sábado, 5 de abril de 2014

Os últimos pagãos da Europa

Fabio Marton

A força era relativamente pequena. Não passava de 300 cavaleiros e soldados de infantaria. Estava às portas da cidade de Gdansk, no litoral da atual Polônia. O uniforme era um paradoxo: túnicas com cruzes pretas cobriam as armaduras. Na cabeça, os elmos eram decorados com chifres. Pareciam demônios agindo em nome de Jesus Cristo. Há controvérsia sobre o que se seguiu.Não está claro se as portas foram abertas, se houve cerco ou combate. O fato é que a Ordem dos Cavaleiros Teutônicos entrou em Gdansk sem muita resistência. Sua missão era retomá-la para o rei da Polônia, após uma revolta de comerciantes alemães negar a autoridade do soberano. Com a cidade conquistada, em 13 de novembro de 1308, todos os resistentes foram mortos. Eram, em sua maioria, compatriotas alemães. As mulheres e crianças tiveram o mesmo destino. Depois, os invasores atearam fogo no local. Cachorros lambiam o sangue que escorria copioso nas ruas. As crônicas medievais, provavelmente exageradas, falam em 10 mil vítimas no que ficou conhecido como o Massacre de Gdansk.

Os Cavaleiros Teutônicos esperavam o pagamento real pelo serviço prestado. Como não se chegou a um acordo, convocaram mais 4 mil cavaleiros, expulsaram a guarnição polonesa e prosseguiram conquistando e arrasando todas as cidades da Pomerélia, deixando a Polônia sem litoral. O massacre gerou um processo em Roma, durante o qual a Ordem chegou a ser excomungada pelo papa, mas terminou absolvida. Se um massacre covarde não parece uma boa introdução para uma história de cavalaria, é porque as Cruzadas do Norte não foram feitas de honra e glória, mas forjadas em combates desiguais, fanatismo, traição e ambição mercantil. Como no Oriente Médio, guerreiros que fizeram votos de pobreza e castidade cometeram saques e estupros. Por mais de dois séculos, a cristandade esteve em guerra santa contra diversos povos do Mar Báltico, os últimos pagãos da Europa.

 
Cristianismo, armado e perigoso

Após a conquista de Jerusalém pela Primeira Cruzada, em 1099, a cristandade viveu uma fase de violenta euforia. A conversão dos vikings, iniciada no século 8, havia se dado de forma relativamente pacífica, por contato, diplomacia e trabalho missionário - ninguém precisou conquistá-los para impor a crença à força. A opção começou a parecer atraente após a vitória na Cidade Santa. Em 1147, o abade Bernardo de Clairvaux anunciou a primeira das Cruzadas do Norte: "Proibimos expressamente que por qualquer razão se faça paz com esses povos, seja por dinheiro ou tributo, até chegar o tempo em que, com a ajuda de Deus, eles ou sua religião sejam destruídos". As palavras de Bernardo (mais tarde São Bernardo) têm origem um ano e meio antes, quando o papa Eugênio III convocou a Segunda Cruzada para recuperar um território perdido no Oriente Médio. Os alemães da Saxônia pediram uma reunião com Clairvaux, já então um grande ideólogo e propagandista da guerra santa, para demonstrar que o inimigo infiel estava na porta de casa e não era preciso viajar ao Oriente Médio para enfrentá-lo. Numa faixa entre a Alemanha e a Rússia, povos de diversas etnias recusavam a conversão. Uma dessas regiões era a Prússia, habitada então por eslavos. Em 997, o missionário São Adalberto foi morto pelos prussianos a golpes de lança depois que tentou, sem sucesso, cortar a árvore sagrada dos pagãos com seu machado. Sua cabeça desfilou pelas ruas. Havia também apostasia, como a que ocorreu na ascensão do príncipe Niklot, dos vendos, em 1131, que retomou crenças ancestrais depois de dois príncipes cristãos.

Os povos do báltico viviam em sociedades violentas, com frequentes ataques de uns contra os outros. Haviam sido empurrados para a região na Antiguidade, por inimigos eslavos, celtas e germânicos, até conseguirem se proteger atrás de uma faixa de pântanos e florestas que cruzava a atual Polônia. Não tinham escrita. O que se sabe deles vem de sítios arqueológicos, folclore e relatos de seus inimigos. Suas armas eram primitivas: lanças, machados e porretes. Tinham cavalos, mas eram pôneis, menores que os de outros europeus. Sabiam fazer fortificações de madeira e não tinham armas de cerco, como catapultas, torres e trabucos. Os únicos entre eles que chegaram a ter um exército foram os lituanos, que adotaram as tecnologias de seus inimigos - todos os outros eram bandos desorganizados de guerreiros, a típica imagem do bárbaro.

Com barcos de construção similar aos dos vikings, os pagãos que viviam no litoral faziam incursões de pirataria. Por ironia, seu alvo costumava ser os países nórdicos. "Jovens [bálticos] só conseguiam adquirir o dinheiro necessário para comprar uma fazenda e casar por meio da guerra - pilhagens traziam dinheiro, gado, cavalos e escravos", afirma o historiador William Urban, da Universidade de Monmouth (EUA). Influenciado por Bernardo de Clairvaux, o papa Eugênio III lançou uma bula, em 13 de abril de 1147, afirmando que guerrear contra os infiéis na Península Ibérica e no Báltico teria o mesmo efeito que fazer isso no Oriente Médio. O guerreiro seria perdoado por todos os seus pecados, ganhando acesso direto ao Paraíso.

Guerra confusa

O príncipe Niklot reagiu ao avanço cristão na região com um ataque preventivo aos saxões, dando início à Cruzada dos Vendos. Foi uma guerra curta e confusa. Forças unidas de dinamarqueses, saxões e poloneses, comandadas muitas vezes por bispos e abades, invadiram o território eslavo, saqueando, queimando templos e batizando guerreiros derrotados pelo caminho. No cerco à principal fortificação dos vendos, Dobin, os saxões exigiram o batismo das tropas dentro da fortaleza. Niklot não só aceitou como prometeu pagar tributos a eles. Os cruzados passaram água na cabeça dos inimigos e deram as costas, como se a missão estivesse cumprida. Tanto o príncipe como a maioria dos "convertidos" continuariam pagãos até o fim da vida. Em 1160, após uma revolta, o líder dos vendos foi morto em combate.

Muitos cristãos tomaram a nova regra papal como licença para abusar dos infiéis. Em 1186, com problemas financeiros por causa de uma guerra interna, o rei Sverre da Noruega foi buscar recursos saqueando as terras dos bálticos. Em 1195, atendendo a um pedido por reforços militares em uma missão na Livônia, os suecos se limitaram a encher seus barcos de carga roubada e ir para casa celebrar. Com a autorização do papa, os nórdicos tiveram a chance de voltar a fazer "ataques vikings à moda antiga", descreveu o historiador Eric Christiansen, autor do livro The Northern Crusades (sem tradução). Na Livônia (território das atuais Estônia e Letônia) havia uma missão cristã desde 1185.

Ela começou pacífica, mas se militarizou quando os religiosos perderam a paciência com as conversões insinceras dos pagãos. Em 1193, o papa Celestino III autorizou privilégios cruzadistas para quem reforçasse as tropas na região. Liderando esses exércitos, o bispo Bernardo de Hanover acabou morto, em 1198. Isso levou Inocente III, sucessor de Celestino, a decretar a Cruzada da Livônia. A guerra durou quase um século, e se estendeu a vários outros alvos, como os estonianos e letões. A Ordem Livônia dos Irmãos da Espada foi fundada em 1202. O território conquistado por esses monges guerreiros passou a ser chamado de Terra Mariana - a "terra santa" da Virgem Maria, não menos importante que Jerusalém.

Ainda hoje, os Irmãos da Espada são particularmente infames entre os povos bálticos: "Em nome de Cristo, atacavam, saqueavam, sequestravam, estupravam, matavam", escreveu o historiador letão Visvaldis Mangulis. Estupros eram obviamente proibidos pelos votos de castidade, mas, segundo Christiansen, "o irmão-cavaleiro estava exposto a fortes tentações, pois o poder frequentemente deixava as mulheres à sua mercê. Elas eram butim, e a expectativa de estupro era o que mantinha seus auxiliares nativos motivados. Alguns cavaleiros devem ter se juntado a eles".

Enquanto prosseguia a Cruzada da Livônia, entraram em ação os Cavaleiros Teutônicos. Surgida no final do século 12 em Acre, na Palestina, a ordem era formada por guerreiros que viviam em conventos, renunciando à propriedade e aos prazeres carnais, até mesmo à mesa: se alimentavam quase só de pão, água e alguns vegetais insossos. Os Cavaleiros passaram a procurar novos alvos após as sucessivas derrotas dos cristãos na Palestina, principalmente com a queda de Jerusalém em 1187. Em 1226, aceitaram o convite do duque polonês Conrado I, de Masóvia, para tomar parte em sua até então malfadada campanha contra os prussianos. Conrado deu a eles um feudo em Chelmno, que se expandiria em um novo país.

Com uma força de 10 mil homens, em 1233, os cruzados levariam quase 30 anos para conquistar a Prússia. Os territórios passaram a fazer parte do Ordensstaat, o Estado da Ordem, ao qual se juntaram as conquistas dos Irmãos da Espada, em 1236, após a Batalha de Saule, na qual os lituanos praticamente aniquilaram os monges-guerreiros - os sobreviventes se juntaram aos teutônicos. Com pagãos escasseando na região, em 1241, a Ordem passa a atacar outros cristãos, invadindo a República de Novgorod, de ortodoxos russos, com apoio do papa e dos reinos da Suécia e Dinamarca. Foram derrotados na Batalha do Gelo, imortalizada no filme Alexander Nevsky (1938), de Sergei Eisenstein. A cavalaria russa empurrou os cruzados para dentro de um lago congelado - com suas armaduras pesadas, o gelo se partiu e 20 deles foram ao fundo. A humilhação delimitou a fronteira máxima da ação dos cruzados: eles nunca mais voltariam a atacar os russos. O território do Ordensstaat cresceu em outras direções e chegou a dominar todo o litoral do Báltico entre a Alemanha e Rússia no final do século 15.

A vingança dos poloneses

Em 1283, a Ordem voltou-se contra o Grão-Ducado da Lituânia, o último e mais poderoso reino pagão da Europa. E também seu maior fracasso. Mesmo após um século de guerras e devastação, os lituanos só aumentaram seus domínios, chegando a uma imensa faixa entre os mares Negro e Báltico. Em 1385, a guerra acabou em derrota moral para os Cavaleiros, quando o grão-duque Jogalia da Lituânia casou-se com a rainha Edviges da Polônia, convertendo-se ao catolicismo e unificando os reinos. Quando uma revolta nativista no Ordensstaat foi apoiada pelos lituanos, os Cavaleiros declararam guerra aos países unificados, em 1409. Foi um desastre: acabaram trucidados na Batalha de Grunwald, um ano depois. A ordem perdeu suas possessões bálticas, principalmente para a Polônia-Lituânia, até os últimos e pequenos feudos monásticos, em 1583, após a Guerra da Livônia - quase dois séculos após os últimos pagãos da Europa terem se inclinado à pia batismal e 446 anos após o início das Cruzadas do Norte. A Ordem dos Cavaleiros Teutônicos existe ainda hoje, depois de abandonarem qualquer propósito militar. Algo que só aconteceu em 1929.


O panteão báltico

Os pagãos do Mar Báltico não eram uniformes: falavam línguas eslavas, bálticas (como o letão e o lituano) e fínicas (como o finlandês e o estoniano), completamente ininteligíveis entre si. Mas sua religião tinha várias características comuns. Os povos bálticos reverenciavam a natureza, com os deuses principais relacionados ao céu, e os menores à terra, florestas e agricultura. Dievas era o deus do céu, onde tinha uma fazenda. Sua noiva era Saule, o Sol. Todos os dias, Saule se movia numa carruagem para seu casamento com Dievas. O rival de Dievas era Menuo, a Lua, o deus da guerra. Em algumas tradições, a Lua conseguia se casar com o Sol, mas era infiel, e por isso era punida por Perkunas, o deus do trovão. A deusa da terra era chamada Zemyna ("mãe terra"). Os cristãos relacionaram Zemyna à Virgem Maria e Dievas a Deus - ainda hoje essa é palavra para o deus cristão em lituano (do qual adotamos a grafia).

 
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