Os
documentos previamente secretos revelam a existência de uma coalizão de
aproximadamente 2.000 antigos oficiais – veteranos da Wehrmacht e da Waffen-SS
– que decidiram reunir um exército na Alemanha do pós-guerra em 1949. Eles se
prepararam sem o consentimento do governo alemão, sem o conhecimento do
parlamento e, os documentos mostram – circunavegando as forças de ocupação
aliadas.
O
objetivo dos ex-oficiais: defender a nascente Alemanha Ocidental contra a
agressão comunista nos estágios iniciais da Guerra Fria e, no front doméstico, mobilizar
forças contra a esquerda no caso de uma guerra civil. Essa frente anticomunista
juntou informação sobre políticos esquerdistas como Fritz Erler, do Partido
Social Democrata (SPD), um elemento-chave na reforma do partido após a Segunda
Guerra Mundial, e espionou estudantes como Joachim Peckert, que mais tarde
tornou-se um funcionário de alta patente na Embaixada da Alemanha Ocidental em
Moscou durante os anos 1970.
A
nova descoberta foi trazida à luz por uma coincidência. O historiador Agilof
Kesselring encontrou os documentos – que pertenciam à Organização Gehlen,
predecessor da atual agência de inteligência estrangeira – enquanto trabalhava
para uma Comissão Histórica Independente formada pelo BND par investigar sua
história inicial. Comissões semelhantes têm sido constituídas por um número de
autoridades alemãs nos anos recentes, incluindo os Ministérios das Finanças e
do Exterior para criar um registro preciso de seus legados silenciosos.
Kesselring
revelou os documentos, que receberam o estranho nome de “Seguros”, enquanto
tentava determinar o número de funcionários empregados pelo BND.
Ao
invés de documentos de seguros, Kesselring se deparou com o que agora pode ser
considerada a descoberta mais importante da Comissão Histórica Independente. O
estudo que ele escreveu sobre a descoberta foi liberado esta semana.
Uma facilidade na democracia
enfraquecida
O
arquivo está incompleto e, portanto, precisa ser considerado com certa reserva.
Mesmo assim, seu conteúdo testemunha a facilidade com a qual os padrões
constitucionais e democráticos poderiam ter sido enfraquecidos nos primeiros
anos de existência da Alemanha Ocidental.
De
acordo com os documentos, o Chanceler Konrad Adenauer não descobriu sobre a
existência do grupo paramilitar até 1951, quando então ele evidentemente
decidiu não revelá-lo.
No
caso de uma guerra, os documentos afirmam, o exército secreto poderia mobilizar
40.000 combatentes. O envolvimento de figuras importantes nas forças armadas
alemãs do futuro, o Bundeswehr, são um indicativo de quão séria a empreitada
teria sido.
Entre
os seus atores mais importantes estava Albert Schnez. Schnez nasceu em 1911 e
serviu como coronel na Segunda Guerra Mundial antes de ascender em patentes no
Bundeswehr, que foi criado em 1955. No final dos anos 1950, ele era parte da
equipe do então Ministro da Defesa Franz Josef Strauss (CDU) e mais tarde
serviu como comandante do exército alemão no governo Willy Brandt e Ministro da
Defesa no governo Helmut Schmidt (ambos do SPD).
Declarações
de Schnez citadas nos documentos sugerem que o projeto para construir um
exército clandestino também era apoiado por Hans Speidel – que tornar-se-ia o
Comandante Supremo da OTAN do Exército Aliado na Europa Central em 1957 – e
Adolf Heusinger, o primeiro inspetor geral do Bundeswehr.
Kesselring,
o historiador, tem uma conexão especial com a história militar: seu avô Albert
era um marechal e comandante supremo das forças meridionais no Terceiro Reich,
com Schnez como seu “general de transporte” subordinado na Itália. Ambos os
homens tentaram prevenir a rendição parcial da Alemanha na Itália.
Em
seu estudo, Kesselring dá uma folga para Schnez: ele não menciona suas ligações
com a extrema direita e ele descreve sua espionagem em supostos esquerdistas
como “checagens de segurança”. Quando perguntado sobre isso, o historiador
explica que ele lidará com estes aspectos do arquivo em um estudo compreensivo
no próximo ano. Mas o BND recentemente liberou os arquivos de “Seguros”,
tornando possível apresentar um quadro independente.
O
projeto do exército começou no período pós-guerra na Suábia, a região que cerca
Stuttgart, onde o então Schnez com 40 anos de idade negociava com madeira,
têxteis e itens domésticos e, por outro lado, organizava eventos sociais para
os veteranos da 25ª. Divisão de Infantaria, na qual ele serviu. Eles ajudavam
um ao outro, apoiavam as viúvas e órfãos de colegas e conversavam sobre os
velhos e novos tempos.
Medo de um Ataque vindo do Leste
Mas
seus debates sempre voltavam à mesma questão: o que deveria ser feito se os
russos ou seus aliados da Europa Oriental invadissem? A Alemanha Ocidental
ainda estava se, um exército na época e os americanos haviam retirado muito de
seus soldados da Europa em 1945.
A
princípio, o grupo de Schnez considerava-se derrotado e então liderando uma
guerrilha por trás da linhas, antes de realocar-se em algum lugar fora da
Alemanha. No evento de um ataque do Leste, um funcionário da Organização Gehlen
mais tarde escreveria, Schnez queria recuar suas tropas e conduzi-las com
segurança para fora da Alemanha. Elas então promoveriam uma batalha para
libertar a Alemanha a partir do exterior.
Para
preparar uma resposta à ameaça potencial, Schnez, o filho de um funcionário
público da Suábia, pensou em criar um exército. Mesmo ele violando a lei aliada
– organizações militares ou paramilitares foram banidas e os contraventores
sujeitos a prisão – a ideia tornou-se muito popular.
O
exército começou a tomar forma no final de 1950. Schnez coletou doações de
empresários e antigos oficiais, contatou grupos de veteranos de outras
divisões, pediu a empresas de transporte quais veículos eles poderiam fornecer
no pior cenário e trabalhou num plano de emergência.
Anton
Grasser, um antigo general de infantaria que foi empregado pela empresa de
Schnez, cuidou das armas. Em 1950, ele começou sua carreira no Ministério
Federal do Interior em Bonn, onde ele tornou-se inspetor geral e cuidou da coordenação
das unidades de Polícia Tática alemã nos estados alemães no caso de uma guerra.
Ele queria usar seus recursos para equipar a tropa no caso de uma emergência.
Não há sinais de que o Ministro do Interior Robert Lehr tivesse sido informado
destes planos.
Schnez
queria encontrar uma organização de unidades compostas de antigos oficiais,
idealmente staffs completos de divisões de elite da Wehrmacht, que poderiam ser
rapidamente mobilizadas no caso de um ataque. De acordo com listas contidas no
documento, todos os homens seriam empregados: eles incluíam empresários,
vendedores, advogados, instrutores técnicos e mesmo prefeitos. Presumivelmente,
eles eram todos anticomunistas e, em alguns casos, motivados pelo desejo de
aventura. Por exemplo, os documentos dizem que o tenente-general aposentado
Herrmann Hölter “não estava contente trabalhando em um escritório.”
A
maioria dos membros da reserva secreta vivia na parte meridional da Alemanha. Uma
visão geral nos documentos mostra que Rudolf Von Bünau, um general de
infantaria da reserva, liderava um “grupo de staff” nos arredores de Stuttgart.
Havia também subunidades em Ulm (comandadas pelo tenente-general da reserva
Hans Wagner), Heilbronn (tenente-general da reserva Werner Kampfhenkel),
Freiburg (general de divisão da reserva Wilhelm Nagel) e muitas outras cidades.
A
lista de Schnez não foi repassada, mas os documentos afirmam que ele disse ter
incluído 10 mil nomes, o suficiente para constituir o núcleo de um staff para
três divisões. Por motivos de segurança, ele mencionou apenas 2.000 oficiais.
Mesmo assim, Schnez não tinha dúvidas que o resto se juntaria a ele. Não parecia
haver qualquer escassez de candidatos para as unidades: acima de tudo, não havia
falta de alemães com experiência de guerra.
Ficou
para determinar onde eles poderiam se reunir no caso de uma emergência. Schnez
negociou locais suíços, mas as autoridades locais reagiram de forma muito
restritiva, os documentos afirmam que ele mais tarde planejou um possível
deslocamento para a Espanha no sentido de usá-la como base a partir do qual ele
lutaria ao lado dos americanos.
Colegas
descreveram Schnez como um organizador enérgico, mas também autoconfiante e
indiferente. Ele mantinha contatos com a Liga da Juventude Alemã e sua
organização especializada, Serviço Técnico, a qual ela própria estava se
preparando para uma guerrilha contra os soviéticos. Os dois grupos, criados
secretamente pelos EUA, incluíam antigos oficiais nazistas como membros e ambos
foram banidos pelo governo da Alemanha Ocidental em 1953 como organizações de
extrema-direita. Schnez, parece ser, não tinha escrúpulos de qualquer natureza em
se associar com ex-nazistas.
Schnez
também manteve um autodenominado aparato de inteligência que avaliava
candidatos para a “Companhia de Seguros”, como ele se referia ao projeto, e
determinava se eles tinham qualidades suspeitas. Um criminoso chamado K. foi
descrito como “inteligente, jovem e meio-judeu.”
Documentos
americanos acessados pela SPIEGEL indicam que Schnez negociou com o
ex-tenente-coronel da SS Otto Skorzeny. O oficial da SS tornou-se um herói
nacional durante a Segunda Guerra Mundial após ele ter conduzido uma missão bem
sucedida para libertar o ditador italiano deposto Benito Mussolini, que foi
preso pelo rei italiano. O antigo membro da SS tinha planos similares aos de
Schnez. Em fevereiro de 1951, os dois concordaram em “cooperar imediatamente na
região da Suábia.” Até hoje é desconhecido o conteúdo do acordo.
Em
sua busca por financiamento para uma operação contínua, Schnez pediu ajuda do service
secreto alemão ocidental durante o verão de 1951. Em um encontro em 24 de julho
de 1951, Schnez ofereceu os serviços de seu exército clandestino a Gehlen, o
chefe do serviço de Inteligência, para “uso militar” ou “simplesmente como uma
força potencial”, tanto para um governo alemão no exílio ou para os aliados
ocidentais.
Uma
anotação nos documentos da Organização Gehlen indica que havia “longas relações
de natureza amigável” entre Schnez e Reinhard Gehlen. Os documentos também
indicam que o serviço secreto tornou-se ciente da força clandestina
primeiramente na primavera de 1951. A Organização Gehlen classificou Schnez
como uma “conexão especial” com o desagradável codinome “narceja” (Schnepfe).
Adenauer recuou?
É
provável que o entusiasmo de Gehlen com a oferta de Schnez teria sido maior se
ela tivesse aparecido um ano antes, quando a Guerra da Coréia estava
acontecendo. Na época, a capital da Alemanha Ocidental, Bonn e Washington
estavam considerando a possibilidade de “reunir membros das antigas divisões de
elite alemãs no evento de uma catástrofe, armando-os e recrutando-os para as
tropas de defesa aliadas.”
Após
um ano, a situação mudou completamente e Adenauer recuou da ideia. Ao invés
disso, ele forçou uma integração da Alemanha Ocidental com o Ocidente e
preparou o terreno para a formação do Bundeswehr. O grupo ilegal de Schnez
tinha o potencial de ameaçar aquela política – se sua existência se tornasse
pública, poderia ter se tornado um escândalo internacional.
Mesmo
assim, Adenauer decidiu não tomar nenhuma ação contra a organização de Schnez –
o que levanta várias questões: ele estava recuando de um conflito com os
veteranos da Wehrmacht e da Waffen-SS?
Havia
dúvidas dentro da Organização Gehlen, particularmente em relação a Skorzeny. De
acordo com outro documento da BND analisado pela SPIEGEL, um chefe de divisão
levantou a questão se seria possível à organização tomar uma atitude agressiva
contra Skorzeny. O homem da Organização Gehlen sugeriu consultar a SS,
acrescentando que “a SS é um fator e devemos ouvir opiniões antes de tomar uma
decisão.” Aparentemente, redes de velhos e ex-nazistas ainda exerciam
influência considerável durante os anos 1950.
Tornou-se
também claro em 1951 que anos passariam antes que o Bundeswehr pudesse ser
criado. Da perspectiva de Adenauer, isto significava que, por enquanto, a
lealdade de Schnez e seus camaradas deveriam ser garantidas para o caso de um
cenário catastrófico. Provavelmente por causa disso, Gehlen foi recrutado pela
Chancelaria “para vigiar e monitorar o grupo.”
Parece
que Konrad Adenauer informou tanto seus aliados americanos quanto a oposição
política do plano na época. Os documentos parecem indicar que Carlo Schmid, na
época membro do comitê executivo nacional do SPD estava “na jogada”.
Pouco Conhecimento sobre a dissolução
do Exército
A
partir deste ponto, o staff de Gehlen manteve contato frequente com Schnez.
Gehlen e Schnez também fizeram um acordo para compartilhar informações
resultantes dos esforços de espionagem. Schnez se gabava de ter um aparato de
inteligência “particularmente bem organizado”.
A
Organização Gehlen começou a receber listas de alerta, incluindo nomes de
ex-soldados alemães que haviam supostamente se comportado de maneira “indigna”
enquanto prisioneiros de guerra dos soviéticos, a insinuação sendo de que os
homens haviam desertado para apoiar a União Soviética. Em outros relatórios,
eles relatavam “pessoas suspeitas de ser comunistas na área de Stuttgart.”
Mas
Schnez nunca foi agraciado com o dinheiro que ele esperava. Gehlen somente
permitiu que ele recebesse pequenas quantias, que acabaram no outono de 1953. Dois
anos depois, o Bundeswehr nasceu com seus primeiros 101 voluntários. Com o
rearmamento da Alemanha Ocidental, a força de Schnez tornou-se redundante.
Atualmente
é desconhecido quando exatamente o exército secreto foi dissolvido, já que nõ
houve nenhum comentário na época. Schnez morreu em 2007 sem mencionar nada
publicamente sobre estes eventos. Seus registros da “Companhia de Seguros”
desapareceram. O que é sabido baseia-se largamente nos documentos relacionados
à Organização Gehlen que acabaram como arquivo secreto do seu sucessor, o BND.
Parece
que eles foram deliberadamente denominados sob o título enganador de “seguros”
na esperança que ninguém jamais ficasse interessado neles.
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