quarta-feira, 7 de agosto de 2013

[POL] O Carrasco de Hitler

Richard J. Evans, Timothy Snyder e Istvan Deak

“Não está longe a época quando a Palestina será capaz de aceitar seus filhos (os judeus) que estiveram perdidos por mais de mil anos. Nossos melhores sentimentos juntamente com nossos desejos oficiais sinceros vão com eles.”

Reinhard Heydrich, no artigo “O Inimigo Visível”, publicado em maio de 1935.  

 
Poucos líderes nazistas têm exercido fascínio tão grande para a posteridade quanto Reinhard Heydrich, chefe do serviço secreto da SS e da Gestapo, e a figura principal, depois de seu chefe Heinrich Himmler, no planejamento e execução do extermínio em massa de 6 milhões de judeus europeus.

O diplomata suíço Carl J. Burckhardt o chamou de “o jovem deus da morte” do Terceiro Reich; um oficial da SS o descreveu após a guerra como “a personalidade mais demoníaca na liderança nazista”; outro falou que sua “inteligência incomum era acompanhada pelos instintos sempre vigilantes de um animal predador” que “tal como numa matilha de lobos ferozes, deveria sempre provar-se o mais forte.” Brutal, sangue-frio e ambicioso, Heydrich é visto por alguns como um tecnocrata do extermínio em massa que tratava a ideologia como uma ferramenta política; para outros, como uma personalidade complexa e autoaversiva cujo fanatismo expressava seu ódio paranoico em relação à sua suposta ancestralidade judaica.

Reinhard Heydrich projetou de forma bem sucedida a imagem de um pai de família ideal e marido, apesar de ele ter se comportado de maneira insensível em relação aos seus pais quando estes passaram dificuldades e tenha traído sua esposa, uma nazista devota, abertamente. Mesmo assim, Heydrich era também um violonista empenhado com um amor sincero e talento para música clássica. Com seu próprio encanto, ele foi bem recebido na alta sociedade. Ele era um grande atleta, um esgrimista soberbo, cavaleiro e campeão de vela. E ele não era covarde: durante a guerra, Heydrich costumava servir voluntariamente como piloto de caça nas horas vagas. O mais importante, contudo, era que ele estava empenhado em sua tarefa autonomeada de construir um império mundial para o seu Führer, um que se moldaria aos seus próprios planos. Isto consistia em colocar um fim violento à mistura étnica na Europa, tudo para o interesse dos povos germânicos e seu próprio poder. Para atingir o objetivo, ele sistemática e metodicamente se empenhou no assassinato de milhões e estava preparando – quando foi morto em 1942 – para matar dezenas de milhões a mais. Mesmo em seu fim violento, Heydrich cumpriu seu papel de anjo da morte: muitos milhares foram executados após seu assassinato por dois agentes tchecos.

Em seu novo livro, Robert Gerwarth ataca estes e outros julgamentos de Heydrich em uma grande biografia, a primeira tentativa séria em uma vida acadêmica. Ele tentou compensar a falta de quaisquer documentos pessoais revirando arquivos através da Europa e nos EUA, conseguindo de forma bem sucedida desmistificar muitos mitos, incluindo, decisivamente, aquele da suposta ancestralidade judaica de Heydrich.

Sua família era católica em um meio protestante, não havendo qualquer problema nisso. Eles faziam parte do Bildungsbürgertum, o extrato mais respeitado da sociedade, que combinava uma profissão honrosa com uma ligação genuína com alta cultura e uma absoluta lealdade ao Reich alemão.

Nascido em 1904, o pai de Heydrich, Bruno, era um compositor respeitado e diretor-proprietário de um conservatório musical na cidade prussiana de Halle; sua mãe era professora de piano; eles lhe chamaram Reinhard em homenagem a um dos personagens da primeira ópera de Bruno. O próprio Reinhard podia tocar as lições de piano de Czerny perfeitamente na idade de 10 anos e tornou-se um exímio violonista, que dizem ter mostrado emoção profunda ao tocar o instrumento.

Certa vez, Bruno Heydrich expulsou um aluno. O jovem vingou-se ao colocar em um dicionário musical que o sobrenome verdadeiro de Heydrich era Süss e que ele era judeu. Bruno entrou com um processo em 1916 e ganhou. O segundo marido de sua mãe era, de fato, chamado Süss, mas o cavalheiro não era nem judeu e nem seu pai. Mas isso não foi o fim. Reinhard experimentou preconceito antissemita na escola e depois na Marinha. Mesmo como diretor da segurança interna da SS nazista, Heydrich teve que se submeter a uma investigação embaraçosa de sua ancestralidade. Mesmo assim – ou talvez por causa disso – a lenda da origem judaica de Heydrich tenha sobrevivido ao homem por décadas.

A Primeira Guerra Mundial, na qual Heydrich era muito jovem para servir, interrompeu a boa vida, assim como os anos turbulentos de Weimar. O Conservatório de Halle fechou e a família ficou reduzida à pobreza. Enquanto isso, havia levantes revolucionários e contra-revolucionários em Halle, nos quais o jovem Reinhard teve um papel modesto no lado contra-revolucionário. Mesmo assim, não há traços de quaisquer antissemitismo ou sentimentos antissocialistas violentos na época.

Ele estava sem dinheiro, e as forças armadas ofereciam a oportunidade para a respeitabilidade. Heydrich escolheu a Marinha alemã, sob a influência de Felix Von Luckner, um capitão lendário da Primeira Guerra Mundial. A carreira naval de Heydrich, contudo, afundou: em 1931, ele enfrentou um tribunal militar de honra após os pais de uma namorada reclamarem que ele a havia seduzido sob a falsa promessa de casamento. Ao invés de assumir a desonra e pedir desculpas, ele arrogantemente culpou a garota, e foi expulso da Marinha.

O julgamento foi motivado pelo casamento de Heydrich com outra jovem, Lina Von Osten, uma já nazista convicta e antissemita aos 19 anos. Com a ajuda de seus pais e da madrinha de Heydrich, Elise Von Eberstein, cujo filho era um proeminente membro da tropa de assalto nazista, ela conseguiu um emprego para ele no serviço secreto da SS. Isto não somente lhe deu um salário numa época de desemprego em massa e uma vida estruturada em um uniforme após uma adolescência e juventude gastas em circunstâncias de instabilidade política, social e econômica, ele também o colocou em contato com Himmler, que ficou impressionado com o jovem. Himmer acabou sendo falsamente informado que Heydrich havia trabalhado na inteligência naval. Heydrich foi capaz de impressionar Himmler com um conhecimento falsificado de espionagem que foi aprendido da leitura de novelas policiais.

Dentro da SS, então uma organização pequena e pouco importante, ele encontrou um propósito e um objetivo. Impressionado por suas habilidades, Himmler ofereceu-lhe a chefia de uma nova unidade interna de inteligência na polícia do Partido Nazista, o Sicherheitsdienst, ou SD. Após o expurgo de Hitler das tropas de assalto na “Noite das Longas Facas” em 1934, a SS ganhou rapidamente poder e importância, e junto com ela Heydrich e o SD. Em 1936, Himmler havia tomado todo o aparato policial alemão, incluindo a Gestapo.

Sensatamente, Gerwarth não vai pegar carona com a visão, tradicional entre alguns historiadores, de que o Terceiro Reich foi “uma ditadura por consenso”, na qual o terror e a intimidação tiveram apenas um papel mínimo. A Gestapo e outras agências do regime repremiram brutalmente a oposição e a dissidência desde o começo. A contribuição de Heydrich, além de organizar a repressão, foi lembrar a luta contra os inimigos do nazismo como uma luta contra os judeus, e fazer com que seus homens pensassem nisso como algo contínuo e duradouro, ao invés de relaxar sua vigilância na crença errada de que o Terceiro Reich estava seguro após a “tomada do poder” em 1933.

Heydrich provou ser um talentoso gerente do terror, indicando homens competentes com personalidade forte e um comprometimento fanático aos princípios e crenças do Nacional Socialismo. Frequentemente, eles eram educados e inteligentes e, de fato, (algo perturbador) quanto mais alto o posto no SD, maior a proporção de oficiais com pós-graduação, inclusive PhDs.

Heydrich não compartilhou as visões nazistas enquanto elas não foram úteis para ele (ele sequer havia lido o Mein Kampf quando foi entrevistado por Himmler), mas quando ele as abraçou o fez com paixão. Sentindo o interesse primário de Hitler na “solução final da questão judaica”, Heydrich treinou-se para tornar-se o maior especialista no assunto. Como Gerwarth explica habilidosamente, enquanto Hitler, Himmler, Göring e Goebbels tomaram algumas decisões finais sobre os judeus, o planejamento e execução das ideias foram em grande parte responsabilidade de Heydrich, seja na questão da Kristallnacht em novembro de 1938, ou a organização da emigração judaica da Alemanha e, em seguida, o Anschluss, na Áustria. Com a ajuda de Adolf Eichmann, seu humilde servo na Gestapo, Heydrich direcionou a partida para o mundo livre da absoluta maioria dos judeus austríacos. Ele também teve papel assíduo no plano louco de forçar milhões de judeus europeus para a ilha de Madgascar. Quando a emigração não foi mais possível, Heydrich desenvolveu planos para a deportação de todos os judeus para além das fronteiras orientais do Reich Alemão em contínua expansão. Isto, incidentalmente, foi o primeiro passo em direção da expulsão maciça de todas as nacionalidades indesejadas da Alemanha e, por conseguinte, da Europa.

 
Ele percebeu em 1939 que a guerra contra a Polônia simplesmente havia adicionado milhões de eslavos e judeus aos domínios da Alemanha sem fornecer um meio plausível de se livrar dessa gente. A guerra contra a União Soviética em 1941, a “guerra da aniquilação”, deveria gerar supostamente o espaço necessário para as deportações radicais. Na época, a guerra deveria estar supostamente acabada e os planos feitos em Wannsee para uma “Solução Final” pan-européia dependiam de uma vitória que estava difícil de chegar. Desde que era sempre compreendido que a deportação para o Leste significava a morte da maioria dos deportados, e desde que a União Soviética ainda resistia, os chamados Einsatzgruppen da SS, sob o comando absoluto de Heydrich, se empenharam em fuzilamentos em massa, primeiro na Polônia e então na Bielorússia, Ucrânia e países bálticos.

O próprio Heydrich não viveu o suficiente para ver este genocídio histórico sem precedente ser conduzido por completo. A indicação dele como Protetor Atuante do Reich ou vice-rei da Boêmia e Morávia em setembro de 1941 não o desviou de seu plano de criar uma Europa Arianizada. Além de ser o chefe da polícia política alemã, ele era agora o soberano absoluto de um país de importância suprema para o esforço de guerra alemão: sem os tanques, aviões e canhões produzidos no Protetorado, a máquina de guerra alemã teria parado. Ele agora tinha um solo fértil para testar suas teorias étnicas e raciais. Para ele, as terras tchecas haviam sido e tornar-se-iam novamente parte do Império Alemão, onde somente alemães e eslavos “germanizados” seriam permitidos viver.

Heydrich estimava que metade da população do Protetorado seria digna do Eindeutschung ou Germanização; o resto seria deportado ou morto. Alguns de seus conselheiros acadêmicos iniciaram o processo vigoroso de medir características cranianas e testar a cor dos olhos dos tchecos, mas a época não era propícia para os experimentos porque a guerra exigia a exploração de toda a força de trabalho no Protetorado. Somente no caso dos judeus a deportação e a morte eram preferíveis às outras soluções.

Heydrich demonstrou seu gênio organizacional quebrando brutalmente toda a oposição nas terras tchecas e oferecendo condições de emprego e de vida fáceis para aqueles que quisessem participar do esforço de guerra. Sua famosa política da cenoura e vara provou ser um grande sucesso. Os trabalhadores tchecos recebiam virtualmente os mesmos salários, e frequentemente melhores alimentos, que suas contrapartes no Velho Reich.

Heydrich não era impopular entre os tchecos; testemunha disso era seu hábito de dirigir até o trabalho no mesmo carro conversível, pela mesma estrada, no mesmo horário e sem guarda-costas ou outra proteção. Alarmado, o governo tcheco no exílio arranjou junto ao governo britânico uma equipe de agentes paraquedistas para descer em Praga e matá-lo. Gerwarth é muito crítico em relação a Hugh Dalton, o ministro da economia britânico, assimo como do presidente tcheco exilado Edvard Benes e do chefe de inteligência tcheco Frantisek Moravec, todos eles por trás do plano para matar Heydrich.

Dalton e Benes queriam ver a indústria de Guerra enfraquecida no Protetorado e tornaram-se impacientes com a extensão da colaboração tcheca, assim como com a fraqueza do movimento de resistência. Eles acreditavam que um ato terrorista por parte de alguns guerrilheiros da resistência tcheca poderia levar à perseguição necessária para fazer com que os tchecos mudassem de lado, finalmente, contra os invasores. Além disso, ao ser capaz de demonstrar resistência ativa em seu país, Benes esperava ganhar a permissão dos Aliados para a expulsão posterior à guerra da minoria alemã da Tchecoslováquia.

Em 27 de maio de 1942, os agentes enviados pela Grã-Bretanha emboscaram o carro conversível de Heydrich e jogaram uma bomba em seu interior. Ele morreu no hospital logo em seguida. Ele tinha 38 anos de idade.

Quanto à Tchecoslováquia e à causa aliada, o assassinato trouxe resultados diferentes: apesar do monstro ter partido, isso também aconteceu com quase todo movimento de resistência tcheco, milhares de seus membros sendo mortos ou enviados a campos de concentração. As fábricas no Protetorado continuaram a produzir armas para o exército alemão até os últimos dias da guerra e dificilmente encontrar-se-ia um lugar mais confortável e seguro para o soldado alemão do que no Protetorado. De qualquer forma, Benes ganhou a permissão dos Aliados para expulsar quase três milhões de alemães étnicos da Tchecoslováquia, processo ao longo do qual milhares de civis foram assassinados.

Quanto ao grande plano de Heydrich, ele provou ser uma falha total: não houve mais expulsões e mortes dos supostos inimigos da Alemanha, e no caso das relações tcheco-germânicas, os alemães acabaram se tornando os perdedores absolutos. Como Chad Bryant mostrou em seu maravilhoso “Praga de Luto: O Domínio Nazista e o Nacionalismo Tcheco” (2007), durante a ocupação alemã os tchecos preservaram seu orgulho nacional assim como se prepararam para uma solução brutal para a “Questão Alemã”. Ao expulsar todos os alemães entre 1945 e 1946, exceto alguns mineiros valiosos, aqueles casados com tchecos étnicos e a maioria dos “mestiços”, as autoridades tchecas voltaram-se para o plano de Heydrich e colocaram um fim a séculos de simbiose tcheco-germânica. O seu plano foi de fato uma das limpezas étnicas mais drásticas e brutais na história europeia.

Outros países europeus orientais reuniram-se ao esforço tchecoeslovaco e, assim, nações que geralmente não ergueram um dedo a favor de seus vizinhos judeus, ou mesmo assistiram de forma crucial a Solução Final, agora voltavam-se com entusiasmo contra seus vizinhos alemães. Tento tomado toda a propriedade dos judeus, os europeus orientais precipitaram-se sobre a propriedade alemã: terras, empregos, escritórios, lojas e imóveis. Isto não é definitivamente o que Reinhard Heydrich tinha em mente, apesar de poder consolar-se em seu túmulo de ter ajudado a resolver a “Questão Judaica” para os europeus orientais. Gerwarth escolheu um assunto ingrato e triste para sua pesquisa; ele merece elogios por ter completado sua tarefa sem sensacionalismo e com grande desembaraço.

Gerwarth soluciona muitos enigmas da vida de Heydrich de forma convincente, mas ele não consegue explicar no final como um homem que ordena a morte de milhões pode chorar enquanto toca uma sonata de Mozart; talvez ninguém consiga.        

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