O estudo sobre a pessoa de
Jesus Cristo remonta aos primórdios da igreja. Ao longo da história, inúmeros
questionamentos foram levantados a respeito de quem foi o carpinteiro de Nazaré,
sempre buscando responder a demandas levantadas pelos fieis em suas épocas. No processo,
várias ideias foram apresentadas, com algumas perdurando até os dias de hoje e
outras tantas sendo apagadas pela força do tempo.
Uma dessas ideias, levantada a
partir do final do séc. XIX e fundamental para a divisão da igreja alemã
durante o governo nazista na década de 1930, foi a visão de que Jesus Cristo
não poderia ter sangue judeu. Tal interpretação foi motivada pelo profundo
sentimento de repúdio e medo que os europeus, em especial os alemães na época
pré-Segunda Guerra Mundial, sentiam do povo judeu, além da visão de que a raça
ariana seria superior à raça judaica.
Uma das iniciativas tomadas
para realizar este intento foi reinterpretar a figura de Jesus Cristo, analisando sua vida e
ministério, separando-os do panorama judaico que a Bíblia apresenta no relato
de sua vida. Para chegar à conclusão de que Jesus não poderia ser judeu, os
estudiosos analisaram o relato de seu nascimento, seu local de origem, seu
ministério duplo de ensino e sinais, seu relacionamento com a liderança judaica
e sua constituição divina. Em todos os casos, tais estudiosos buscaram filtrar
qualquer traço judaico e místico da figura de Jesus, desta forma “purificando”
o pilar sobre o qual o Cristianismo foi construído.
Desconstruindo
o nascimento de Jesus
A teoria de que Jesus seria de
origem ariana foi difundida no final do séc. XIX pelo escritor Houston Stewart
Chamberlain, porém foi a influência de Wagner que motivou as crenças de Hitler.
Antissemita radical, Wagner afirmava que Jesus Cristo nascera com sangue ariano,
conforme uma revelação que tivera, e que não se tratava do Cristo judeu do Novo
Testamento, mas “de um Cristo que derramara sangue ariano e que lideraria a
Alemanha de volta à grandeza que era sua por direito”. Paul de Lagarde, um dos
grandes acadêmicos semitas, também rejeitou a visão cristã tradicional de que
Jesus era judeu, afirmando que isso era uma “distorção intolerável”.
Para se chegar a esta
conclusão, os estudiosos e teólogos da época se apoiaram em duas teorias a respeito da origem de
Jesus: A primeira, de que Jesus não teria nascido de uma virgem, e a segunda,
de que a região da Galileia possuía quase nenhum vínculo sanguíneo em relação a
região da Judeia.
Para eliminar totalmente a
possibilidade de origem judaica de Jesus, os estudiosos alemães precisavam
determinar que ele não tinha sangue judeu em suas veias. Relacionando a sua
origem paterna a um soldado romano, eles conseguiram alcançar metade do
objetivo. A outra metade, porém, precisava trabalhar a origem de Maria, mãe de
Jesus. Para tal, os estudiosos afirmaram que o local de nascimento de Maria, a
Galileia, não possuía traços sanguíneos judaicos.
Desconstruindo
a origem de Jesus
Segundo Steigmann-Gall, o conceito
de um Jesus ariano teria surgido nos escritos de Ernest Renan, francês católico
estudioso de linguística e religião e na disciplina científica desenvolvida por
ele, a filologia. Nas discussões desta matéria, teriam surgido os conceitos de
Semita e Ariano, inicialmente para descobrir o local das línguas indo-europeias
no momento originário do cristianismo, buscando estudar suas características
essenciais em conjunto com as características do idioma semita judeu, e
posteriormente sendo utilizados para assinalar características essenciais para
as pessoas que as falavam.
Segundo Cornelia Essner, o
antropólogo alemão Felix Von Luschan teria concluído, em uma assembleia de
especialistas em 1892, que “o povo judeu moderno é oriundo ‘primeiramente dos
Amoritas arianos, em segundo lugar de Semitas autênticos, final e
principalmente dos descendentes dos antigos Hititas’”. Segundo Steigmann-Gall,
o próprio conceito de Houston Stewart Chamberlain da arianidade de Jesus teria
surgido com esta disciplina, da qual Renan era um dos expoentes, e segundo a
própria Heschel, para Renan, durante sua carreira, “idioma, raça, cultura e
religião se tornaram intercambiáveis”.
A ideia da formação racial
diferenciada do povo galileu já era conhecida no séc. XIX. Friedrich Delitzsch, segundo
Heschel, já havia sugerido que, após a conquista assíria, a Galileia havia sido
reassentada com babilônios de origem mestiça ariana. Segundo Heschel, vários assiriólogos
atestaram que a população da Galileia teria origem gentílica nos séculos
imediatamente anteriores aos de Jesus, apesar de se basearem muito mais em mito
do que provas.
Desconstruindo
o discurso de Jesus
A questão da mensagem de Jesus
Cristo como sendo opositora à mensagem do judaísmo seria muito difundida pelo
Movimento Cristão Alemão. Em abril de 1939, segundo Bergen, um grupo de líderes
assinou um documento, a Declaração de Godesberg, onde afirmaram categoricamente
que o cristianismo era o oposto religioso irreconciliável do judaísmo. Um mês
depois, um grupo de Cristãos Alemães moderados e pessoas de fora do movimento
assinaram seu próprio documento em resposta, mas reafirmando que a raça era o
único princípio sob o qual o Cristianismo na Alemanha poderia ser organizado e
que “não há oposição maior do que a mensagem de Jesus Cristo e a religião
judaica da legalidade com sua esperança por um Messias político”.
Uma obra muito popular que
questionava a origem de Jesus através de seu discurso foi publicada em 1921, conforme
aponta Édouard Conte, por Artur Dinter: o romance, chamado O Pecado Contra o
Sangue. Nesse livro, o
protagonista, Hermann Kampfer, afirma
que Jesus não poderia ser judeu, por dividir o seu pensamento do pensamento e
da sensibilidade judaicos. Segundo o protagonista, por pregar interioridade,
desinteresse e sinceridade, a ideia de um Jesus judeu era incoerente, já que os
judeus pregavam exteriorização, egoísmo e fraude. Esse conflito de ideias só
poderia ser explicado pela diferença racial entre Jesus e os judeus.
Desconstruindo
o ministério de Jesus
Esta oposição de fé entre Jesus
e os judeus foi muito trabalhada ao longo dos anos finais do séc. XIX e começo
do séc. XX. Segundo vários estudiosos, “a originalidade da fé de Jesus” só poderia
ser restaurada removendo-a do contexto do judaísmo que deturpou a sua mensagem,
e apresentando a Cristo como “uma figura heroica com uma fé audaz em Deus que o
levou a se posicionar descompromissadamente contra a falsa piedade do seu tempo”.
Após analisar essas questões,
fica a pergunta: quais eram as influências na configuração desse novo Jesus,
distinto do movimento judaico? Além da influência assíria, alguns estudiosos começaram
a teorizar, ao comparar os textos sagrados de outras religiões com o cristianismo,
que haveriam correlações entre ambas que provariam que o relato bíblico de um
Jesus judeu não poderia ser verdadeiro. Heschel cita vários estudiosos que
tentaram fazer paralelos entre a vida de Jesus e a vida de Buda, como Arthur
Schopenhauer, que afirmava uma correlação entre os dois personagens porque
ambos “pregavam ascetismo”. Outros estudiosos, segundo ela, teriam começado a
analisar o Zoroastrismo para encontrar pontos de encontro com os ensinamentos
de Jesus que demonstrassem a sua raça.
Entretanto, segundo Heschel, o
povo do leste era muito remoto e efeminado, segundo alguns alemães
nacionalistas, para ser aceito como total orientador da origem de Jesus Cristo.
Nesse sentido, a partir dos anos 1890, Jesus começou a ser descrito como uma
combinação da “imanência do Ariano do Leste com a forma e pureza racial do
alemão, como exemplificado nos mitos teutônicos”. Esta teoria mostrou-se
extremamente perigosa, segundo Heschel, pois, com base na teoria de um pastor
da época - de que Jesus marcou a transição de um Deus transcendente para um Deus
imanente dentro de nós, sendo esta presença prova da identidade germânica de
Jesus – o foco da preocupação cristológica passou da incarnação de Deus para a
divinização do homem, abrindo caminho para a identificação de Hitler e do povo
alemão como divinos ou até mesmo como a personificação de Cristo.
A pergunta que resta, então, é
sobre a teoria dos autores para o fato do cristianismo ter se rejudaizado nos
anos seguintes à morte de Jesus. Legarde, segundo Heschel, joga a culpa em
Paulo, judeu declarado no próprio texto bíblico, que teria reconfigurado a
imagem de Cristo de um herói antissemita para um niilista, que negava a
identidade racial do homem ao clamar que “não há judeu nem grego”. Já Walter Grundmann
joga a culpa não em Paulo, mas nos autores judeus dos evangelhos.
A questão da origem antijudaica
de Jesus, porém, não era unanimidade. Segundo Hershel, Ernest Renan, em sua
famosa obra de 1863, Life of Jesus, Jesus é caracterizado como um galileu
que transformou-se de judeu em cristão, descrevendo o cristianismo como uma
forma religiosa purificada de qualquer judaísmo. Desta forma, Renan diverge de
seus sucessores, ignorando a questão racial na origem galileia de Jesus e
partindo para um viés mais religioso.
Conclusão
De qualquer forma, seja qual
for o motivo, o fato é que o movimento cristão-alemão adotou como uma de suas
premissas a noção de que Jesus Cristo não poderia ser judeu, adotando-o como um
campeão ariano que lutou contra aquele grupo. Como a intenção do movimento era
desvincular o cristianismo do judaísmo, é fácil perceber que o movimento não se
deteria apenas na desjudaização de Jesus, mas sim que ele partiria para uma
estratégia maior: Desjudaizar a religião cristã como um todo.
Raízes Místicas do Nazismo
Hitler, um perfil do poder
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