Randal Marlin, Carleton University (Canadá)
A
platéia-alvo deve acreditar que as estórias são verdadeiras e, em relação a
isso, ajuda muito se as estórias forem fatos reais. Mas a credibilidade das
estórias, e a extensão que elas reverberam na imaginação e estimulam o horror e
a revolta são o que interessam para influenciar os alvos.
Pela
sua magnitude, impacto e durabilidade, uma estória de atrocidade da Primeira
Guerra Mundial se sobressai em relação às outras. Referimo-nos à estória da
Planta de Utilização de Corpos, usada para demonizar os alemães. (Para
abreviar, chamaremo-la estória da “Fábrica de Cadáveres” daqui por diante.) De
acordo com a estória, usada para sustentar e intensificar uma guerra em curso,
os alemães estavam cozinhando seus próprios soldados mortos para obter produtos
úteis – comida de porco, fertilizante, glicerina, lubrificantes e, não menos
importante, sabão.
No fundo aqui, mas para
não ser esquecido, são as questões éticas relacionadas com a história do pós-guerra
dessa falsidade. Como um importante fator para a
demonização dos alemães, a estória compartilha responsabilidade em alguma
medida com os duros termos do Tratado de Versalhes e os pagamentos de
reparações, plantando as sementes para a guerra futura. A negação oficial britânica
da estória em 1925 mais tarde levou ao ceticismo quando relatórios sobre o
Holocausto surgiram no início da Segunda Guerra Mundial.
A
âncora principal para a estória veio com a publicação simultânea nas mídias de
Northcliffe (em especial o Times e o Daily Mail, ambos datados de 17 de abril
de 1917) do que pretendia ser uma tradução de um jornal belga de língua
francesa de um suposto relato de testemunha de uma Fábrica de Cadáveres,
justaposto a uma tradução de um jornal respeitado de Berlim, o Lokal-Anzeiger, parecendo corroborar o
relato em língua francesa. Um menção breve da “admissão” do jornal alemão foi
feita por um colunista no Times do
dia anterior, mas o impacto total veio com a justaposição do texto longo em
língua francesa com o texto de fonte alemã em 17 de abril de 1917. Aqui estão
trechos do Times deste dia:
Tomamos conhecimento há muito tempo que os alemães
retiram seus mortos da linha de combate, colocam-nos em embrulhos com três ou
quatro corpos amarrados com arame metálico e então despacham esses horríveis
embrulhos para a retaguarda.
A fábrica principal (das Fábricas de Cadáveres)...
foi construída a 1.000 jardas da linha ferroviária conectando St. Vith, próximo
da fronteira belga, com Gerolstein, no desolado e pouco freqüentado distrito de
Eifel, a sudoeste de Coblentz...
A fábrica é invisível da linha ferroviária. Está
instalada no interior das florestas do país, com uma alta densidade de árvores
ao redor dela. Arames farpados cercam-na. Uma trilha dupla leva até ela. As
obras têm cerca de 700 pés de comprimento por 110 pés de largura, e a linha
ferroviária percorre-as completamente.
Os trens chegam cheios de corpos empilhados, que
são descarregados pelos trabalhadores que vivem nas obras. Os homens vestem
macacões e máscaras com óculos de mica. Eles estão equipados com varas longas
curvas e puxam as pilhas de corpos para uma esteira interminável, que os
agarram com ganchos enormes, presos a intervalos de 2 pés. Os corpos são
transportados nesta esteira interminável para um compartimento estreito e
longo, onde eles passam por um banho que os desinfeta. Eles então atravessam uma
câmara de secagem e finalmente são transportados a um digestor ou caldeira
grande, na qual eles são lançados por um equipamento que os retira da esteira.
No digestor, eles permanecem por seis ou oito horas, e são tratados por vapor,
que os fraciona enquanto eles são mexidos pela maquinaria.
A partir deste tratamento, são obtidos muitos
produtos. As gorduras são quebradas em estearina, uma espécie de sebo, e óleos,
que exigem ser redestilados antes que possam ser usados. O processo de
destilação é continuado pela fervura do óleo com carbonato de soda, e uma parte
dos produtos resultantes é usada pelos fabricantes de sabão alemães...
Em
19 de junho de 1916, o Ha-Herut de
Jerusalém, o jornal da minoria judaica na cidade – na época ainda a Palestina
Turca, informou seus leitores sobre os boatos de que os alemães estavam
transportando os corpos de seus soldados mortos para grandes crematórios, atrás
das linhas de batalha, onde eles eram incinerados. Mas ele também citou uma agência
de notícias alemã que “não havia base nestes boatos”. É importante salientar
que nesta época a incineração de corpos humanos encontrava oposição grande na
sociedade cristã como sendo “pagã” e “contra todas as tradições”. O simples
relato como fato dos alemães cremarem seus soldados teria sido o suficiente
para deixá-los com má reputação. No mesmo ano, o cartunista holandês Louis
Raemaekers representou corpos alemães presos informalmente juntos em pacotes de
quatro, com destino incerto.
Houve,
ainda, uma estória publicada no North China Herald (3 de março de 1917),
relatando que o embaixador alemão, Almirante Von Hintze, “triunfantemente disse
que eles estavam produzindo glicerina a partir de soldados mortos”... A
possibilidade da propaganda britânica ter instigado essa notícia deve ser
considerada. Os alemães na China, na época, tinham outros problemas devido à
deterioração rápida das relações sino-alemãs por causa da declaração de guerra
submarina indiscriminada em 1º. De fevereiro de 1917, que teve sérias conseqüências
para a economia chinesa e a segurança da frota mercante chinesa.
Uma
fonte diferente para a origem da estória da Fábrica de Cadáveres foi dada pelo repórter
Walter Littlefield do New York Times,
que obteve de um correspondente desconhecido de um “bem conhecido” jornal sem
nome de Amsterdã, o qual obteve o texto completo alemão da ordem militar do dia
da Sexta Divisão Bávara de Reserva, datada de 21 de dezembro de 1916, que diz:
É necessário novamente prestar atenção para o fato
de que quando os corpos são entregues para os Estabelecimentos de Utilização de
Cadáveres detalhes devem acompanhar como as unidades militares que eles vieram,
a data da morte, doenças e informações relacionadas a epidemias. (NYT, 29 de
novembro de 1925)
Estas
versões iniciais ajudaram a circular a idéia da Fábrica de Cadáveres, mas elas
careciam de evidência concreta. Foi isto o que a imprensa de Northcliff
apresentou aos seus leitores. A âncora para a credibilidade veio da
justaposição do que foi apresentado como a admissão oficial alemã da existência
da Fábrica de Cadáveres, junto com uma descrição completa de tal fábrica por
uma suposta testemunha.
O
que era tão convincente nas publicações de Northcliff de 17 de abril de 1917? A
resposta é que o jornal belga de língua francesa, Indépendance Belge de 10 de abril de 1917 deu tal detalhe, uma
descrição longa e crua do interior de uma destas instalações como a impressão
de alguém que esteve lá. A suposta “testemunha” testemunhou ter visto corpos
sendo descarregados dos trens, e evaporadas. Mais importante, o Indépendance Belge não apresentou a
estória como se fosse sua, mas atribuída a um outro jornal, La Belgique, descrito como sendo
publicado em Leiden, na Holanda, assim tornando a verificação difícil, mas não
impossível. Nenhuma data é dada para quando o La Belgique supostamente publicou o artigo. Sozinha, a estória
seria dificilmente convincente a um leitor mais culto.
O
jornal alemão em questão, o Lokal-Anzeiger também datado de 10 de abril de 1917
trouxe um relato do correspondente de guerra Karl Rosner quando ele viajou
próximo da frente norte de Reims, França. O relato foi detalhado em 5 de abril.
No final de seu relatório, ele chamou a atenção em poucas linhas para um “estabelecimento
de utilização de carcaça” (Kadaververwertungsanstalt) que ele viu e pode
sentir o cheiro à distância. Nos jornais de Northcliffe esta longa palavra
alemã foi mal traduzida como “Estabelecimento de Exploração de Cadáveres”. A
palavra “Kadaver”, a primeira parte da palavra, é reservada para carcaças de
animais no linguajar comum alemão assim como no vocabulário militar, enquanto
que “Leiche” se refere a um corpo humano.
A
palavra “Kadaver” não era somente uma má tradução do Times e do Daily Mail. De
menor importância, mais ainda significativo, foi a má tradução da palavra alemã
“Leim”. Esta palavra significa “cola” em alemão. Rosner reportou ter
experimentado “um pesado cheiro no ar, como se cola estivesse sendo queimada.”
Isto faria muito sentido se cavalos mortos estivessem sendo fervidos. Na época,
o uso de cavalos para fazer cola era difundido. Uma tradução acurada teria
alertado as pessoas sobre as carcaças de cavalos e não os cadáveres de pessoas,
sendo utilizados na planta industrial. O “leim” alemão parece com o “Lime”
(cal) inglês e era fácil introduzir aquela palavra similar como uma “tradução”.
A palavra “lime” teria parecido perfeitamente lógica para os leitores, dado que
cal viva era freqüentemente usada para desinfetar corpos.
O
que propomos mostrar é que a imprensa de Northcliffe não foi vítima de má
tradução inocente, mas deliberadamente inventou esta estória enganosa, em conjunto
com os propagandistas britânicos e belgas em Londres. No decorrer do tempo, a
estória da Fábrica de Cadáveres tornou-se mais e mais uma “lenda urbana” e
desenvolveu vida própria. Era contada e recontada nas trincheiras e nos lares.
O soldado aliado morto era adicionado às “fontes”. Cientistas discutiam
detalhes técnicos e a lucratividade das fábricas de cadáveres alemãs, e
artistas expressavam o nojo e horror nos cartazes de publicidade. Nos EUA e Europa
Oriental, “sabão” tornou-se mais e mais um “produto” principal das fábricas. Isto
certamente tinha razões diferentes. Quando os EUA entraram na Guerra, o sabão
de repente tornou-se um artigo raro (como pode ser visto nos jornais que
incessantemente pediam para economizer o produto), a falta do qual foi sentida
por todos, enquanto que na Europa oriental havia uma tradição folclórica de
assustar crianças traquinas com “um homem que faria delas sabão.”
Com
o início da Segunda Guerra Mundial, a estória da fábrica de cadáveres
reapareceu como boato de uma “fábrica de sabão” nos guetos da Polônia ocupada,
de onde ele se espalhou como um incêndio. Em meados de 1942, alcançou o
interior do Reich. Em agosto do mesmo ano, ele cruzou os mares em direção da
Grã-Bretanha e dos EUA como uma parte integral das notícias sobre o extermínio
nazista dos judeus. A mídia americana ansiosamente abordou a questão e
alimentou seus leitores e ouvintes com estórias sobre fábricas, nas quais os
alemães transformavam suas vítimas em sabão e outros produtos vitais. A incrível
semelhança com as fábricas de cadáveres da Primeira Guerra Mundial, entretanto,
fez com que os líderes desprezassem as notícias como sendo propaganda
judaico-polonesa: “Ninguém queria ser enganado pela segunda vez em apenas uma
geração.” (Laqueur, 1982). Entre os historiadores do Holocausto há pouca dúvida
que a estória da Fábrica de Cadáveres contribuiu para o fato deplorável que
decisões que poderiam ter resgatado muitas vidas judias foram tomadas
hesitantemente, e geralmente muito tarde.
Após
a derrota da Alemanha, “sabão judaico”, junto com “abajures” alegadamente
feitos de carne judaica (um boato de Buchenwald, espalhado pela mídia americana
e soviética após o fim da guerra como “fato”) tornaram-se os ícones do
Holocausto. Como “produtos finais” da Solução Final da Questão Judaica e
alegadamente produzidos pelos alemães em escala industrial, eles contribuíram
consideravelmente para a imagem do Holocausto na percepção do público,
especialmente nos EUA e Israel. Não devemos nos surpreender, portanto, que em
1989 um pesquisador israelense que acreditava nas fábricas de cadáveres da
Primeira Guerra Mundial não eram meramente um engodo propagandístico e achava
que elas de fato existiram e serviram como modelo para Auschwitz, Belzec e
Treblinka.
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