sábado, 14 de junho de 2014

[HOL] A verdade por trás do Dossiê Odessa e a fuga dos nazistas

Guy Walters

 


Vejo que os jornais de hoje estão repletos de relatos sobre Gudrun Burwitz, a filha de Heinrich Himmler, e sua organização Stille Hilfe (Ajuda Silenciosa), que é acusada de ajudar nazistas no exílio. Presumivelmente, as reportagens mencionam como a Stille Hilfe coopera com a Odessa, a rede clandestina nazista de fuga. Não estou qualificado para discutir as atividades da Stille Hilfe, mas sei uma coisa ou duas sobre a “Odessa”, e acredito que esta organização é mais o produto de fantasia do que realidade. Peço desculpas pela postagem longa, mas é um assunto próximo da minha vida profissional, e nada me deixa mais furioso do que ver pessoas que falam sem conhecimento algum sobre a “Odessa”.

O problema mais óbvio com a Odessa é o próprio nome. Se você está organizando uma rede super secreta de fuga para membros da SS, você realmente a nomearia com um acrônimo que significa Organização de Ex-Membros da SS (Organisation der ehemaligen SS-Angehörigen)? Acho que não.

A verdade sobre as organizações de fuga nazistas, sob nuvens de cogumelos de fumaça, é que elas eram muito semelhantes à uma organização filantrópica, ou talvez mesmo a uma rede de células terroristas chamada Al-Qaeda. Após a guerra, havia incontáveis organizações que ajudavam na fuga de nazistas, e alguns destes grupos tinham nomes – tais como “Konsul”, “Scharnhorst”, “Sechsgestirn”, “Leibwache”, “Lustige Brüder” – e outros não. Ao invés de um grande incêndio sob a fumaça, havia vários pequenos, a combinação de suas emissões múltiplas e tóxicas sugerindo um único grande incêndio. Assistência também seria fornecida em uma base específica, algumas vezes por um único indivíduo ou por um grupo de pessoas ao invés de um único grupo coordenado.

Contudo, os registros mostram que havia algo chamado “Odessa”. Longe de ser o monstro de tentáculos globalizado da imaginação popular, pareceu começar como pouco mais que uma palavra de ordem, e tornar-se-ia um termo vagamente atribuído ao grupo que levou fugitivos da Alemanha e Áustria para Roma e Genova, e de lá para a Espanha e Argentina. Uma das primeiras menções documentadas da “Odessa” está num memorando do Corpo de Contrainteligência dos EUA (CIC) datado de 31 de julho de 1946, no qual uma organização clandestina em um campo de prisioneiros da SS em Auerbach foi identificada. Ela não era chamada “Odessa”, mas a palavra era empregada como uma senha na ordem para ganhar privilégios e considerações especiais de alimentação da Cruz Vermelha em Augsburg.    

O termo também valia em outros lugares, em cidades como Kempten, Rosenheim, Mannheim e Berchtesgaden, onde foi aplicado a pequenas células de membros impenitentes da SSno sentido de dar-lhes um sentimento de solidariedade. Como estes grupos careciam de qualquer forma de organização e liderança, o CIC não se preocupou com eles.

Entretanto, em novembro, os tchecos informaram aos americanos que eles souberam de rumores sobre uma organização chamada “ODESSA” que estava operando na zona britânica de ocupação, e que ela teve seu primeiro encontro em Hamburgo em setembro. Em janeiro do ano seguinte, o CIC enviou um agente a um campo de internamento em Dachau, que relatou que havia uma organização de fuga operando lá sob o nome de “ODESSA” e organizada pelo tenente-coronel da SS Otto Skorzeny, ele próprio um prisioneiro.

“Isto é feito com a ajuda de guardas poloneses,” relatou o agente, “que os estão ajudando a receber ordens de Skorzeny para escapar.” O informante revelou que a organização era “mundial” e que ela fornecia documentos portugueses para aqueles que queriam viajar para a Argentina. Para aqueles que decidiram permanecer na Alemanha, o grupo forneceria emprego e documentação. Entretanto, nem os americanos nem os britânicos foram capazes de verificar quaisquer das afirmações do informante. “Personagens-chaves têm sido vigiadas atentamente,” relatou o CIC, “mas nenhuma de suas atividades tem se estendido além do estabelecimento de contato com antigos membros da SS em seus locais.” O CIC também achava que o nome de Skorzeny era usado apenas como “suporte e prestígio”.

A ideia de que Otto Skorzeny bolou uma sociedade secreta é fantasiosa, até porque quase todo movimento que ele fazia era monitorado pelos americanos, e provavelmente, por outras nações. Skorzeny também não era, sendo franco, inteligente ou discreto o suficiente para gerenciar uma rede clandestina de fuga.

Ao longo dos meados dos anos 1940, os serviços de inteligência aliados receberiam uns poucos relatórios sobre a “Odessa”, mas eles sugeriam que a organização era um pouco mais do que um bote salva-vidas para antigos nazistas que queriam continuar lutando. Além disso, a natureza da Odessa parecia mudar dependendo de quem estava sendo interrogado. Em dezembro de 1947, o CIC em Donauwörth interrogou um antigo oficial da SS chamado Robert Markworth, que foi preso por uma tentativa de suborno. Markworth afirmou que ele estava em uma missão secreta para a Odessa, missão que era infiltrar-se no governo militar russo e não tinha nada a ver com fuga.

No começo daquele ano, os americanos ficaram sabendo por um informante que o modo de contatar a organização era simplesmente se misturar com a multidão em estações ferroviárias principais até que alguém fosse abordado por uma pessoa dizendo a palavra ODESSA. O informante, que os americanos não conheciam e que havia se apresentado como voluntário, tentou a sorteem Hanover, onde ele encontrou um tal de “Herbert Ringel”, que afirmou que o objetivo da Odessa era o planejamento de uma “eventual revolução”. A informação atravessou o grupo e foi espalhada por uma rede de contatos, nenhum dos quais conhecia o nome da próxima pessoa na cadeia. O método de identificação era a presença de três pequenas marcas na forma de um triângulo na base do polegar e do dedo indicador da mão direita. “Ringel” também mostrou ao informante sua carteira de identificação (Odessa Ausweis), que mostrava o suposto símbolo da Odessa em sua frente: duas flechas cruzadas sobre as letras “ODESSA”. Os americanos classificaram o informante como F3, que indicava que sua falta de fiabilidade não poderia ser julgada e que a informação era possivelmente verdade.

De fato, o que ele havia relatado tinha todo jeito de desinformação, e uma tentativa amadora de fazer isso. A noção de que a Odessa forneceria aos seus membros documentos de identificação era absurda, e a presença das três marcas era igualmente improvável. Também parecia improvável que um membro da Odessa ofereceria tais segredos a um estranho em uma estação ferroviária em Hanover.

No mesmo ano, outra organização se autodenominando Odessa foi descoberta em Rosenheim pelo CIC, apesar de parecer consistir de pouco mais de uma dúzia de homens, alguns dos quais tendo sido aprisionados previamente por roubo e possessão de armas. O CIC relatou que tinha se infiltrado no grupo e notou que a palavra Odessa era usada como uma espécie de senha. O líder do grupo, Hans Schuchert, foi descrito como um “soldado SS fanático que sempre saudava seus colegas com um ‘Hail Odessa’.” Em um baile dançante no Gasthaus Plestkeller em Ziegelberg nos arredores de Rosenheim, Schuchert reuniu um número de membros da SS. “Agora vem a dança pela Odessa,” disse ele. “Isto significa muito para a SS.” Apesar de alguns convidados ficarem chocados, ninguém – incluindo alguns policiais presentes – registraram qualquer queixa.

Uma pessoa que ficou interessada na Odessa foi Simon Wiesenthal. Em 3 de abril de 1952, Wiesenthal escreveu uma longa carta ao jornalista alemão Ottmar Katz sobre  ouro nazista e como o tesouro estava sendo supostamente usado para financiar a fuga dos nazistas. Na carta, uma cópia vagabunda da qual está guardada nos Arquivos Nacionais em Washington, Wiesenthal diz a Katz sobre várias sociedades secretas nazistas, tais como a Scharnhorst, Sechsgestirn, Edelweiss, Spinne e PAX. Wiesenthal também escreve sobre a Odessa, a qual, ele informa Katz, é uma organização de fuga que transportava fugitivos para Bispo Hudal em Roma e de lá eles partiam para Madri e América do Sul.

A fonte de Wiesenthal para seu conhecimento sobre a Odessa era Wilhelm Hoettl, um antigo membro da SD que estava administrando redes altamente duvidoss para os americanos até que eles o dispensaram em setembro de 1949[1]. A informação que ele reuniu tinha sido avaliada como pobre e o CIC o considerou desonesto. Também havia uma suspeita que ele leiloava informação a quem pagasse mais alto, não importando de que lado da Cortina de Ferro o dinheiro viesse.

Também não deve haver dúvidas de que muito do que Wiesenthal disse a Katz em sua carta era ainda mais idiotice fornecida a ele por Hoettl. É interessante que a carta para Katz tenha terminado no arquivo de Hoettl nos Arquivos Nacionais dos EUA. Consequentemente, é extremamente difícil confiar em qualquer coisa que o ingênuo Wiesenthal apresentaria mais tarde ao mundo relativo à Odessa e como os nazistas escaparam.

Mesmo nazistas como Reinhold Kops, que escreveu um conjunto de memórias sinceras em 1987, negaram a existência de tal organização chamada Odessa. Alfred Jarschel, cujo livro fantasioso Fugindo de Nuremberg está repleto das estórias mais ultrajantes dobre as fugas nazistas – incluindo a “escapada” de Martin Bormann – era cético em relação a Odessa, e a via mais como uma forma de Wiesenthal vender material a jornalistas.

Além disso, Erich Priebke, o antigo capitão da Gestapo preso em Roma, me disse que a Odessa é um mito. “Sempre digo que Odessa é uma invenção dos ingleses,” diz ele, se referindo a Frederick Forsyth. “Teria sido sortudo se alguém tivesse me ajudado, mas não havia tal Odessa.” Priebke citou a falta de assistência financeira que ele sofreu como evidência de que o grupo não existia.

Frederick Forsyth ouviu sobre a estória em um artigo do Sunday Times escrito por Antony Terry em julho de 1967, na qual a função da Odessa era descrita, e como seu grande golpe foi o resgate de – quem mais? – Martin Bormann. A fonte de Terry para a estória era ninguém menos que Simon Wiesenthal. Tivesse o editor de Terry sabido que a fonte principal de tal informação era um antigo membro do SD chamado Wilhelm Hoettl, então ele teria descartado o artigo.

Ou talvez não. Acima de tudo, a Odessa, como Frederick Forsyth a concebeu, é uma grande estória de ficção.            


Nota:

[1] Wilhelm Hoettl, uma fonte comprovadamente desonesta, foi usado no Julgamento de Nuremberg como testemunha de acusação, afirmando que tivera uma conversa com Adolf Eichmann, quando então o seu chefe na Questão Judaica teria confirmado que 4 milhões de judeus tinham sido mortos em vários campos de concentração e cerca de 2 milhões morreram de outras formas, totalizando o famoso número do Holocausto, 6 milhões.

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