Klaus Wiegrefe
Der Spiegel, 02/03/2015
Os soldados chegaram no crepúsculo. Eles forçaram a entrada na
casa e tentaram arrastar as duas mulheres para cima. Mas Katherine W. e sua
filha de 18 anos Charlotte conseguiram escapar.
Contudo, os soldados não desistiram da ideia tão facilmente. Eles
começaram a procurar em todas as casas da área e finalmente encontraram as duas
mulheres no banheiro do vizinho logo antes da meia-noite. Os homens as tiraram
para fora e as jogaram em duas camas. O crime que os seis soldados cometeram
aconteceu em março de 1945, logo antes do final da Segunda Guerra. A garota
clamou por ajuda: “Mama. Mama.” Mas nenhuma chegou.
Centenas de milhares, talvez milhões, de mulheres alemãs
experimentaram destino semelhante na época. Frequentemente, tais gangues
estupradoras eram acusadas de serem soviéticas no leste da Alemanha. Mas este
caso era diferente. Os estupradores eram soldados dos Estados Unidos da América
e o crime aconteceu em Sprendlingen, uma vila próxima do Rio Reno no Ocidente.
No final da guerra, cerca de 1,6 milhões de soldados americanos
tinham avançado em território alemão, finalmente encontrando os soviéticos no
Rio Elba. Nos EUA, aqueles que libertaram a Europa da praga dos nazistas vieram
a ser conhecidos como “A Grande Geração”. E os alemães também desenvolveram uma
imagem positiva de seus invasores: soldados legais que ofereciam doces para as
crianças e flertavam com as fräuleins
alemãs com jazz e nylons.
Mas esta imagem é consistente com a realidade? A historiadora
alemã Miriam Gebhardt, bem conhecida na Alemanha por seu livro sobre a líder
feminista Alice Schwarzer e o movimento feminista, publicou agora um novo livro
revendo a versão oficial do papel da América na história do pós-guerra alemão.
Relatórios do Arquivo
Católico
O trabalho, que foi publicado em alemão na segunda-feira, toma um
olhar próximo na questão do estupro de mulheres alemãs pelas quatro potências
vitoriosas no final da Segunda Guerra Mundial. Em particular, contudo, suas
visões sobre o comportamento dos GIs americanos possivelmente deixarão todos de
queixo caído. Gebhardt acredita que os membros do corpo militar dos EUA
estupraram cerca de 190.000 mulheres na antiga Alemanha Ocidental, que ganhou a
soberania em 1955, com a maior parte dos assaltos acontecendo nos meses
imediatamente seguintes à invasão americana da Alemanha Nazista.
A autora baseia suas afirmações em grande parte em relatórios de
padres bávaros no verão de 1945. O Arcebispo de Munique solicitou ao clérigo
católico que mantivesse registros sobre o avanço aliado e a Arquidiocese
publicou excertos de seus arquivos há alguns anos atrás.
Michael Merxmüller, um padre na vila de Ramsau próximo a
Berchtesgaden, escreveu em 20 de julho de 1945, por exemplo: “Oito garotas e
mulheres estupradas, algumas delas na frente de seus pais.”
O padre Andreas Weingand, de Haag na der Amper, uma pequena vila
localizada ao norte de onde o aeroporto de Munique é hoje, escreveu em 25 de
julho de 1945: “O evento mais triste durante o avanço foram três estupros, um
de uma mulher casada, um de uma mulher solteira e um de uma adolescente de 16
anos. Eles foram cometidos por soldados americanos altamente bêbados.”
O padre Alois Sciml, de Moosburg, escreveu em 1º. de agosto de
1945: “Por ordem do governo militar, uma lista de todos os residentes e suas
idades devem ser colocadas na parta de cada casa. Os resultados desse decreto
não são difíceis de imaginar... Dezessete garotas ou mulheres... foram trazidas
para o hospital, tendo sido abusadas sexualmente uma ou várias vezes.”
A vítima mais nova mencionada nos relatórios foi uma menina de
oito anos. A mulher mais velha, tinha 69 anos.
Fantasias Machistas
Os relatórios levaram a autora do livro Gebhardt a comparar o
comportamento do exército americano com os excessos violentos perpetrados pelo
Exército Vermelho na metade leste do país, onde brutalidade, estupros em massa
e incidentes de pilhagem dominaram a percepção do público da ocupação
soviética. Gebhardt, contudo, diz que os estupros cometidos na Bavária Superior
mostram que as coisas não foram muito diferentes no oeste e sul da Alemanha.
A historiadora também acredita que motivos similares estavam em
curso. Assim como suas contrapartes russas, os soldados americanos, ela
acredita, estavam horrorizados pelos crimes cometidos pelos alemães, amargurados
por seus esforços inúteis e mortais para defender o país até o final, e
furiosos em relação ao relativamente alto grau de prosperidade do país. Além
disso, propaganda na época conduzia à ideia de que as mulheres alemãs eram
atraídas pelos soldados americanos, alimentando ainda mais as fantasias
machistas.
As ideias de Gebhardt estão firmemente enraizadas no atual
pensamento acadêmico. Na onda do escândalo da tortura em Abu Ghraib e outros
crimes de guerra cometidos pelos soldados americanos no Iraque e Afeganistão,
muitos historiadores estão tendo um olhar mais crítico no comportamento dos
militares americanos durante os dias precedendo e seguindo o fim da Segunda
Guerra Mundial na Alemanha. Estudos nos anos recentes tem lançado luz em
incidentes envolvendo os GIs roubando igrejas, assassinando civis italianos,
matando prisioneiros de guerra alemães e estuprando mulheres, mesmo quando eles
avançavam através da França.
Apesar de tais descobertas, os americanos ainda são considerados
relativamente disciplinados em comparação com o Exército Vermelho e o exército
francês – sabedoria convencional que Gebhardt está esperando desafiar. Mesmo
assim, todos os relatórios compilados pela Igreja Católica na Bavária somente englobam
umas poucas centenas de casos. Além disso, os clérigos frequentemente elogiavam
o comportamento “extremamente correto e respeitável” das tropas americanas.
Seus relatórios parecem mostrar que os abusos sexuais feitos por americanos eram
mais exceção do que regra.
Como, então, a historiadora chegou ao número chocante de 190.000
estupros?
Evidência suficiente?
O total não é o resultado de uma pesquisa profunda nos arquivos em
todo o país. Ao invés disso, é uma extrapolação. Gebhardt faz o pressuposto de
que 5% das “crianças da guerra” nascidas de mulheres não-casadas na Alemanha
Ocidental e Berlim Ocidental por meados dos anos 1950 foram produtos de
estupros. Isto soma um total de 1.900 crianças de pais americanos. Gebhardt
pressupõe, além disso, que na media, houve 100 incidentes de estupro para cada
nascimento. O resultado que ela chega com isso é assim de 190.000 vítimas.
Tal número, porém, parece ser dificilmente plausível. Fosse o
número assim tão grande, é quase certo que teria havido mais relatórios sobre
estupros nos arquivos de hospitais ou autoridades de saúde, ou que haveria mais
relatos de testemunhas oculares. Gebhardt é incapaz de apresentar tal evidência
em quantidade suficiente.
Uma outra estimativa, do professor de criminologia americano
Robert Lilly, que examinou casos de estupro investigados por tribunais
militares americanos, chegou a um número de 11.000 assaltos sexuais sérios
cometidos em novembro de 1945 – um número nojento por si só.
Mas Gebhardt está certamente certa em um ponto: por muito tempo, a
pesquisa histórica foi dominada pelo pensamento de que estupros cometidos por
infantes americanos eram improváveis, pois mulheres alemãs estavam ansiosas
para cair na cama com eles.
Como, entretanto, alguém pode interpretar uma reclamação feita por
uma gerente de hotel em Munique em 31 de maio de 1945? Ela relata que soldados
americanos tinham alugado uns poucos quartos e que quatro mulheres estavam “correndo
de um lado para outro completamente nuas” e foram “trocadas muitas vezes.”
Aquilo foi realmente voluntário?
Mesmo que não seja provável que os americanos tenham cometido
190.000 crimes sexuais, permanece verdadeiro que as vítimas de estupro do
pós-guerra – que foi sem dúvidas um fenômeno comum no final da Segunda Guerra Mundial, não há “nenhuma cultura da memória,
nenhum reconhecimento público, muito menos um pedido de desculpas” dos
perpetradores, Gebhardt nota. E hoje, 70 anos após o final da guerra,
infelizmente parece que a situação não vai mudar.
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