terça-feira, 22 de julho de 2014

[HOL] Quando Hitler homenageou soldados judeus

Haaretz, 05/07/2014

 
Em 15 de junho de 1935, dois anos após a ascensão dos nazistas ao poder, Hermann Bendheim foi convidado a comparecer no Consulado alemão em Jerusalém. Os representantes do Terceiro Reich na Palestina o condecoraram com uma medalha de honra por seu serviço no exército alemão na Primeira Guerra Mundial.

Dois anos antes, Bendheim havia sido demitido de seu emprego de engenheiro na Alemanha porque ele era judeu. Como resultado da demissão, ele deixou seu país e imigrou para a Palestina, um judeu perseguido.

Nada disso aborreceu os organizadores do evento em Jerusalém. Bendheim foi agraciado com a “Cruz de Honra para Combatentes do Front” em nome do Führer, Adolf Hitler, e do então falecido presidente do Reich, o Marechal Paul Von Hindenburg, “em comemoração à Guerra de 1914-1918”. Mesmo sua profissão registrada – “engenheiro qualificado” – está marcada no certificado. Os nazistas também registraram seu atual local de moradia: “[Kibbutz] Yagur, próximo de Haifa.”

28 de junho de 2014 marcou o centenário do acontecimento que iniciou a Primeira Guerra Mundial: o assassinato do Arquiduque Franz Ferdinando da Áustria em Sarajevo. Cerca de 100.000 judeus lutaram do lado alemão na guerra; 12.000 deles foram mortos em ação. Muitos foram condecorados por seu valor no front. Alguns mesmo receberam a importante Cruz de Honra[1]. A Alemanha nazista começou a distribuir estas medalhas em 1934, para comemorar o vigésimo aniversário da guerra perdida.

Aparentemente, alguns dos filhos e netos destes yekkes (judeus alemães) no Israel atual, muitos dos quais são membros da Associação de Israelitas de Origem Centro-Européia (AICEO), ainda guardam estas relíquias.

“Muitos dos membros da associação são descendentes dos soldados que lutaram heroica e tenazmente no exército alemão da Primeira Guerra Mundial,” disse Devorah Haberfeld, diretor da AICEO. “O fato da Alemanha nazista ter condecorado os combatentes judeus em nome do Führer e do Reich, logo após os judeus terem sido extirpados de seus direitos civis e encarcerados, deportados e finalmente aniquilados, é quase um absurdo incompreensível.”

Hermann Bendheim nasceu em 1899 na cidade de Bensheim no sudoeste da Alemanha. Um adolescente quando estourou a guerra, ele se apresentou como voluntário no exército alemão. Ele serviu como artilheiro na frente francesa e foi condecorado com a Cruz de Ferro enquanto a guerra piorava. Sua mãe, Hänchen Bendheim, uma mulher muito religiosa, serviu na Cruz Vermelha alemã e também foi condecorada por seu esforço de guerra.

Após a guerra, Bendheim estudou engenharia na Universidade de Darmstadt de Tecnologia e trabalhou na indústria alemã. Em 28 de agosto de 1933, ele foi demitido de seu emprego numa fábrica de porcelana como um “judeu indesejável”, apesar de sua carta de demissão mais parecer uma carta de recomendação: suas qualificações sãocitadas, mas a empresa afirma que por causa das “mudanças políticas e política de pessoal resultante delas” – era melhor Bendheim partir. “Lamentamos muito perder sua capacidade laboral,” diz a carta.

No mesmo ano, ele visitou a Palestina com sua noiva, Erna. Os dois então voltaram à Alemanha e se casaram, antes de imigrar em 1934. Seu filho, Dr. Udi Bendheim, um veterinário que se especializou em doenças aviárias, disse ao Haaretz: “Ele juntou suas coisas, inclusive documentos e itens que eram proibidos de serem removidos da Alemanha. Ele embrulhou tudo em uma toalha, na qual colocou sua Cruz de Ferro.” Quando o agente alfandegário abriu sua mala e viu a Cruz de Ferro, ele fez a saudação nazista para Bendheim e o liberou, sem examinar o resto.

O casal se estabeleceu em Nesher, nos arredores de Haifa, onde Bendheim trabalhou como engenheiro em uma fábrica de cimento. Erna e sua irmã gêmea abriram uma pensão em Nahariya, que hoje é um hotel chamado Erna.

Quando Bendheim foi convidado pelo Consulado alemão em Jerusalém para receber a Cruz de Honra, os diplomatas que o receberam não tinham ideia, é claro, que poucos anos depois, durante a Segunda Guerra Mundial, Bendheim se apresentaria como voluntário da Guarda Patriota – uma força paramilitar que foi criada para deter uma possível invasão alemã da Palestina.

Bendheim morreu em 1962. Seu filho único ainda tem as fotografias de seu pain a Grande Guerra. Uma mostra a robusta peça de artilharia da unidade, o megacanhão conhecido como “Grande Bertha”. O trator que carregava o enorme canhão ao seu local é visto em outra foto. Seu pai não lhe contou sobre a condecoração que ele recebeu dos nazistas após ter imigrado para a Palestina.

“Foi somente após sua morte, quando estava vasculhando seus documentos, que a encontrei,” diz agora Udi Bendheim.

Três anos antes, a cidade de Bensheim realizou uma cerimônia na qual a praça adjacente a uma antiga sinagoga – que foi destruída durante a Kristallnacht em 1938 – foi nomeada de Praça Bendheim, em honra da família.

Ilana Brosh e sua irmã Irit Danziger também possuem a medalha concedida pelos nazistas ao seu avô. O Dr. Adolf Samuel nasceu em Frankfurt em 1893 em uma família judia assimilada. Durante a guerra, ele foi um oficial de cavalaria na frente oriental. De acordo com suas netas, ele foi um “bom patriota alemão”, juntando-se ao exército “entusiasticamente” e era orgulhoso de sua folha de serviços.

Após a guerra ele tornou-se dentista. Após a ascensão dos nazistas ao poder, ele também acabou sendo condecorado por eles, “em nome do Führer e do Chanceler do Reich.” A cerimônia de entrega aconteceu em Frankfurt em 1935. Uma suástica é visível no documento que Samuel recebeu dos nazistas com a citação, recebida do chefe de polícia de Frankfurt.

“Ele acreditava que, por causa de sua lealdade à pátria, nada poderia acontecer-lhe – acima de tudo, ele recebera a Cruz de Honra,” dizem as netas. Mas em março de 1938, percebendo que estava errado, ele imigrou para a Inglaterra, estabelecendo uma clínica em Londres. Ele morreu em 1978.

“Febre Patriótica”

“Os judeus viam a guerra como uma chance de provar a si próprios, para aqueles que os cercavam e para o imperador sua total lealdade: ‘mais alemão que os alemães’”, nota Reuven Merhav, um antigo diretor dos serviços secretos do Shin Bet e Mossad, que descende de uma família yekke. “Os líderes mais proeminentes da comunidade publicaram artigos repletos de fervor patriótico. Milhares de judeus que estavam na adolescência fizeram todos os esforços possíveis para serem convocados. Sermões motivacionais patriotas eram dados nas sinagogas.”

O pai de Merhav, Dr. Walter Markowicz, era um daqueles soldados. Nascido na Alemanha em 1897, ele se apresentou como voluntário no exército aos 17 anos e foi enviado à frente oriental, próximo de Minsk, servindo no corpo de sinais. Após a guerra, ele se uniu ao movimento sionista, tornou-se médico e se estabeleceu em uma pequena cidade próxima a Colônia.

No último momento, ele e sua namorada foram capazes de conseguir certificados permitindo-lhes imigrar para a Palestina.

“O último documento que ele recebeu, antes de deixar a Alemanha no final de 1935, foi a confirmação do Führer, Hitler, que a Cruz de Honra seria concedida a veteranos da guerra. Ele também recebeu uma carta de referência do chefe de polícia, quepermitiu-lhe ir embora,” relata Merhav, acrescentando que seu pai praticou a medicina em Israel até sua morte em 1960, em Haifa.

A medalha que Markowicz recebeu não ajudou seu próprio pai, Julius, que em 1942 foi enviado a Theresienstadt e assassinado lá.

“Meu pai jamais perdoou-se por não tê-lo salvo,” explica Merhav. “Qualquer coisa que ele falasse sobre seu pai a tristeza lhe aparecia no rosto.”

Uma exposição no Museu para judeus alemães em Tefen, na Galiléia, inclui um certificado que acompanhava a Cruz de Honra dos combatentes, que foi concedida a Otto Meyer em 4 de janeiro de 1935, na pequena cidade alemã de Rheda. Dois anos depois, Meyer e sua família imigraram para a Palestina e se estabeleceram em Nahariya, como muitos outros yekkes.

Meyer nasceu em 1886 em Berlim. Ele estudou advocacia e era proprietário de uma empresa. Em 1915 ele deixou sua esposa e filhos e partiu para o front. Ele lutou contra os franceses e chegou ao posto de oficial. Como muitos outros, ele também foi condecorado com a Cruz de Ferro durante a guerra. Ele enviou SUS fotografias de família que ele guardou enquanto lutava, junto com desenhos e cartas.

Meyer chegou à palestina com a idade de 51 anos. O advogado e antigo segundo-tenente da infantaria alemã começou sua nova vida como trabalhdor em um aviário. Em seu tempo de folga, ele contribuiu com o desenvolvimento de Nahariya e sua vida cultural. Ele morreu em 1954. Seu filho, Andreas Meyer, 95 anos, um morador de Kfar Vradim – um local que foi criado pelo industrial yekke Stef Wertheimer – continua a guardar as medalhas de seu pai e outros certificados de honra até hoje.

A premiação de várias distinções dos nazistas a soldados judeus que serviram pela Alemanha era um exemplo das muitas contradições internas do regime. Outros descendentes de yekkes vivendo em Israel hoje têm em sua posse diplomas universitários que foram enviados da Alemanha a seus novos endereços na Palestina, guardados em envelopes com a suástica estampada neles. Isto pode ser visto como um exemplo da burocracia cega alemã, ou um absurdo inexplicável.

No estágio inicial da ascensão dos nazistas ao poder, havia alguns judeus que mantiveramsuas esperanças em tais atitudes. Em 19 de julho de 1934, a revista semanal judia C.V. Zeitung publicou um artigo chamado “Cruz de Honra”, no qual ele falava das condecorações que os nazistas deram aos judeus que lutaram na Primeira Guerra Mundial. “Os judeus alemães... carregarão e manterão viva a memória dos grandes dias da história comum judaico-alemã,” dizia o artigo.    

Nota:

[1]  
 
 
http://www.haaretz.com/jewish-world/jewish-world-features/.premium-1.602868#

 
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