segunda-feira, 3 de março de 2014

“Contra sua Vontade” olha para as crianças usadas em testes nos EUA


Pergunta: Indique um internato público onde as crianças foram usadas em experimentos médicos por um período de mais de 20 anos, no qual elas foram alimentadas sem saber com uma dieta contaminada por isótopos radioativos, sujeitas a retiradas regulares de sangue e colocadas em confinamento solitário se elas se recusassem a colaborar.

Resposta: A Escola pública Walter E. Fernald  em Waltham em meados do século XX.

Infelizmente, como  Allen Hornblum, Judith Newman, e Gregory Dober descrevem dolorosamente em seu novo livro, Contra sua vontade: A História Secreta do Uso Científico de Crianças na América da Guerra Fria, Fernald não era a única instituição no país, ou mesmo no Estado, onde crianças eram alistadas em alguns experimentos médicos fatais. Estes eram conduzidos por médicos e cientistas ambiciosos cuja crença no que eles estavam tentando atingir frequentemente os cegava para as consequências potencialmente terríveis de suas ações.

Até o final do século XX, os médicos experimentavam rotineiramente nos chamados retardados, imbecis e débeis mentais dos orfanatos e hospitais da América para testar vacinas e procedimentos. Internados em locais como a Escola de Massachusetts para a Juventude Retardada e Débil Mental, os “geneticamente incapazes” tornaram-se prontamente cobaias para pesquisadores do MIT, Harvard e outras universidades.

Contra sua Vontade é um trabalho extraordinário, um apelo à ética humanista na ciência e na medicina contra a conveniência política e econômica. Ele nos leva a lugares ainda mais sombrios descritos no livro anterior de Hornblum, já que ele examina a longa história de experimentos antiéticos feito em crianças na América. Hornblum e seus coautores investigam as práticas hediondas de usar crianças, mesmo bebês e mulheres grávidas, como cobaias, seguindo a ideologia dos eugenistas do início do século 20.

A publicação do livro best seller de Paul De Kruif, Caçadores de Micróbios (1926) e outros livros admiráveis, glorificava os pesquisadores médicos e convenceu o público que os médicos não podiam errar. O movimento eugênico ensinava o desprezo pelos fracos e foi institucionalizado. No final, os débeis mentais tornaram-se cobaias convenientes para experimentos antiéticos. Muitos pesquisadores, incluindo dermatologistas, dentistas e psicólogos, estavam motivados para causas nobres; outros procuravam fama e riqueza. Como policiais confirmando o “código azul do silêncio”[1], o sistema médico olhou para o outro lado, conhecendo completamente bem que os experimentos envolvendo radiação e lobotomias eram danosas e conduzidas sem o consentimento da família.

Ostensivamente praticando ciência no molde heroico – a ciência deveria curar todas as doenças da humanidade – médicos e cientistas se voltaram para a juventude internada em orfanatos, abrigos e hospitais como cobaias aptas para experimentos médicos e outras experiências. As crianças, que não podiam dar nenhum consentimento, eram rotuladas frequentemente de “débeis mentais”, ou eram crianças com Síndrome de Down ou paralisia cerebral, ou eram apenas muito pobres e analfabetas para fazer algum rebuliço. Seus pais frequentemente não eram notificados dos experimentos, ou eles eram publica ou sutilmente coagidos a dar consentimento.

O resultado foi uma série de experimentos em hospitais e abrigos – como Vineland, Willowbrook ou Wrentham – buscando curas ou tratamentos para pelagra, infecções cutâneas, hepatite, difteria e outras doenças. Mas os experimentos causaram estragos incalculáveis ainda não relatados nas crianças envolvidas. Uma criança submetida aos testes que foi entrevistada pelos autores anos depois como adulto insistiu que algumas vítimas na Escola Pública de Fernald em Massachusetts foram “enterradas como indigentes... Eles as mataram.” Alguns dos experimentos envolviam controle da natalidade, incluindo o uso de esterilização forçada ou castração.

As crianças usadas como cobaias experimentais eram frequentemente e deliberadamente infectadas com doenças, e então submetidas a tratamentos experimentais (muitos totalmente perigosos), ou mesmo sem nenhum tratamento, para melhor observar o curso natural da doença para o bem da ciência. O Dr. Albert Kligman, uma figura-chave no livro Acres de Pele, reaparece neste novo livro, deliberadamente introduzindo fungos em ferimentos induzidos experimentalmente em crianças retardadas e evitando o tratamento para observar o desenvolvimento da doença.

Entre os experimentos inspirados pela eugenia inicial e o uso subsequente de crianças como cobaias experimentais, o exemplo monstruoso da ciência nazista e experimentos médicos bizarros e mortais lançam uma sombra ao longo das décadas seguintes. Hornblum e outros descrevem a ascensão e rápida queda dos protocolos de Nuremberg, que eram geralmente ignorados pelos médicos e cientistas americanos. Estes profissionais estriparam os comandos éticos em torno do consentimento informado. Um médico, associado ao Departamento Epidemiológico do Exército, é citado criticando o “espectro de Nuremberg”, que se opõe a “aproximações racionais” no uso de crianças como cobaias humanas em pesquisa médica.

Mas, como o título do livro sugere, eram as exigências da Guerra Fria que deram aos pesquisadores médicos e científicos carta branca para conduzir experimentos em crianças (e prisioneiros, pacientes idosos e mesmo clientes de prostitutas), e tudo em nome da segurança nacional e proteção contra o Comunismo. Hornblum e seus coautores fazem um excelente trabalho em explicar essa história complexa e mostrando como o Departamento de Defesa, o Comitê de Energia Atômica e a CIA financiaram esses experimentos, incluindo o uso de choque elétrico e LSD.

O livro descreve o trabalho de uma pesquisadora conhecida de crianças, Lauretta Bender, conhecida por seu famoso Teste Bender Gestalt, ensinado para gerações de psicólogos, que usavam tanto o choque elétrico quanto LSD em crianças afetadas por esquizofrenia ou desordem comportamental. Muitos destes experimentos foram relatados em revistas médicas ou psicológicas e discutidos em conferências públicas. No ambiente de Guerra Fria que existia, poucos se davam conta do uso de crianças nestes experimentos. Poucos criticaram que eles representavam uma população vulnerável.

Os autores repetidamente mostram que estes tipos de experimentos não eram exemplos isolados de  má conduta médica ou científica, mas eram parte da cultura principal da ciência. Um experimento radioativo em crianças conduzido na Escola Pública de Wrentham para “débeis mentais” e “garotos defeituosos” em Massachusets, onde crianças eram infectadas com iodo radioativo, “era coordenado por pesquisadores da Escola Médica de Harvard, pelo Hospital Geral de Massachusets e pela Escola de Medicina da Universidade de Boston, e era apoiada pela Divisão de Saúde Radiológica do Serviço de Saúde Pública dos EUA.” Por trás da Guerra Fria e da razão eugenista, os autores mostram que ambições carreiristas e narcisismo teimoso foram causas contribuintes para a triste história que é relatada.

As revelações cercando tais casos celebrados de experimentação médica – especialmente os experimentos de sífilis em homens negros e experimentos radioativos – levou ao surgimento de salvaguardas éticas e à revisão dos procedimentos, e algumas das piores práticas caíram em desuso. Mesmo assim, os autores documentaram o uso de experimentos médicos ou psicológicos em crianças mesmo nos anos 1990. Eles alertam que muitos experimentos em crianças foram levados para outros países, onde existem leis menos rigorosas e estão longe do olhar vigilante da mídia americana.

Existe um mito alegre propagado por educadores e pela mídia. Ele começa com os horrores da medicina nazista – de Mengele e dos médicos dos campos de concentração, da eutanásia e dos experimentos desumanos – e termina com a justiça em Nuremberg, e a criação de protocolos éticos humanos reconhecidos por toda a humanidade. A verdade, contudo, é tristemente diferente. A anistia dos EUA aos médicos da Unidade 731 do Japão, os experimentos descritos por Hornblum conduzidos nas prisões, hospitais públicos e orfanatos americanos ou a revelação recente de que o Serviço de Saúde Pública dos EUA conduziu experimentos de sífilis em mulheres analfabetas da Guatemala mostram que estamos longe de ser um mundo humano civilizado.       

Nota:

[1] Código azul do silêncio é uma regra não escrita entre os policiais nos EUA em não relatar erros, má conduta ou crimes de um colega da corporação. 

Fontes:      




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