Cecília Selbach
Cansado dos bombardeios freqüentes, das mortes e da
fome causadas pela Segunda Guerra, o povo japonês esperava o anúncio que o
imperador faria pelo rádio. Apesar da tristeza e da exaustão, sobrava espaço
para um certo frisson no ar.
Naquele 15 de agosto de 1945, ao meio-dia, pela primeira vez o monarca iria
falar diretamente a seus súditos. Até então, seus decretos eram sempre lidos
por algum emissário. Em aparições públicas, ninguém estava autorizado a olhar
diretamente para o soberano. Tocá-lo era proibido até mesmo para seus médicos e
alfaiates. Ele era o deus vivo, descendente da deusa do Sol, Amaterasu.
Três anos e oito meses antes, o Japão declarara
guerra aos Estados Unidos, com o ataque-surpresa a Pearl Harbor. Depois de
alguns meses de vitórias japonesas, a situação se revertera. O Japão estava
agora à mercê dos Estados Unidos, que haviam lançado, pela primeira e única
vez, bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasáki. Nas ruas, as pessoas temiam
que o imperador, sabendo da derrota inevitável, pedisse que todos se
sacrificassem pela pátria. Afinal, na tradição do país, era preferível a morte
à rendição. Acostumados a obedecer cegamente, grande parte dos súditos estava
disposta a cometer o seppukku, o suicídio
em nome da honra.
A transmissão imperial, porém, foi diferente. Foi
preciso que os comentaristas da rádio explicassem o significado das palavras de
Hiroíto, por causa de sua linguagem formal e arcaica. Mas, aos poucos, todos
foram compreendendo a mensagem. Ele anunciava para os súditos o fim da guerra e
dizia que concordara com o acordo proposto pelos países aliados. Sem mencionar
as palavras rendição ou derrota, dizia que a guerra já causara muitas mortes e
precisava acabar. Conclamou todos a “tolerar o intolerável” e disse que, ao
testemunhar a morte de seus súditos e as dificuldades pelas quais seu povo
agora passava, seus órgãos vitais partiam-se.
Para muitos, essa foi a passagem mais marcante. Em
vez de bravos com a derrota e com o imperador por ter autorizado a guerra, os
japoneses se sentiram culpados por ter causado dor a seu soberano. Ao final, o
número de suicídios foi mais ou menos o mesmo que na Alemanha, um povo sem a
tradição de matar-se em nome da honra – entre 350 e 550 mortes. “Com esse
discurso, o imperador tentou alcançar o impossível: converter o anúncio da
derrota humilhante em mais uma afirmação da conduta do Japão na guerra e de sua
própria moralidade transcendente”, diz o historiador americano John W. Dower no
livro Embracing Defeat: Japan in the
Wake of the World War II (“Abraçando
a derrota: Japão no despertar da Segunda Guerra Mundial”, inédito em
português).
Duas caras
Por sua atitude de encerrar a guerra e sua
cooperação com os Estados Unidos na posterior ocupação do Japão, Showa - o nome
pelo qual Hirohito ficaria conhecido após sua morte, segunda tradição japonesa
- entraria para a história como um imperador pacífico, avesso ao militarismo.
Uma figura meramente decorativa. Essa opinião prevaleceu por muitos anos. E
deve-se, em boa parte, à capacidade do governante de raramente revelar suas
verdadeiras intenções. Nos anos 70, porém, começaram a ser publicados
documentos e diários de pessoas próximas ao imperador que mostravam um pouco
mais sobre seu papel na guerra. As novas informações ajudaram alguns
historiadores a tentar entender melhor Hiroíto. E o retrato que surge desses
estudos não é simples como se pensava.
Para começar, Hiroíto era ambíguo por natureza.
Nascido em 1901, foi criado para se espelhar em seu avô, Meiji, responsável
pela modernização do Japão – o pai de Hiroíto, o imperador Taisho, esteve
doente a maior parte da vida e não cumpriu todas as obrigações do posto. No
governo de Meiji, estrangeiros foram chamados para construir portos, estradas e
escolas. As roupas ocidentais tornaram-se moda. O decreto que proibia os
japoneses de viajar ao exterior foi abolido. Mas, ao mesmo tempo que se abria
para o Ocidente, o Japão temia ainda mais a ameaça estrangeira. Os japoneses
não queriam que o país se tornasse a nova China, que tinha territórios
dominados pelas potências europeias – como Hong Kong, tomado pelo Reino
Unido.
A contradição entre a modernidade e o passado – ou
seja, entre a abertura ao mundo exterior e o nacionalismo extremo – continuaram
presentes no Japão de Hiroíto. E ninguém personificou essa ambiguidade mais que
ele mesmo. “Era como se ele estivesse dividido”, diz o historiador americano
Herbert Bix, autor do livro Hirohito and the Making of Modern Japan (“Hiroíto e
a construção do Japão moderno”, sem tradução em português). De um lado, os
valores que recebera em sua educação mais européia, a democracia e a
modernidade. Do outro, o passado militarista do Japão, país que nunca perdera
uma guerra, e seu nacionalismo exacerbado.
Quero ser grande
Hiroíto tornou-se regente do Japão em 1921, quando
o pai foi afastado por problemas mentais . A coroação ocorreu sete anos mais
tarde. No poder, Hiroíto foi seduzido pela ideia, corrente no país então, do
Japão como potência. Assim, não sucumbiriam, como a China, aos europeus. “[O
Japão] estava decidido principalmente a jamais ser obrigado, como fora a China,
a aceitar por qualquer período de tempo a presença estrangeira em seu
território”, disse o jornalista Edward Behr em Hiroíto:
por Trás da Lenda. A
partir da guerra contra os chineses, nos anos 30, isso foi ficando cada vez
mais claro nas conversas do imperador com seus assessores. “Não acredito que
Hiroíto tenha procurado ligar sua imagem a uma ideologia ultranacionalista, mas
ele permitiu que fizessem isso em seu nome. Depois, ele assumiu o papel de mais
importante guia espiritual da nação em tempos de guerra”, diz Bix.
Em 8 de dezembro de 1941, os japoneses bombardearam
Pearl Harbor, base naval americana no Havaí. Como pretendiam tornar-se potência,
acreditaram que só ao lado dos alemães – que, em sua cabeça, seriam os
vencedores da guerra – conseguiriam isso. Os Estados Unidos atrapalhavam o
plano, por isso o Japão os atacou, pensando que o país se renderia à força e à
autoridade japonesas. Foi tudo sem avisar, como parte de sua tradicional
estratégia: a declaração de guerra aos Estados Unidos só chegou horas depois do
bombardeio. Transcrições de reuniões com ministros mostram que o imperador
sabia dos planos do ataque. E comemorou essa vitória, assim como as que se
seguiram nos primeiros meses. Quando a situação da guerra se reverteu e o Japão
começou a perder, Hiroíto questionava seus generais, não por estarem realizando
as batalhas e pelas atrocidades que cometiam – as incursões do Japão fizeram uso
de armas biológicas, estupros em massa e experiências médicas macabras com
civis –, mas sim por estarem demorando demais a vencer.
Por volta de 1943, quando o pessoal do governo
começava a perceber que a guerra estava perdida, tiveram início as discussões
sobre a responsabilidade do imperador. A questão era difícil. A Constituição
dizia que o imperador tinha poderes ilimitados e todas as decisões deviam
passar por ele. Mas também dizia que ele não poderia ser responsabilizado pelos
seus erros. Admitir que Hiroíto não tinha culpa, era apenas um fantoche,
questionava seu poder. E culpá-lo pela guerra seria crime de lesa-majestade.
Nessa época, a visão que o Ocidente tinha dele mudara. De monarca liberal,
virou um dos três homens mais odiados do mundo, ao lado de Hitler e Stálin.
A maioria dos assessores do imperador optou por
protegê-lo a qualquer custo. Muitos, porém, acreditavam que ele deveria
renunciar. Até membros de sua família, como seu irmão mais novo, achavam que
seria melhor para a monarquia que ele abdicasse. Mas quando, após os
bombardeios em Hiroshima e Nagasáki, Hiroíto fez seu pronunciamento no rádio,
no dia 15 de agosto, seu destino estava selado.
Teatro para salvar a monarquia
Às 10 da manhã de 27 de setembro de 1945, uma velha
limusine Mercedes – presente do líder alemão Adolf Hitler – saiu do Palácio
Imperial acompanhada de duas motocicletas e quatro carros, dois deles lotados
de policiais. Em meio às ruínas de uma Tóquio recém-bombardeada, dirigiu-se
para a Embaixada dos Estados Unidos. Dentro dela seguia um Hiroíto com roupas
velhas. Ele pedira um encontro com o general americano Douglas MacArthur,
comandante supremo das Forças Aliadas e responsável por ditar as regras no
Japão depois da rendição do país – e, por isso, chamado de “xogum de olhos
azuis”.
Hiroíto seguia apreensivo, por não ter ainda
certeza do que estaria reservado a ele no novo cenário, após a rendição e com a
ocupação americana. Ele seria julgado por crimes de guerra e forçado a
renunciar? De tão nervoso que estava, suas mãos tremiam ao entregar sua cartola
para um dos assessores de MacArthur segurar. Frente a frente com o general, o
imperador assumiu uma atitude humilde e, como era de seu feitio, ambígua.
Chamou para si toda a responsabilidade pela guerra, mas, ao mesmo tempo, disse
que, se tivesse pensado em ignorar os conselhos de seus assessores e não
iniciar o confronto, teriam-no internado em um asilo de loucos ou assassinado.
Satisfeito com essas explicações, MacArthur tranquilizou o imperador e
aconselhou-o a não renunciar. Anos depois, em 1964, escreveria em seu livro de
memórias, Reminiscences (“Reminiscências”, sem tradução em português) que, ao conhecer Hiroíto,
esteve diante “do primeiro cavalheiro consumado do Japão”.
Hoje sabe-se que Hiroíto deu total aval à guerra,
mas, fazendo isso a seu estilo, com muita sutileza, pôde depois atuar no papel
de boneco nas mãos dos militares. Assim, o imperador não seria julgado como
criminoso de guerra nos Julgamentos de Tóquio, feitos pelas forças aliadas que
ocuparam o Japão (leia ao lado). Para justificar essa atitude, a ideia
disseminada era a da impotência de Hiroíto, que seria um marionete na mão dos
militares. Com a escassez de provas – a maioria dos documentos fora queimada
nos dias após a rendição –, a maior parte dos estudiosos comprou, na época,
essa versão. “Os americanos, especialmente os cientistas políticos, não
perceberam a maneira japonesa de fazer política”, diz Bix.
O grande responsável por Hiroíto ter escapado dos
julgamentos foi MacArthur. Ele acreditava que a permanência do imperador no
trono seria útil para a ocupação, pois daria unidade ao povo japonês e o
ajudaria a aceitar as mudanças. Mostrando-se extremamente cooperativo, Hiroíto
conseguiu permanecer no poder e reinou até 1989, ano de sua morte. Submetendo-se
à teoria de que havia sido um fantoche, o imperador perdeu o prestígio por ter
tido força, afinal, para encerrar a guerra – o que fez contra a vontade de
muitos de seus generais, que preferiam lutar até o último homem. Mas, se esse
era o preço a pagar para continuar no trono, não importava.
Seus poderes, é claro, foram diminuídos. Alguns
meses depois da rendição, em 1º de janeiro de 1946, ele renunciou a sua origem
divina – novamente em um pronunciamento por rádio, no qual disse que a família
imperial era formada apenas por seres humanos regulares, e o povo japonês não
estava destinado a dominar o mundo. Pela nova Constituição, elaborada pelos
americanos, a instituição do império permaneceria, mas destituída de poder
político e da aura sagrada. Com o fim da ocupação americana, em 1952, as elites
conservadoras, de certa forma expurgadas do poder durante a ocupação, voltaram
a comandar o Japão – sem a liderança de Hiroíto.
Para Herbert Bix, o fato de o imperador não ter
sido julgado trouxe mais prejuízos que benefícios, tanto para o Japão quanto
para o mundo. “Ficou difícil para o Japão reconhecer a derrota e suas próprias
atrocidades na guerra”, diz. Além disso, abriu um precedente péssimo: o de que
os chefes de Estado não são culpados por esse tipo de crime. Aos poucos, o
Japão seguiu rumo a uma recuperação quase inacreditável, que o levou a ser a
segunda potência econômica nos anos 80, atrás apenas dos Estados Unidos. O que
as armas não fizeram, as grandes empresas conseguiram – com uma bela força do imperador.
Hiroíto serviu de peça de unificação: era símbolo da sobrevivência e da
capacidade de recobrar-se do Japão. Como contava com o prestígio do povo, foi
fundamental para que os japoneses aceitassem as mudanças, a ocupação, a
Constituição mais democrática, a abertura. Não estava à frente das políticas,
mas era essencial para que elas fossem implementadas.
Como o avô Meiji, Hiroíto escrevia poemas. Um deles
era um apelo para que os súditos não se abalassem com o futuro. “O pinheiro é
forte/ e não muda de cor/ com o peso da neve./ Assim as pessoas/ também
deveriam ser.” Um poema que descreve, acima de tudo, sua própria atitude no
pós-guerra. E sua extraordinária capacidade de se preservar e reinventar, como
o único líder do Eixo a escapar ileso.
Longa vida
O reinado de Hiroíto foi o mais duradouro do Japão
1901
Filho do príncipe Yoshito (futuro imperador Taisho) e da princesa Sadako (depois imperatriz Teimei), Hiroíto nasce em 29 de abril, em Tóquio.
Filho do príncipe Yoshito (futuro imperador Taisho) e da princesa Sadako (depois imperatriz Teimei), Hiroíto nasce em 29 de abril, em Tóquio.
1912
O avô de Hiroíto, Meiji, morre no Japão.
O avô de Hiroíto, Meiji, morre no Japão.
1924
Hiroíto casa-se com a noiva que escolhera. Baixa e atarracada, Nagako não era bela, mas muito inteligente. Ao contrário do pai e do avô, é monogâmico e não mantém concubinas.
Hiroíto casa-se com a noiva que escolhera. Baixa e atarracada, Nagako não era bela, mas muito inteligente. Ao contrário do pai e do avô, é monogâmico e não mantém concubinas.
1926
Príncipe-regente desde 1921, quando o pai foi declarado incapaz, Hiroíto é entronado imperador com a morte de Taisho.
Príncipe-regente desde 1921, quando o pai foi declarado incapaz, Hiroíto é entronado imperador com a morte de Taisho.
1928
Militares japoneses explodem o trem em que o líder chinês Chang Tso-lin viajava, na Manchúria. Hiroíto não condena os culpados – e mais tarde os promove. Em 1931, o Japão atinge o objetivo de invadir a China e controlar o país.
Militares japoneses explodem o trem em que o líder chinês Chang Tso-lin viajava, na Manchúria. Hiroíto não condena os culpados – e mais tarde os promove. Em 1931, o Japão atinge o objetivo de invadir a China e controlar o país.
1959
Seu filho mais velho, príncipe Akihito, quebra uma tradição de 1500 anos e casa-se com uma plebeia, Shoda Michiko.
Seu filho mais velho, príncipe Akihito, quebra uma tradição de 1500 anos e casa-se com uma plebeia, Shoda Michiko.
1971
É o primeiro imperador japonês a fazer uma visita ao estrangeiro.
É o primeiro imperador japonês a fazer uma visita ao estrangeiro.
1975
Faz sua primeira visita aos Estados Unidos.
Faz sua primeira visita aos Estados Unidos.
1989
Após a morte de Hiroíto, Akihito assume o trono.
Após a morte de Hiroíto, Akihito assume o trono.
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