sábado, 25 de abril de 2015

[SGM] Os Americanos foram tão maus quanto os Soviéticos?

Klaus Wiegrefe

Der Spiegel, 02/03/2015


Os soldados chegaram no crepúsculo. Eles forçaram a entrada na casa e tentaram arrastar as duas mulheres para cima. Mas Katherine W. e sua filha de 18 anos Charlotte conseguiram escapar.

Contudo, os soldados não desistiram da ideia tão facilmente. Eles começaram a procurar em todas as casas da área e finalmente encontraram as duas mulheres no banheiro do vizinho logo antes da meia-noite. Os homens as tiraram para fora e as jogaram em duas camas. O crime que os seis soldados cometeram aconteceu em março de 1945, logo antes do final da Segunda Guerra. A garota clamou por ajuda: “Mama. Mama.” Mas nenhuma chegou.

Centenas de milhares, talvez milhões, de mulheres alemãs experimentaram destino semelhante na época. Frequentemente, tais gangues estupradoras eram acusadas de serem soviéticas no leste da Alemanha. Mas este caso era diferente. Os estupradores eram soldados dos Estados Unidos da América e o crime aconteceu em Sprendlingen, uma vila próxima do Rio Reno no Ocidente.

No final da guerra, cerca de 1,6 milhões de soldados americanos tinham avançado em território alemão, finalmente encontrando os soviéticos no Rio Elba. Nos EUA, aqueles que libertaram a Europa da praga dos nazistas vieram a ser conhecidos como “A Grande Geração”. E os alemães também desenvolveram uma imagem positiva de seus invasores: soldados legais que ofereciam doces para as crianças e flertavam com as fräuleins alemãs com jazz e nylons.

Mas esta imagem é consistente com a realidade? A historiadora alemã Miriam Gebhardt, bem conhecida na Alemanha por seu livro sobre a líder feminista Alice Schwarzer e o movimento feminista, publicou agora um novo livro revendo a versão oficial do papel da América na história do pós-guerra alemão.

Relatórios do Arquivo Católico

O trabalho, que foi publicado em alemão na segunda-feira, toma um olhar próximo na questão do estupro de mulheres alemãs pelas quatro potências vitoriosas no final da Segunda Guerra Mundial. Em particular, contudo, suas visões sobre o comportamento dos GIs americanos possivelmente deixarão todos de queixo caído. Gebhardt acredita que os membros do corpo militar dos EUA estupraram cerca de 190.000 mulheres na antiga Alemanha Ocidental, que ganhou a soberania em 1955, com a maior parte dos assaltos acontecendo nos meses imediatamente seguintes à invasão americana da Alemanha Nazista.

A autora baseia suas afirmações em grande parte em relatórios de padres bávaros no verão de 1945. O Arcebispo de Munique solicitou ao clérigo católico que mantivesse registros sobre o avanço aliado e a Arquidiocese publicou excertos de seus arquivos há alguns anos atrás.

Michael Merxmüller, um padre na vila de Ramsau próximo a Berchtesgaden, escreveu em 20 de julho de 1945, por exemplo: “Oito garotas e mulheres estupradas, algumas delas na frente de seus pais.”

O padre Andreas Weingand, de Haag na der Amper, uma pequena vila localizada ao norte de onde o aeroporto de Munique é hoje, escreveu em 25 de julho de 1945: “O evento mais triste durante o avanço foram três estupros, um de uma mulher casada, um de uma mulher solteira e um de uma adolescente de 16 anos. Eles foram cometidos por soldados americanos altamente bêbados.”

O padre Alois Sciml, de Moosburg, escreveu em 1º. de agosto de 1945: “Por ordem do governo militar, uma lista de todos os residentes e suas idades devem ser colocadas na parta de cada casa. Os resultados desse decreto não são difíceis de imaginar... Dezessete garotas ou mulheres... foram trazidas para o hospital, tendo sido abusadas sexualmente uma ou várias vezes.”

A vítima mais nova mencionada nos relatórios foi uma menina de oito anos. A mulher mais velha, tinha 69 anos.

Fantasias Machistas

Os relatórios levaram a autora do livro Gebhardt a comparar o comportamento do exército americano com os excessos violentos perpetrados pelo Exército Vermelho na metade leste do país, onde brutalidade, estupros em massa e incidentes de pilhagem dominaram a percepção do público da ocupação soviética. Gebhardt, contudo, diz que os estupros cometidos na Bavária Superior mostram que as coisas não foram muito diferentes no oeste e sul da Alemanha.

A historiadora também acredita que motivos similares estavam em curso. Assim como suas contrapartes russas, os soldados americanos, ela acredita, estavam horrorizados pelos crimes cometidos pelos alemães, amargurados por seus esforços inúteis e mortais para defender o país até o final, e furiosos em relação ao relativamente alto grau de prosperidade do país. Além disso, propaganda na época conduzia à ideia de que as mulheres alemãs eram atraídas pelos soldados americanos, alimentando ainda mais as fantasias machistas.

As ideias de Gebhardt estão firmemente enraizadas no atual pensamento acadêmico. Na onda do escândalo da tortura em Abu Ghraib e outros crimes de guerra cometidos pelos soldados americanos no Iraque e Afeganistão, muitos historiadores estão tendo um olhar mais crítico no comportamento dos militares americanos durante os dias precedendo e seguindo o fim da Segunda Guerra Mundial na Alemanha. Estudos nos anos recentes tem lançado luz em incidentes envolvendo os GIs roubando igrejas, assassinando civis italianos, matando prisioneiros de guerra alemães e estuprando mulheres, mesmo quando eles avançavam através da França.

Apesar de tais descobertas, os americanos ainda são considerados relativamente disciplinados em comparação com o Exército Vermelho e o exército francês – sabedoria convencional que Gebhardt está esperando desafiar. Mesmo assim, todos os relatórios compilados pela Igreja Católica na Bavária somente englobam umas poucas centenas de casos. Além disso, os clérigos frequentemente elogiavam o comportamento “extremamente correto e respeitável” das tropas americanas. Seus relatórios parecem mostrar que os abusos sexuais feitos por americanos eram mais exceção do que regra.

Como, então, a historiadora chegou ao número chocante de 190.000 estupros?

Evidência suficiente?

O total não é o resultado de uma pesquisa profunda nos arquivos em todo o país. Ao invés disso, é uma extrapolação. Gebhardt faz o pressuposto de que 5% das “crianças da guerra” nascidas de mulheres não-casadas na Alemanha Ocidental e Berlim Ocidental por meados dos anos 1950 foram produtos de estupros. Isto soma um total de 1.900 crianças de pais americanos. Gebhardt pressupõe, além disso, que na media, houve 100 incidentes de estupro para cada nascimento. O resultado que ela chega com isso é assim de 190.000 vítimas.

Tal número, porém, parece ser dificilmente plausível. Fosse o número assim tão grande, é quase certo que teria havido mais relatórios sobre estupros nos arquivos de hospitais ou autoridades de saúde, ou que haveria mais relatos de testemunhas oculares. Gebhardt é incapaz de apresentar tal evidência em quantidade suficiente.

Uma outra estimativa, do professor de criminologia americano Robert Lilly, que examinou casos de estupro investigados por tribunais militares americanos, chegou a um número de 11.000 assaltos sexuais sérios cometidos em novembro de 1945 – um número nojento por si só.

Mas Gebhardt está certamente certa em um ponto: por muito tempo, a pesquisa histórica foi dominada pelo pensamento de que estupros cometidos por infantes americanos eram improváveis, pois mulheres alemãs estavam ansiosas para cair na cama com eles.

Como, entretanto, alguém pode interpretar uma reclamação feita por uma gerente de hotel em Munique em 31 de maio de 1945? Ela relata que soldados americanos tinham alugado uns poucos quartos e que quatro mulheres estavam “correndo de um lado para outro completamente nuas” e foram “trocadas muitas vezes.” Aquilo foi realmente voluntário?

Mesmo que não seja provável que os americanos tenham cometido 190.000 crimes sexuais, permanece verdadeiro que as vítimas de estupro do pós-guerra – que foi sem dúvidas um fenômeno comum no final da Segunda Guerra  Mundial, não há “nenhuma cultura da memória, nenhum reconhecimento público, muito menos um pedido de desculpas” dos perpetradores, Gebhardt nota. E hoje, 70 anos após o final da guerra, infelizmente parece que a situação não vai mudar.     



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