quarta-feira, 18 de junho de 2014

Veteranos nazistas criaram exército ilegal

Der Spiegel, 14/05/2014

 
Por quase seis décadas, o arquivo de 321 páginas permaneceu despercebido nos arquivos do BND, a agência de inteligência alemã – mas agora seu conteúdo revelou um novo capítulo da história alemã do pós-guerra que é tão espetacular quanto misterioso.

Os documentos previamente secretos revelam a existência de uma coalizão de aproximadamente 2.000 antigos oficiais – veteranos da Wehrmacht e da Waffen-SS – que decidiram reunir um exército na Alemanha do pós-guerra em 1949. Eles se prepararam sem o consentimento do governo alemão, sem o conhecimento do parlamento e, os documentos mostram – circunavegando as forças de ocupação aliadas.

O objetivo dos ex-oficiais: defender a nascente Alemanha Ocidental contra a agressão comunista nos estágios iniciais da Guerra Fria e, no front doméstico, mobilizar forças contra a esquerda no caso de uma guerra civil. Essa frente anticomunista juntou informação sobre políticos esquerdistas como Fritz Erler, do Partido Social Democrata (SPD), um elemento-chave na reforma do partido após a Segunda Guerra Mundial, e espionou estudantes como Joachim Peckert, que mais tarde tornou-se um funcionário de alta patente na Embaixada da Alemanha Ocidental em Moscou durante os anos 1970.

A nova descoberta foi trazida à luz por uma coincidência. O historiador Agilof Kesselring encontrou os documentos – que pertenciam à Organização Gehlen, predecessor da atual agência de inteligência estrangeira – enquanto trabalhava para uma Comissão Histórica Independente formada pelo BND par investigar sua história inicial. Comissões semelhantes têm sido constituídas por um número de autoridades alemãs nos anos recentes, incluindo os Ministérios das Finanças e do Exterior para criar um registro preciso de seus legados silenciosos.

Kesselring revelou os documentos, que receberam o estranho nome de “Seguros”, enquanto tentava determinar o número de funcionários empregados pelo BND.

Ao invés de documentos de seguros, Kesselring se deparou com o que agora pode ser considerada a descoberta mais importante da Comissão Histórica Independente. O estudo que ele escreveu sobre a descoberta foi liberado esta semana.  

Uma facilidade na democracia enfraquecida

O arquivo está incompleto e, portanto, precisa ser considerado com certa reserva. Mesmo assim, seu conteúdo testemunha a facilidade com a qual os padrões constitucionais e democráticos poderiam ter sido enfraquecidos nos primeiros anos de existência da Alemanha Ocidental.

De acordo com os documentos, o Chanceler Konrad Adenauer não descobriu sobre a existência do grupo paramilitar até 1951, quando então ele evidentemente decidiu não revelá-lo.

No caso de uma guerra, os documentos afirmam, o exército secreto poderia mobilizar 40.000 combatentes. O envolvimento de figuras importantes nas forças armadas alemãs do futuro, o Bundeswehr, são um indicativo de quão séria a empreitada teria sido.

Entre os seus atores mais importantes estava Albert Schnez. Schnez nasceu em 1911 e serviu como coronel na Segunda Guerra Mundial antes de ascender em patentes no Bundeswehr, que foi criado em 1955. No final dos anos 1950, ele era parte da equipe do então Ministro da Defesa Franz Josef Strauss (CDU) e mais tarde serviu como comandante do exército alemão no governo Willy Brandt e Ministro da Defesa no governo Helmut Schmidt (ambos do SPD).

Declarações de Schnez citadas nos documentos sugerem que o projeto para construir um exército clandestino também era apoiado por Hans Speidel – que tornar-se-ia o Comandante Supremo da OTAN do Exército Aliado na Europa Central em 1957 – e Adolf Heusinger, o primeiro inspetor geral do Bundeswehr.

Kesselring, o historiador, tem uma conexão especial com a história militar: seu avô Albert era um marechal e comandante supremo das forças meridionais no Terceiro Reich, com Schnez como seu “general de transporte” subordinado na Itália. Ambos os homens tentaram prevenir a rendição parcial da Alemanha na Itália.

Em seu estudo, Kesselring dá uma folga para Schnez: ele não menciona suas ligações com a extrema direita e ele descreve sua espionagem em supostos esquerdistas como “checagens de segurança”. Quando perguntado sobre isso, o historiador explica que ele lidará com estes aspectos do arquivo em um estudo compreensivo no próximo ano. Mas o BND recentemente liberou os arquivos de “Seguros”, tornando possível apresentar um quadro independente.

O projeto do exército começou no período pós-guerra na Suábia, a região que cerca Stuttgart, onde o então Schnez com 40 anos de idade negociava com madeira, têxteis e itens domésticos e, por outro lado, organizava eventos sociais para os veteranos da 25ª. Divisão de Infantaria, na qual ele serviu. Eles ajudavam um ao outro, apoiavam as viúvas e órfãos de colegas e conversavam sobre os velhos e novos tempos.

Medo de um Ataque vindo do Leste

Mas seus debates sempre voltavam à mesma questão: o que deveria ser feito se os russos ou seus aliados da Europa Oriental invadissem? A Alemanha Ocidental ainda estava se, um exército na época e os americanos haviam retirado muito de seus soldados da Europa em 1945.

A princípio, o grupo de Schnez considerava-se derrotado e então liderando uma guerrilha por trás da linhas, antes de realocar-se em algum lugar fora da Alemanha. No evento de um ataque do Leste, um funcionário da Organização Gehlen mais tarde escreveria, Schnez queria recuar suas tropas e conduzi-las com segurança para fora da Alemanha. Elas então promoveriam uma batalha para libertar a Alemanha a partir do exterior.

Para preparar uma resposta à ameaça potencial, Schnez, o filho de um funcionário público da Suábia, pensou em criar um exército. Mesmo ele violando a lei aliada – organizações militares ou paramilitares foram banidas e os contraventores sujeitos a prisão – a ideia tornou-se muito popular.

O exército começou a tomar forma no final de 1950. Schnez coletou doações de empresários e antigos oficiais, contatou grupos de veteranos de outras divisões, pediu a empresas de transporte quais veículos eles poderiam fornecer no pior cenário e trabalhou num plano de emergência.

Anton Grasser, um antigo general de infantaria que foi empregado pela empresa de Schnez, cuidou das armas. Em 1950, ele começou sua carreira no Ministério Federal do Interior em Bonn, onde ele tornou-se inspetor geral e cuidou da coordenação das unidades de Polícia Tática alemã nos estados alemães no caso de uma guerra. Ele queria usar seus recursos para equipar a tropa no caso de uma emergência. Não há sinais de que o Ministro do Interior Robert Lehr tivesse sido informado destes planos.

Schnez queria encontrar uma organização de unidades compostas de antigos oficiais, idealmente staffs completos de divisões de elite da Wehrmacht, que poderiam ser rapidamente mobilizadas no caso de um ataque. De acordo com listas contidas no documento, todos os homens seriam empregados: eles incluíam empresários, vendedores, advogados, instrutores técnicos e mesmo prefeitos. Presumivelmente, eles eram todos anticomunistas e, em alguns casos, motivados pelo desejo de aventura. Por exemplo, os documentos dizem que o tenente-general aposentado Herrmann Hölter “não estava contente trabalhando em um escritório.”

A maioria dos membros da reserva secreta vivia na parte meridional da Alemanha. Uma visão geral nos documentos mostra que Rudolf Von Bünau, um general de infantaria da reserva, liderava um “grupo de staff” nos arredores de Stuttgart. Havia também subunidades em Ulm (comandadas pelo tenente-general da reserva Hans Wagner), Heilbronn (tenente-general da reserva Werner Kampfhenkel), Freiburg (general de divisão da reserva Wilhelm Nagel) e muitas outras cidades.

A lista de Schnez não foi repassada, mas os documentos afirmam que ele disse ter incluído 10 mil nomes, o suficiente para constituir o núcleo de um staff para três divisões. Por motivos de segurança, ele mencionou apenas 2.000 oficiais. Mesmo assim, Schnez não tinha dúvidas que o resto se juntaria a ele. Não parecia haver qualquer escassez de candidatos para as unidades: acima de tudo, não havia falta de alemães com experiência de guerra.

Ficou para determinar onde eles poderiam se reunir no caso de uma emergência. Schnez negociou locais suíços, mas as autoridades locais reagiram de forma muito restritiva, os documentos afirmam que ele mais tarde planejou um possível deslocamento para a Espanha no sentido de usá-la como base a partir do qual ele lutaria ao lado dos americanos.

Colegas descreveram Schnez como um organizador enérgico, mas também autoconfiante e indiferente. Ele mantinha contatos com a Liga da Juventude Alemã e sua organização especializada, Serviço Técnico, a qual ela própria estava se preparando para uma guerrilha contra os soviéticos. Os dois grupos, criados secretamente pelos EUA, incluíam antigos oficiais nazistas como membros e ambos foram banidos pelo governo da Alemanha Ocidental em 1953 como organizações de extrema-direita. Schnez, parece ser, não tinha escrúpulos de qualquer natureza em se associar com ex-nazistas.

Schnez também manteve um autodenominado aparato de inteligência que avaliava candidatos para a “Companhia de Seguros”, como ele se referia ao projeto, e determinava se eles tinham qualidades suspeitas. Um criminoso chamado K. foi descrito como “inteligente, jovem e meio-judeu.”

Documentos americanos acessados pela SPIEGEL indicam que Schnez negociou com o ex-tenente-coronel da SS Otto Skorzeny. O oficial da SS tornou-se um herói nacional durante a Segunda Guerra Mundial após ele ter conduzido uma missão bem sucedida para libertar o ditador italiano deposto Benito Mussolini, que foi preso pelo rei italiano. O antigo membro da SS tinha planos similares aos de Schnez. Em fevereiro de 1951, os dois concordaram em “cooperar imediatamente na região da Suábia.” Até hoje é desconhecido o conteúdo do acordo.

Em sua busca por financiamento para uma operação contínua, Schnez pediu ajuda do service secreto alemão ocidental durante o verão de 1951. Em um encontro em 24 de julho de 1951, Schnez ofereceu os serviços de seu exército clandestino a Gehlen, o chefe do serviço de Inteligência, para “uso militar” ou “simplesmente como uma força potencial”, tanto para um governo alemão no exílio ou para os aliados ocidentais.

Uma anotação nos documentos da Organização Gehlen indica que havia “longas relações de natureza amigável” entre Schnez e Reinhard Gehlen. Os documentos também indicam que o serviço secreto tornou-se ciente da força clandestina primeiramente na primavera de 1951. A Organização Gehlen classificou Schnez como uma “conexão especial” com o desagradável codinome “narceja” (Schnepfe).

Adenauer recuou?

É provável que o entusiasmo de Gehlen com a oferta de Schnez teria sido maior se ela tivesse aparecido um ano antes, quando a Guerra da Coréia estava acontecendo. Na época, a capital da Alemanha Ocidental, Bonn e Washington estavam considerando a possibilidade de “reunir membros das antigas divisões de elite alemãs no evento de uma catástrofe, armando-os e recrutando-os para as tropas de defesa aliadas.”

Após um ano, a situação mudou completamente e Adenauer recuou da ideia. Ao invés disso, ele forçou uma integração da Alemanha Ocidental com o Ocidente e preparou o terreno para a formação do Bundeswehr. O grupo ilegal de Schnez tinha o potencial de ameaçar aquela política – se sua existência se tornasse pública, poderia ter se tornado um escândalo internacional.

Mesmo assim, Adenauer decidiu não tomar nenhuma ação contra a organização de Schnez – o que levanta várias questões: ele estava recuando de um conflito com os veteranos da Wehrmacht e da Waffen-SS?

Havia dúvidas dentro da Organização Gehlen, particularmente em relação a Skorzeny. De acordo com outro documento da BND analisado pela SPIEGEL, um chefe de divisão levantou a questão se seria possível à organização tomar uma atitude agressiva contra Skorzeny. O homem da Organização Gehlen sugeriu consultar a SS, acrescentando que “a SS é um fator e devemos ouvir opiniões antes de tomar uma decisão.” Aparentemente, redes de velhos e ex-nazistas ainda exerciam influência considerável durante os anos 1950.

Tornou-se também claro em 1951 que anos passariam antes que o Bundeswehr pudesse ser criado. Da perspectiva de Adenauer, isto significava que, por enquanto, a lealdade de Schnez e seus camaradas deveriam ser garantidas para o caso de um cenário catastrófico. Provavelmente por causa disso, Gehlen foi recrutado pela Chancelaria “para vigiar e monitorar o grupo.”

Parece que Konrad Adenauer informou tanto seus aliados americanos quanto a oposição política do plano na época. Os documentos parecem indicar que Carlo Schmid, na época membro do comitê executivo nacional do SPD estava “na jogada”.

Pouco Conhecimento sobre a dissolução do Exército

A partir deste ponto, o staff de Gehlen manteve contato frequente com Schnez. Gehlen e Schnez também fizeram um acordo para compartilhar informações resultantes dos esforços de espionagem. Schnez se gabava de ter um aparato de inteligência “particularmente bem organizado”.

A Organização Gehlen começou a receber listas de alerta, incluindo nomes de ex-soldados alemães que haviam supostamente se comportado de maneira “indigna” enquanto prisioneiros de guerra dos soviéticos, a insinuação sendo de que os homens haviam desertado para apoiar a União Soviética. Em outros relatórios, eles relatavam “pessoas suspeitas de ser comunistas na área de Stuttgart.”

Mas Schnez nunca foi agraciado com o dinheiro que ele esperava. Gehlen somente permitiu que ele recebesse pequenas quantias, que acabaram no outono de 1953. Dois anos depois, o Bundeswehr nasceu com seus primeiros 101 voluntários. Com o rearmamento da Alemanha Ocidental, a força de Schnez tornou-se redundante.

Atualmente é desconhecido quando exatamente o exército secreto foi dissolvido, já que nõ houve nenhum comentário na época. Schnez morreu em 2007 sem mencionar nada publicamente sobre estes eventos. Seus registros da “Companhia de Seguros” desapareceram. O que é sabido baseia-se largamente nos documentos relacionados à Organização Gehlen que acabaram como arquivo secreto do seu sucessor, o BND.

Parece que eles foram deliberadamente denominados sob o título enganador de “seguros” na esperança que ninguém jamais ficasse interessado neles.

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