então, seus decretos eram sempre lidos por algum emissário. Em aparições públicas, ninguém estava autorizado a olhar diretamente para o soberano. Tocá-lo era proibido até mesmo para seus médicos e alfaiates. Ele era o deus vivo, descendente da deusa do Sol, Amaterasu.

Três anos e oito meses antes, o Japão declarara guerra aos Estados Unidos, com o ataque-surpresa a Pearl Harbor. Depois de alguns meses de vitórias japonesas, a situação se revertera. O Japão estava agora à mercê dos Estados Unidos, que haviam lançado, pela primeira e única vez, bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasáki. Nas ruas, as pessoas temiam que o imperador, sabendo da derrota inevitável, pedisse que todos se sacrificassem pela pátria. Afinal, na tradição do país, era preferível a morte à rendição. Acostumados a obedecer cegamente, grande parte dos súditos estava disposta a cometer o seppukku, o suicídio em nome da honra.

A transmissão imperial, porém, foi diferente. Foi preciso que os comentaristas da rádio explicassem o significado das palavras de Hiroíto, por causa de sua linguagem formal e arcaica. Mas, aos poucos, todos foram compreendendo a mensagem. Ele anunciava para os súditos o fim da guerra e dizia que concordara com o acordo proposto pelos países aliados. Sem mencionar as palavras rendição ou derrota, dizia que a guerra já causara muitas mortes e precisava acabar. Conclamou todos a “tolerar o intolerável” e disse que, ao testemunhar a morte de seus súditos e as dificuldades pelas quais seu povo agora passava, seus órgãos vitais partiam-se. 

Para muitos, essa foi a passagem mais marcante. Em vez de bravos com a derrota e com o imperador por ter autorizado a guerra, os japoneses se sentiram culpados por ter causado dor a seu soberano. Ao final, o número de suicídios foi mais ou menos o mesmo que na Alemanha, um povo sem a tradição de matar-se em nome da honra – entre 350 e 550 mortes. “Com esse discurso, o imperador tentou alcançar o impossível: converter o anúncio da derrota humilhante em mais uma afirmação da conduta do Japão na guerra e de sua própria moralidade transcendente”, diz o historiador americano John W. Dower no livro Embracing Defeat: Japan in the Wake of the World War II (“Abraçando a derrota: Japão no despertar da Segunda Guerra Mundial”, inédito em português).

Duas caras

Por sua atitude de encerrar a guerra e sua cooperação com os Estados Unidos na posterior ocupação do Japão, Showa - o nome pelo qual Hirohito ficaria conhecido após sua morte, segunda tradição japonesa - entraria para a história como um imperador pacífico, avesso ao militarismo. Uma figura meramente decorativa. Essa opinião prevaleceu por muitos anos. E deve-se, em boa parte, à capacidade do governante de raramente revelar suas verdadeiras intenções. Nos anos 70, porém, começaram a ser publicados documentos e diários de pessoas próximas ao imperador que mostravam um pouco mais sobre seu papel na guerra. As novas informações ajudaram alguns historiadores a tentar entender melhor Hiroíto. E o retrato que surge desses estudos não é simples como se pensava.

Para começar, Hiroíto era ambíguo por natureza. Nascido em 1901, foi criado para se espelhar em seu avô, Meiji, responsável pela modernização do Japão – o pai de Hiroíto, o imperador Taisho, esteve doente a maior parte da vida e não cumpriu todas as obrigações do posto. No governo de Meiji, estrangeiros foram chamados para construir portos, estradas e escolas. As roupas ocidentais tornaram-se moda. O decreto que proibia os japoneses de viajar ao exterior foi abolido. Mas, ao mesmo tempo que se abria para o Ocidente, o Japão temia ainda mais a ameaça estrangeira. Os japoneses não queriam que o país se tornasse a nova China, que tinha territórios dominados pelas potências europeias – como Hong Kong, tomado pelo Reino Unido. 

A contradição entre a modernidade e o passado – ou seja, entre a abertura ao mundo exterior e o nacionalismo extremo – continuaram presentes no Japão de Hiroíto. E ninguém personificou essa ambiguidade mais que ele mesmo. “Era como se ele estivesse dividido”, diz o historiador americano Herbert Bix, autor do livro Hirohito and the Making of Modern Japan (“Hiroíto e a construção do Japão moderno”, sem tradução em português). De um lado, os valores que recebera em sua educação mais européia, a democracia e a modernidade. Do outro, o passado militarista do Japão, país que nunca perdera uma guerra, e seu nacionalismo exacerbado.

Quero ser grande

Hiroíto tornou-se regente do Japão em 1921, quando o pai foi afastado por problemas mentais . A coroação ocorreu sete anos mais tarde. No poder, Hiroíto foi seduzido pela ideia, corrente no país então, do Japão como potência. Assim, não sucumbiriam, como a China, aos europeus. “[O Japão] estava decidido principalmente a jamais ser obrigado, como fora a China, a aceitar por qualquer período de tempo a presença estrangeira em seu território”, disse o jornalista Edward Behr em Hiroíto: por Trás da Lenda. A partir da guerra contra os chineses, nos anos 30, isso foi ficando cada vez mais claro nas conversas do imperador com seus assessores. “Não acredito que Hiroíto tenha procurado ligar sua imagem a uma ideologia ultranacionalista, mas ele permitiu que fizessem isso em seu nome. Depois, ele assumiu o papel de mais importante guia espiritual da nação em tempos de guerra”, diz Bix.

Em 8 de dezembro de 1941, os japoneses bombardearam Pearl Harbor, base naval americana no Havaí. Como pretendiam tornar-se potência, acreditaram que só ao lado dos alemães – que, em sua cabeça, seriam os vencedores da guerra – conseguiriam isso. Os Estados Unidos atrapalhavam o plano, por isso o Japão os atacou, pensando que o país se renderia à força e à autoridade japonesas. Foi tudo sem avisar, como parte de sua tradicional estratégia: a declaração de guerra aos Estados Unidos só chegou horas depois do bombardeio. Transcrições de reuniões com ministros mostram que o imperador sabia dos planos do ataque. E comemorou essa vitória, assim como as que se seguiram nos primeiros meses. Quando a situação da guerra se reverteu e o Japão começou a perder, Hiroíto questionava seus generais, não por estarem realizando as batalhas e pelas atrocidades que cometiam – as incursões do Japão fizeram uso de armas biológicas, estupros em massa e experiências médicas macabras com civis –, mas sim por estarem demorando demais a vencer.

Por volta de 1943, quando o pessoal do governo começava a perceber que a guerra estava perdida, tiveram início as discussões sobre a responsabilidade do imperador. A questão era difícil. A Constituição dizia que o imperador tinha poderes ilimitados e todas as decisões deviam passar por ele. Mas também dizia que ele não poderia ser responsabilizado pelos seus erros. Admitir que Hiroíto não tinha culpa, era apenas um fantoche, questionava seu poder. E culpá-lo pela guerra seria crime de lesa-majestade. Nessa época, a visão que o Ocidente tinha dele mudara. De monarca liberal, virou um dos três homens mais odiados do mundo, ao lado de Hitler e Stálin.

A maioria dos assessores do imperador optou por protegê-lo a qualquer custo. Muitos, porém, acreditavam que ele deveria renunciar. Até membros de sua família, como seu irmão mais novo, achavam que seria melhor para a monarquia que ele abdicasse. Mas quando, após os bombardeios em Hiroshima e Nagasáki, Hiroíto fez seu pronunciamento no rádio, no dia 15 de agosto, seu destino estava selado.

Teatro para salvar a monarquia

Às 10 da manhã de 27 de setembro de 1945, uma velha limusine Mercedes – presente do líder alemão Adolf Hitler – saiu do Palácio Imperial acompanhada de duas motocicletas e quatro carros, dois deles lotados de policiais. Em meio às ruínas de uma Tóquio recém-bombardeada, dirigiu-se para a Embaixada dos Estados Unidos. Dentro dela seguia um Hiroíto com roupas velhas. Ele pedira um encontro com o general americano Douglas MacArthur, comandante supremo das Forças Aliadas e responsável por ditar as regras no Japão depois da rendição do país – e, por isso, chamado de “xogum de olhos azuis”. 

Hiroíto seguia apreensivo, por não ter ainda certeza do que estaria reservado a ele no novo cenário, após a rendição e com a ocupação americana. Ele seria julgado por crimes de guerra e forçado a renunciar? De tão nervoso que estava, suas mãos tremiam ao entregar sua cartola para um dos assessores de MacArthur segurar. Frente a frente com o general, o imperador assumiu uma atitude humilde e, como era de seu feitio, ambígua. Chamou para si toda a responsabilidade pela guerra, mas, ao mesmo tempo, disse que, se tivesse pensado em ignorar os conselhos de seus assessores e não iniciar o confronto, teriam-no internado em um asilo de loucos ou assassinado. Satisfeito com essas explicações, MacArthur tranquilizou o imperador e aconselhou-o a não renunciar. Anos depois, em 1964, escreveria em seu livro de memórias, Reminiscences (“Reminiscências”, sem tradução em português) que, ao conhecer Hiroíto, esteve diante “do primeiro cavalheiro consumado do Japão”.

Hoje sabe-se que Hiroíto deu total aval à guerra, mas, fazendo isso a seu estilo, com muita sutileza, pôde depois atuar no papel de boneco nas mãos dos militares. Assim, o imperador não seria julgado como criminoso de guerra nos Julgamentos de Tóquio, feitos pelas forças aliadas que ocuparam o Japão (leia ao lado). Para justificar essa atitude, a ideia disseminada era a da impotência de Hiroíto, que seria um marionete na mão dos militares. Com a escassez de provas – a maioria dos documentos fora queimada nos dias após a rendição –, a maior parte dos estudiosos comprou, na época, essa versão. “Os americanos, especialmente os cientistas políticos, não perceberam a maneira japonesa de fazer política”, diz Bix.

O grande responsável por Hiroíto ter escapado dos julgamentos foi MacArthur. Ele acreditava que a permanência do imperador no trono seria útil para a ocupação, pois daria unidade ao povo japonês e o ajudaria a aceitar as mudanças. Mostrando-se extremamente cooperativo, Hiroíto conseguiu permanecer no poder e reinou até 1989, ano de sua morte. Submetendo-se à teoria de que havia sido um fantoche, o imperador perdeu o prestígio por ter tido força, afinal, para encerrar a guerra – o que fez contra a vontade de muitos de seus generais, que preferiam lutar até o último homem. Mas, se esse era o preço a pagar para continuar no trono, não importava.

Seus poderes, é claro, foram diminuídos. Alguns meses depois da rendição, em 1º de janeiro de 1946, ele renunciou a sua origem divina – novamente em um pronunciamento por rádio, no qual disse que a família imperial era formada apenas por seres humanos regulares, e o povo japonês não estava destinado a dominar o mundo. Pela nova Constituição, elaborada pelos americanos, a instituição do império permaneceria, mas destituída de poder político e da aura sagrada. Com o fim da ocupação americana, em 1952, as elites conservadoras, de certa forma expurgadas do poder durante a ocupação, voltaram a comandar o Japão – sem a liderança de Hiroíto.

Para Herbert Bix, o fato de o imperador não ter sido julgado trouxe mais prejuízos que benefícios, tanto para o Japão quanto para o mundo. “Ficou difícil para o Japão reconhecer a derrota e suas próprias atrocidades na guerra”, diz. Além disso, abriu um precedente péssimo: o de que os chefes de Estado não são culpados por esse tipo de crime. Aos poucos, o Japão seguiu rumo a uma recuperação quase inacreditável, que o levou a ser a segunda potência econômica nos anos 80, atrás apenas dos Estados Unidos. O que as armas não fizeram, as grandes empresas conseguiram – com uma bela força do imperador. Hiroíto serviu de peça de unificação: era símbolo da sobrevivência e da capacidade de recobrar-se do Japão. Como contava com o prestígio do povo, foi fundamental para que os japoneses aceitassem as mudanças, a ocupação, a Constituição mais democrática, a abertura. Não estava à frente das políticas, mas era essencial para que elas fossem implementadas.

Como o avô Meiji, Hiroíto escrevia poemas. Um deles era um apelo para que os súditos não se abalassem com o futuro. “O pinheiro é forte/ e não muda de cor/ com o peso da neve./ Assim as pessoas/ também deveriam ser.” Um poema que descreve, acima de tudo, sua própria atitude no pós-guerra. E sua extraordinária capacidade de se preservar e reinventar, como o único líder do Eixo a escapar ileso.

Longa vida


O reinado de Hiroíto foi o mais duradouro do Japão


1901
Filho do príncipe Yoshito (futuro imperador Taisho) e da princesa Sadako (depois imperatriz Teimei), Hiroíto nasce em 29 de abril, em Tóquio.

1912
O avô de Hiroíto, Meiji, morre no Japão.

1924
Hiroíto casa-se com a noiva que escolhera. Baixa e atarracada, Nagako não era bela, mas muito inteligente. Ao contrário do pai e do avô, é monogâmico e não mantém concubinas.

1926
Príncipe-regente desde 1921, quando o pai foi declarado incapaz, Hiroíto é entronado imperador com a morte de Taisho.

1928
Militares japoneses explodem o trem em que o líder chinês Chang Tso-lin viajava, na Manchúria. Hiroíto não condena os culpados – e mais tarde os promove. Em 1931, o Japão atinge o objetivo de invadir a China e controlar o país.

1959
Seu filho mais velho, príncipe Akihito, quebra uma tradição de 1500 anos e casa-se com uma plebeia, Shoda Michiko.

1971
É o primeiro imperador japonês a fazer uma visita ao estrangeiro.

1975
Faz sua primeira visita aos Estados Unidos.

1989
Após a morte de Hiroíto, Akihito assume o trono.


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