“Não está longe a época quando a
Palestina será capaz de aceitar seus filhos (os judeus) que estiveram perdidos
por mais de mil anos. Nossos melhores sentimentos juntamente com nossos desejos
oficiais sinceros vão com eles.”
Reinhard
Heydrich, no artigo “O Inimigo Visível”, publicado em maio de 1935.
O
diplomata suíço Carl J. Burckhardt o chamou de “o jovem deus da morte” do
Terceiro Reich; um oficial da SS o descreveu após a guerra como “a
personalidade mais demoníaca na liderança nazista”; outro falou que sua “inteligência
incomum era acompanhada pelos instintos sempre vigilantes de um animal predador”
que “tal como numa matilha de lobos ferozes, deveria sempre provar-se o mais
forte.” Brutal, sangue-frio e ambicioso, Heydrich é visto por alguns como um
tecnocrata do extermínio em massa que tratava a ideologia como uma ferramenta
política; para outros, como uma personalidade complexa e autoaversiva cujo
fanatismo expressava seu ódio paranoico em relação à sua suposta ancestralidade
judaica.
Reinhard
Heydrich projetou de forma bem sucedida a imagem de um pai de família ideal e
marido, apesar de ele ter se comportado de maneira insensível em relação aos
seus pais quando estes passaram dificuldades e tenha traído sua esposa, uma
nazista devota, abertamente. Mesmo assim, Heydrich era também um violonista
empenhado com um amor sincero e talento para música clássica. Com seu próprio
encanto, ele foi bem recebido na alta sociedade. Ele era um grande atleta, um
esgrimista soberbo, cavaleiro e campeão de vela. E ele não era covarde: durante
a guerra, Heydrich costumava servir voluntariamente como piloto de caça nas
horas vagas. O mais importante, contudo, era que ele estava empenhado em sua
tarefa autonomeada de construir um império mundial para o seu Führer, um que se
moldaria aos seus próprios planos. Isto consistia em colocar um fim violento à
mistura étnica na Europa, tudo para o interesse dos povos germânicos e seu
próprio poder. Para atingir o objetivo, ele sistemática e metodicamente se
empenhou no assassinato de milhões e estava preparando – quando foi morto em
1942 – para matar dezenas de milhões a mais. Mesmo em seu fim violento,
Heydrich cumpriu seu papel de anjo da morte: muitos milhares foram executados
após seu assassinato por dois agentes tchecos.
Em
seu novo livro, Robert Gerwarth ataca estes e outros julgamentos de Heydrich em
uma grande biografia, a primeira tentativa séria em uma vida acadêmica. Ele
tentou compensar a falta de quaisquer documentos pessoais revirando arquivos
através da Europa e nos EUA, conseguindo de forma bem sucedida desmistificar
muitos mitos, incluindo, decisivamente, aquele da suposta ancestralidade
judaica de Heydrich.
Sua
família era católica em um meio protestante, não havendo qualquer problema
nisso. Eles faziam parte do Bildungsbürgertum, o extrato mais respeitado
da sociedade, que combinava uma profissão honrosa com uma ligação genuína com
alta cultura e uma absoluta lealdade ao Reich alemão.
Nascido
em 1904, o pai de Heydrich, Bruno, era um compositor respeitado e
diretor-proprietário de um conservatório musical na cidade prussiana de Halle;
sua mãe era professora de piano; eles lhe chamaram Reinhard em homenagem a um
dos personagens da primeira ópera de Bruno. O próprio Reinhard podia tocar as
lições de piano de Czerny perfeitamente na idade de 10 anos e tornou-se um
exímio violonista, que dizem ter mostrado emoção profunda ao tocar o
instrumento.
Certa
vez, Bruno Heydrich expulsou um aluno. O jovem vingou-se ao colocar em um
dicionário musical que o sobrenome verdadeiro de Heydrich era Süss e que ele
era judeu. Bruno entrou com um processo em 1916 e ganhou. O segundo marido de
sua mãe era, de fato, chamado Süss, mas o cavalheiro não era nem judeu e nem
seu pai. Mas isso não foi o fim. Reinhard experimentou preconceito antissemita
na escola e depois na Marinha. Mesmo como diretor da segurança interna da SS
nazista, Heydrich teve que se submeter a uma investigação embaraçosa de sua
ancestralidade. Mesmo assim – ou talvez por causa disso – a lenda da origem
judaica de Heydrich tenha sobrevivido ao homem por décadas.
A
Primeira Guerra Mundial, na qual Heydrich era muito jovem para servir,
interrompeu a boa vida, assim como os anos turbulentos de Weimar. O
Conservatório de Halle fechou e a família ficou reduzida à pobreza. Enquanto
isso, havia levantes revolucionários e contra-revolucionários em Halle, nos
quais o jovem Reinhard teve um papel modesto no lado contra-revolucionário.
Mesmo assim, não há traços de quaisquer antissemitismo ou sentimentos antissocialistas
violentos na época.
Ele
estava sem dinheiro, e as forças armadas ofereciam a oportunidade para a
respeitabilidade. Heydrich escolheu a Marinha alemã, sob a influência de Felix Von
Luckner, um capitão lendário da Primeira Guerra Mundial. A carreira naval de
Heydrich, contudo, afundou: em 1931, ele enfrentou um tribunal militar de honra
após os pais de uma namorada reclamarem que ele a havia seduzido sob a falsa
promessa de casamento. Ao invés de assumir a desonra e pedir desculpas, ele
arrogantemente culpou a garota, e foi expulso da Marinha.
O
julgamento foi motivado pelo casamento de Heydrich com outra jovem, Lina Von Osten,
uma já nazista convicta e antissemita aos 19 anos. Com a ajuda de seus pais e
da madrinha de Heydrich, Elise Von Eberstein, cujo filho era um proeminente
membro da tropa de assalto nazista, ela conseguiu um emprego para ele no
serviço secreto da SS. Isto não somente lhe deu um salário numa época de
desemprego em massa e uma vida estruturada em um uniforme após uma adolescência
e juventude gastas em circunstâncias de instabilidade política, social e
econômica, ele também o colocou em contato com Himmler, que ficou impressionado
com o jovem. Himmer acabou sendo falsamente informado que Heydrich havia
trabalhado na inteligência naval. Heydrich foi capaz de impressionar Himmler
com um conhecimento falsificado de espionagem que foi aprendido da leitura de novelas
policiais.
Dentro
da SS, então uma organização pequena e pouco importante, ele encontrou um
propósito e um objetivo. Impressionado por suas habilidades, Himmler
ofereceu-lhe a chefia de uma nova unidade interna de inteligência na polícia do
Partido Nazista, o Sicherheitsdienst,
ou SD. Após o expurgo de Hitler das tropas de assalto na “Noite das Longas
Facas” em 1934, a SS ganhou rapidamente poder e importância, e junto com ela
Heydrich e o SD. Em 1936, Himmler havia tomado todo o aparato policial alemão,
incluindo a Gestapo.
Sensatamente,
Gerwarth não vai pegar carona com a visão, tradicional entre alguns
historiadores, de que o Terceiro Reich foi “uma ditadura por consenso”, na qual
o terror e a intimidação tiveram apenas um papel mínimo. A Gestapo e outras agências
do regime repremiram brutalmente a oposição e a dissidência desde o começo. A
contribuição de Heydrich, além de organizar a repressão, foi lembrar a luta
contra os inimigos do nazismo como uma luta contra os judeus, e fazer com que
seus homens pensassem nisso como algo contínuo e duradouro, ao invés de relaxar
sua vigilância na crença errada de que o Terceiro Reich estava seguro após a “tomada
do poder” em 1933.
Heydrich
provou ser um talentoso gerente do terror, indicando homens competentes com
personalidade forte e um comprometimento fanático aos princípios e crenças do
Nacional Socialismo. Frequentemente, eles eram educados e inteligentes e, de
fato, (algo perturbador) quanto mais alto o posto no SD, maior a proporção de
oficiais com pós-graduação, inclusive PhDs.
Heydrich
não compartilhou as visões nazistas enquanto elas não foram úteis para ele (ele
sequer havia lido o Mein Kampf quando
foi entrevistado por Himmler), mas quando ele as abraçou o fez com paixão.
Sentindo o interesse primário de Hitler na “solução final da questão judaica”,
Heydrich treinou-se para tornar-se o maior especialista no assunto. Como
Gerwarth explica habilidosamente, enquanto Hitler, Himmler, Göring e Goebbels
tomaram algumas decisões finais sobre os judeus, o planejamento e execução das
ideias foram em grande parte responsabilidade de Heydrich, seja na questão da Kristallnacht em novembro de 1938, ou a
organização da emigração judaica da Alemanha e, em seguida, o Anschluss, na
Áustria. Com a ajuda de Adolf Eichmann, seu humilde servo na Gestapo, Heydrich
direcionou a partida para o mundo livre da absoluta maioria dos judeus
austríacos. Ele também teve papel assíduo no plano louco de forçar milhões de
judeus europeus para a ilha de Madgascar. Quando a emigração não foi mais
possível, Heydrich desenvolveu planos para a deportação de todos os judeus para
além das fronteiras orientais do Reich Alemão em contínua expansão. Isto,
incidentalmente, foi o primeiro passo em direção da expulsão maciça de todas as
nacionalidades indesejadas da Alemanha e, por conseguinte, da Europa.
O
próprio Heydrich não viveu o suficiente para ver este genocídio histórico sem
precedente ser conduzido por completo. A indicação dele como Protetor Atuante
do Reich ou vice-rei da Boêmia e Morávia em setembro de 1941 não o desviou de
seu plano de criar uma Europa Arianizada. Além de ser o chefe da polícia
política alemã, ele era agora o soberano absoluto de um país de importância
suprema para o esforço de guerra alemão: sem os tanques, aviões e canhões
produzidos no Protetorado, a máquina de guerra alemã teria parado. Ele agora
tinha um solo fértil para testar suas teorias étnicas e raciais. Para ele, as
terras tchecas haviam sido e tornar-se-iam novamente parte do Império Alemão,
onde somente alemães e eslavos “germanizados” seriam permitidos viver.
Heydrich
estimava que metade da população do Protetorado seria digna do Eindeutschung ou Germanização; o resto seria
deportado ou morto. Alguns de seus conselheiros acadêmicos iniciaram o processo
vigoroso de medir características cranianas e testar a cor dos olhos dos tchecos,
mas a época não era propícia para os experimentos porque a guerra exigia a
exploração de toda a força de trabalho no Protetorado. Somente no caso dos
judeus a deportação e a morte eram preferíveis às outras soluções.
Heydrich
demonstrou seu gênio organizacional quebrando brutalmente toda a oposição nas
terras tchecas e oferecendo condições de emprego e de vida fáceis para aqueles
que quisessem participar do esforço de guerra. Sua famosa política da cenoura e
vara provou ser um grande sucesso. Os trabalhadores tchecos recebiam
virtualmente os mesmos salários, e frequentemente melhores alimentos, que suas
contrapartes no Velho Reich.
Heydrich
não era impopular entre os tchecos; testemunha disso era seu hábito de dirigir
até o trabalho no mesmo carro conversível, pela mesma estrada, no mesmo horário
e sem guarda-costas ou outra proteção. Alarmado, o governo tcheco no exílio
arranjou junto ao governo britânico uma equipe de agentes paraquedistas para
descer em Praga e matá-lo. Gerwarth é muito crítico em relação a Hugh Dalton, o
ministro da economia britânico, assimo como do presidente tcheco exilado Edvard
Benes e do chefe de inteligência tcheco Frantisek Moravec, todos eles por trás
do plano para matar Heydrich.
Dalton
e Benes queriam ver a indústria de Guerra enfraquecida no Protetorado e
tornaram-se impacientes com a extensão da colaboração tcheca, assim como com a
fraqueza do movimento de resistência. Eles acreditavam que um ato terrorista
por parte de alguns guerrilheiros da resistência tcheca poderia levar à
perseguição necessária para fazer com que os tchecos mudassem de lado,
finalmente, contra os invasores. Além disso, ao ser capaz de demonstrar
resistência ativa em seu país, Benes esperava ganhar a permissão dos Aliados
para a expulsão posterior à guerra da minoria alemã da Tchecoslováquia.
Em
27 de maio de 1942, os agentes enviados pela Grã-Bretanha emboscaram o carro
conversível de Heydrich e jogaram uma bomba em seu interior. Ele morreu no
hospital logo em seguida. Ele tinha 38 anos de idade.
Quanto
à Tchecoslováquia e à causa aliada, o assassinato trouxe resultados diferentes:
apesar do monstro ter partido, isso também aconteceu com quase todo movimento
de resistência tcheco, milhares de seus membros sendo mortos ou enviados a campos
de concentração. As fábricas no Protetorado continuaram a produzir armas para o
exército alemão até os últimos dias da guerra e dificilmente encontrar-se-ia um
lugar mais confortável e seguro para o soldado alemão do que no Protetorado. De
qualquer forma, Benes ganhou a permissão dos Aliados para expulsar quase três
milhões de alemães étnicos da Tchecoslováquia, processo ao longo do qual
milhares de civis foram assassinados.
Quanto
ao grande plano de Heydrich, ele provou ser uma falha total: não houve mais
expulsões e mortes dos supostos inimigos da Alemanha, e no caso das relações
tcheco-germânicas, os alemães acabaram se tornando os perdedores absolutos.
Como Chad Bryant mostrou em seu maravilhoso “Praga de Luto: O Domínio Nazista e
o Nacionalismo Tcheco” (2007), durante a ocupação alemã os tchecos preservaram
seu orgulho nacional assim como se prepararam para uma solução brutal para a “Questão
Alemã”. Ao expulsar todos os alemães entre 1945 e 1946, exceto alguns mineiros
valiosos, aqueles casados com tchecos étnicos e a maioria dos “mestiços”, as
autoridades tchecas voltaram-se para o plano de Heydrich e colocaram um fim a
séculos de simbiose tcheco-germânica. O seu plano foi de fato uma das limpezas
étnicas mais drásticas e brutais na história europeia.
Outros
países europeus orientais reuniram-se ao esforço tchecoeslovaco e, assim,
nações que geralmente não ergueram um dedo a favor de seus vizinhos judeus, ou
mesmo assistiram de forma crucial a Solução Final, agora voltavam-se com
entusiasmo contra seus vizinhos alemães. Tento tomado toda a propriedade dos
judeus, os europeus orientais precipitaram-se sobre a propriedade alemã:
terras, empregos, escritórios, lojas e imóveis. Isto não é definitivamente o
que Reinhard Heydrich tinha em mente, apesar de poder consolar-se em seu túmulo
de ter ajudado a resolver a “Questão Judaica” para os europeus orientais.
Gerwarth escolheu um assunto ingrato e triste para sua pesquisa; ele merece
elogios por ter completado sua tarefa sem sensacionalismo e com grande
desembaraço.
Gerwarth
soluciona muitos enigmas da vida de Heydrich de forma convincente, mas ele não
consegue explicar no final como um homem que ordena a morte de milhões pode
chorar enquanto toca uma sonata de Mozart; talvez ninguém consiga.
Fontes:
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