Eram 3h30 de 26 de agosto de
1914, em Rozelieures, na região de Lorena, fronteira com a Alemanha, quando
Joseph Caillat, soldado do 54.º batalhão de artilharia do exército da França,
escreveu: “Nós marchamos para a frente, os alemães recuaram. Atravessamos o
terreno em que combatemos ontem, crivado de obuses, um triste cenário a
observar. Há mortos a cada passo e mal podemos passar por eles sem passar sobre
eles, alguns deitados, outros de joelhos, outros sentados e outros que estavam
comendo. Os feridos são muitos e, quando vemos que estão quase mortos, nós
acabamos o sofrimento a tiros de revólveres”.
Quando Caillat escreveu aquela
que seria uma de suas primeiras cartas do front a seus familiares, a Europa
estava em guerra havia exatos 32 dias – e acreditava-se que não por muito mais
tempo. Correspondências como a
desse soldado de 2.ª classe que morreria de pneumonia em 1º de julho de 1917
começavam então a trazer à luz para a sociedade a gravidade do conflito, que em
seus quatro anos, três meses e 14 dias mobilizaria mais de 60 milhões de
combatentes e deixaria quase 9 milhões de civis e militares mortos, além de 20
milhões de feridos, em um dos piores momentos da história da humanidade.
É consenso entre historiadores
que a 1.ª Guerra Mundial mudou a geopolítica e as sociedades que dela
participaram para sempre, alterando de forma radical o mapa-múndi – uma
transformação que ainda reverbera em nossos dias. Os 1.567 dias de carnificina
marcaram a queda da era dos grandes impérios – alemão, austro-húngaro, russo,
turco –, resultaram em um genocídio – na Armênia – e em uma revolução – na
Rússia –, devastaram cidades, regiões e países e abalaram por décadas a Europa,
abrindo as portas, após o Tratado de
Versalhes, para a emergência de Adolf
Hitler e do nazismo, para a 2.ª Guerra Mundial, para o holocausto e para
o mundo tal como o conhecemos hoje. "O tratado de paz de fato impôs
condições muito duras à Alemanha, que foram vividas de forma realmente
humilhante pelos alemães", disse Karine McGrath, diretora dos Arquivos do
Palácio de Versalhes.
Em sarajevo, atentado é combustível da
discórdia
Andrei Netto
Em 28 de junho de 1914, Gavrilo
Princip atacou e abateu a tiros o herdeiro do trono da Áustria-Hungria,
Francisco Ferdinando, no evento que precipitou a 1.ª Guerra Mundial. Cem anos
depois, o jovem nacionalista sérvio ainda divide a Bósnia: herói ou terrorista?
Não havia representantes do governo da
Sérvia nem das mais importantes autoridades da comunidade sérvia da
Bósnia-Herzegovina na noite de gala de 28 de junho de 2014 no Vijecnica, a reconstruída biblioteca
nacional do país. Naquela noite, um concerto da Orquestra Filarmônica de Viena,
da Áustria, realizado no prédio-símbolo de Sarajevo lembrava os 100 anos do
atentado que matou o herdeiro do trono da Áustria-Hungria, Francisco
Ferdinando.
Do lado de fora, algumas dezenas de
militantes carregavam faixas de protesto e cobriam seus rostos com uma máscara:
a do jovem nacionalista sérvio Gavrilo Princip.
Para os que estavam no interior do
edifício de linhas neo-islâmicas devastado pelo fogo no cerco à cidade, em
1992, e agora reconstruído, Princip foi um assassino. Para aqueles que
protestavam no lado externo, ele foi um herói. Em síntese, assim se divide a
Bósnia-Herzegovina sobre o evento político usado como pretexto pelo Império
Austro-Húngaro, com apoio do Império Alemão, para lançar a 1.ª Guerra Mundial.
Um século após o célebre atentado de Sarajevo, a memória do assassinato de
Francisco Ferdinando e de sua mulher, Sofia, é alvo de paixões e de discórdia
política.
A controvérsia em torno do papel do
jovem tuberculoso Gavrilo Princip
no ataque faz parte de um pedaço da história mais viva do que o próprio
conflito de 1914-1918 no imaginário dos Bálcãs. Recém-saída de mais uma guerra
sanguinária, a península ainda sofre as consequências da implosão da Iugoslávia
e da 3.ª Guerra dos Bálcãs, entre 1991 e 2001, e com a profunda divisão dos
povos da região. O resultado é que sérvios, de um lado, e bósnios e croatas, de
outro, têm visões opostas também sobre o ataque cometido por nacionalistas do
movimento Mlada Bosna, Jovem Bósnia, em 1914.
A organização defendia a ideia da
Grande Sérvia e a criação da Iugoslávia e se opunha à ocupação da
Bósnia-Herzegovina pela Áustria-Hungria, que invadiu o território em 1878 e o
anexou em 1908. A iniciativa de Viena de absorver parte da Península Balcânica
contrariava as disposições do Tratado de Berlim, que reconhecia a posse da
região pelo Império Otomano, e serviu para acirrar o nacionalismo sérvio dentro
e fora das fronteiras da Bósnia, estimulado pelo apoio do Império Russo e de
seu czar, Nicolau II.
Casado com uma checa, Sofia, Ferdinando era considerado um sucessor
progressista do imperador Francisco-José, então com 84 anos. Nos meios
políticos de Viena, imaginava-se que o arquiduque, uma vez no trono, poderia
ampliar a autonomia, a liberdade e os direitos dos eslavos do império, mais
numerosos do que os austríacos e os húngaros. Esse suposto perfil reformador –
que jamais se confirmaria, em função do assassinato – causava desconfiança na
corte e na elite do próprio império, ciosas de manter o status, mas sobretudo
entre os movimentos nacionalistas da Sérvia, que almejavam comandar a grande
unificação dos “eslavos do Sul” em um país unido – a “Eslávia do Sul”, ou
Iugoslávia.
Foi nesse contexto que movimentos como
Jovem Bósnia e Mão Negra, um grupo secreto suspeito de ter ligações com o
exército e o governo da Sérvia, conspiraram para o assassinato do arquiduque a tiros de revólver, pelas mãos de
Princip, após um primeiro atentado a bomba fracassado no mesmo dia, ambos nas
imediações de Vijecnica, que Ferdinando havia visitado instantes antes.
Cem anos depois, a memória do crime
que segundo o historiador britânico Eric Hobsbawm marcou o início do “breve
século 20” ainda paira sobre Sarajevo. “Estamos em uma profunda crise econômica
e a maioria da população de Sarajevo não está interessada na 1.ª Guerra
Mundial”, explica a historiadora Vera
Katz, pesquisadora do Instituto de História da Universidade de Sarajevo.
“Mas entre acadêmicos estamos muito divididos. Temos três divisões claras:
sérvios, bósnios e croatas. Isso faz com que tenhamos diferentes interpretações
sobre o papel de Gavrilo Princip na 1.ª Guerra Mundial. Entre historiadores
sérvios, ele continua a ser um herói nacional.”
A controvérsia nos meios acadêmicos é
tão forte que pesquisadores sérvios boicotaram uma conferência internacional
que reuniu entre 18 e 21 de junho historiadores do mundo todo em torno do tema
A Grande Guerra: Abordagens Regionais e Contextos Globais. Uma conferência em
separado será realizada em setembro, em Belgrado, na Sérvia. Para intelectuais
como Miljan Maksimovic, historiador bósnio de origem sérvia, as elites
políticas bósnias e europeias tentam revisar a história, apagando os traços do
povo sérvio na cultura local e impondo o fardo da culpa pela Grande Guerra à
Sérvia. “O absurdo é que bósnios muçulmanos também impuseram grande resistência
às tropas invasoras austro-húngaras em 1878, mas dizem o contrário hoje”,
afirmou Maksimovic à agência russa Ria Novosti. “O fato é que essas iniciativas
não contribuem à reconciliação global, mas aprofundam a divisão.”
Um dos grandes pontos de insatisfação
da população de Sarajevo Leste e da República Srpska (República Sérvia da
Bósnia, uma das duas que compõem a Bósnia-Herzegovina), onde se concentra a
população sérvia, é que uma versão da história sobre o atentado de Sarajevo e
sobre Gavrilo Princip, um “herói nacional”, está preponderando para o mundo.
Para eles, austro-húngaros eram os invasores a serem combatidos.
O que se vê hoje na
Bósnia-Herzegovina, porém, é uma revisão desse papel e uma tentativa de apagar
da memória o culto a Princip. Em Sarajevo, a passagem sobre o Rio Miljacka em
frente à qual Francisco Ferdinando foi assassinado, que durante a existência da
Iugoslávia de Alexandre I e de Tito se chamou Ponte Gavrilo Princip, voltou a
ser denominada Ponte Latina. Uma placa com os dizeres “Que a paz reine sobre a
Terra” hoje esconde a anterior, que descrevia o jovem como “um combatente da
liberdade” e o atentado como “um protesto popular contra a tirania”. As ruas em
homenagem ao herói/terrorista e ao movimento Jovem Bósnia foram rebatizadas.
No centro histórico, onde a maioria é
de bósnios e croatas, há um projeto de construção de uma estátua em memória do
arquiduque. Na mesma região, existe um albergue chamado Franz Ferdinand. “Os
proprietários queriam usar o nome famoso para atrair turistas de outros
países”, explica Sedad Cholak, funcionário do hostel. “Eu diria que aqui é
50%-50%. Muitos pensam que ele foi uma boa pessoa e muitos pensam que Gavrilo
Princip era uma boa pessoa, porque ele o matou. Eu não sei… Ele era um líder, a
Bósnia fazia parte da Áustria-Hungria. Eu creio que ele era um bom homem.”
Em um país no qual cada parede traz as marcas da mais recente guerra fratricida
e onde todos os espíritos ainda estão impregnados pelo horror do conflito dos
anos 1990, essa “virada da memória” em favor do arquiduque descontenta e
indigna a população sérvia da Bósnia, que vê nas iniciativas a glorificação do
opressor. Por isso, há reações em curso em Istocno, periferia de Sarajevo
Leste, em Visegrad, na fronteira com a Sérvia, e em Belgrado, na Sérvia, onde
monumentos à memória de Princip estão em fase de projeto, já em construção ou
inaugurados. “O ponto de início foi a retirada do monumento a Gravilo Princip
da praça na qual ele estava em Sarajevo, o que quer dizer que não há intenção
de se fazer uma boa representação sobre o início da 1.ª Guerra Mundial”, argumenta
Ljubisa Cosic, prefeito de Sarajevo Leste.
Quem também não gosta de todas as
homenagens a Francisco Ferdinando é Gavrilo Princip. Não se trata, claro, do
herói/terrorista, mas de seu sobrinho-neto, que o Estado
localizou em Sarajevo Leste. Empresário
do ramo hoteleiro e proprietário de um posto de combustíveis, Bato, ou
Caçula, como é chamado pelos íntimos, vive com discrição e não gosta de falar
com jornalistas. Até pouco tempo atrás, portava com orgulho o nome do tio-avô,
fuzilado em 1941 a mando do líder nazi-fascista Ante Pavelic, o “Führer
croata”. Também participava com a família, a cada dia 28 de julho, de uma
reunião em uma igreja ortodoxa do centro de Sarajevo, de onde partiam para
visitar o túmulo de seu antepassado ilustre, que a escola iugoslava lhe ensinou
ser um herói.
Hoje, aos 62 anos, entretanto, Bato
começa a se esconder, e não apenas de jornalistas – o empresário não quis
gravar entrevista para a reportagem. Gavrilo Princip, o sobrinho-neto, lembra
que a casa e o vilarejo onde seu antepassado nasceu foram destruídos várias
vezes ao longo do século e o risco existe. Mas, sobretudo, foge da dimensão
internacional que a polêmica sobre Gavrilo Princip, o herói/terrorista, ganhou
nos Bálcãs 100 anos depois do assassinato de Francisco Ferdinando.
1914: quando horror se alastrou
Andrei
Netto
Na cabeça de líderes políticos e
diplomatas, a 1.ª Guerra Mundial seria um conflito sangrento, mas rápido. Cem
anos depois, fortes, bunkers, crateras, armamentos, campos de batalha,
cemitérios, ossários e monumentos comprovam: foi uma guerra total.
Em um
extrato de uma mensagem escrita às vésperas da eclosão da 1.ª Guerra Mundial, o
imperador da Rússia, Nicolau II, rogou a seu primo e amigo, o imperador da
Alemanha, Guilherme II:
“Uma
guerra vergonhosa foi declarada contra uma nação fraca; eu compartilho
inteiramente a imensa indignação na Rússia. Muito em breve não poderei mais
resistir à pressão e serei forçado a tomar medidas que conduzirão à guerra.
Para prevenir a infelicidade de uma guerra europeia, eu te peço, em nome de
nossa velha amizade, que faça todo o possível para impedir que teu aliado vá
longe demais”.
À
correspondência, o kaiser responderia horas depois: “Não posso considerar a
marcha à frente da Áustria-Hungria como uma ‘guerra vergonhosa’. (…) A
declaração do gabinete austríaco me fortifica na opinião de que a
Áustria-Hungria não visa a nenhuma aquisição territorial em detrimento da
Sérvia. Creio logo que é possível à Rússia perseverar, frente à guerra
austro-sérvia, em seu papel de espectadora, sem empurrar a Europa à guerra mais
horrível que ela jamais viveu”.
Membros da mesma família – ambos eram
também primos do monarca britânico George V –, além de velhos companheiros
prestes a se tornarem inimigos, Nicolau
II e Guilherme II compartilhavam em junho de 1914 erros e acertos quanto
à interpretação do conflito iminente. Líderes de potências econômicas e
políticas concorrentes, ambos sabiam que na realidade não se trataria só de um
desentendimento “austro-sérvio” e o início dos combates entre seus dois
impérios também era uma questão de horas. Documentos diplomáticos e de arquivos
governamentais mostram que ambos projetavam embates sanguinários, mas não
acreditavam que um conflito longo estava por começar nem que os campos de
batalha se espalhariam pelo mundo.
Entretanto, em um intervalo de apenas
99 dias a partir de 28 de julho, quando a Áustria-Hungria abriu as hostilidades
contra a Sérvia, no marco da 1.ª Guerra Mundial, meio mundo seria tragado por
uma sucessão de 19 declarações oficiais de guerra envolvendo dez países. Após a
atitude de Viena, o caos político se espalharia: a Alemanha declararia guerra
contra a Rússia em 1.º de agosto e à França dois dias depois; o Reino Unido se
lançaria contra a Alemanha em 4 de agosto e contra a Áustria-Hungria nove dias
mais tarde; entre as duas datas, a Áustria-Hungria declararia a Rússia inimiga
em 5 de agosto. Em 23 de agosto, o Japão se uniria à Entente opondo-se à
Alemanha, colocando a Ásia no mapa da guerra. Enfim, em 5 de novembro de 1914, França
e Reino Unido declarariam guerra aos otomanos, empurrando a fronteira do
conflito ao Oriente Médio.
Como a escalada da crise diplomática
de 1914, a zona de guerra se alastraria pelo continente como fogo em uma
carreira de pólvora até 1917, com a entrada de Estados Unidos e
latino-americanos, inclusive o Brasil.
Tratava-se, então, de uma “guerra
total”, industrial e globalizada. “É uma guerra que vai perdurar e vai se
industrializar, em que todos os progressos técnicos, todos os recursos dos
Estados-Nação potentes serão mobilizados”, diz Joseph Zimet, historiador e diretor-geral da Missão do Centenário.
“É uma guerra de sociedade, toda mobilizada a seu serviço. As fábricas, as
mulheres, toda a economia vai alimentar o conflito. A guerra não se ganha só
nas trincheiras, ou por combates de artilharia, mas pela mobilização econômica,
social e mental na retaguarda.”
Nesse conflito global, frentes de
batalha se espalharam pela Europa, mas também pelos Bálcãs, pela África, por
Oriente Médio, Ásia, Oceania e Atlântico Norte. Seriam ao todo 19 grandes
fronts e dez batalhas em mares e oceanos até o fim da guerra. No segundo maior
foco de tensão, no Leste Europeu, ofensivas como a de Tannenberg, em agosto de
1914, não apenas contêm o ímpeto do Império Russo e desestabilizam ainda mais o
czarismo, como dão à Alemanha um símbolo de triunfo, sob o comando dos generais
Paul von Hindenburg e Erich Ludenforff. A caminho da derrota e da revolução
bolchevique, russos comemoram vitórias como a do cerco de Przemysl, que deixou
115 mil pessoas mortas ou feridas entre 24 de setembro de 1914 e 22 de março de
1915.
Entre tantos embates, porém, nenhum
foi mais mortífero do que a frente ocidental, em que soldados de França,
Bélgica e Reino Unido, e mais tarde de Estados Unidos, Canadá e Austrália,
entre outros, defenderam Paris de uma invasão. A devastação material e humana
explica por que as linhas de front se transformaram em museus a céu aberto da
guerra 1914-1918. Fortes, bunkers, crateras, campos de batalha, armamentos, cemitérios,
ossários, monumentos aos mortos e até florestas são cicatrizes do conflito
muito visíveis ainda hoje na França e na Bélgica.
Nesse front, ocorreu a Batalha de
Marne, em 1914, decisiva para assegurar o fracasso da estratégia inicial de
ataque alemã, o Plano Schlieffen, e a vitória dos aliados no final do conflito.
Nela, 2 milhões de homens, entre franceses, britânicos e alemães, estiveram em
trincheiras e ofensivas em Ourcq, Deux Morins, Marais de Saint-Gond, Vitry e
Revigny, comandados por generais que se tornariam heróis nacionais da França, a
exemplo de Joseph Joffre, Joseph
Gallieni e Ferdinand Foch. Em sete dias de combates entre 5 e 12 de setembro de
1914, mais de 100 mil franceses, 7 mil britânicos e 80 mil alemães morreram ou
desapareceram e 250 mil outros soldados ficaram feridos.
No mesmo front ocidental, sucederam-se
as Batalhas de Verdun e Somme, em 1916, que deixaram 306 mil e 442 mil mortos
ou desaparecidos, respectivamente, além das de Chemin des Dames, em 1917, com
mais 100 mil mortos, e a 2.ª Batalha de Marne, em 1918, que matou 280 mil
soldados.
A alta mortalidade se dava por uma
conjunção de fatores, entre os quais a chamada “guerra de posições”. Essa
estratégia, que duraria os quatro anos no front ocidental, explica Michael
Bourlet, doutor em História, escritor e pesquisador das escolas militares de
Saint-Cyr Coëtquidan, na França, era a forma encontrada pelos países invadidos
de frear o avanço dos inimigos, custasse o que custasse. “Em 1914, os
estados-maiores fundamentavam suas estratégias em uma guerra de movimento,
rápida, que chegaria ao término de uma grande batalha decisiva”, conta Bourlet.
“Ambos os lados se dão conta, ao final da Batalha de Marne, em setembro de
1914, que a guerra será muito mais longa. E então os lados se deparam com uma
guerra de posições.”
A
estratégia visa levar o inimigo à exaustão e à derrota, mas o resultado é a
paralisia do conflito. A alternativa, então, foi intensificar a partir de 1915
o desenvolvimento de novas tecnologias bélicas para infligir baixas em massa
aos inimigos e tentar sair do impasse. Os bombardeios foram intensificados e
todos os meios industriais passaram a ser empregados para matar. Assim nasceram
a guerra química, o uso de tanques e os bombardeios aéreos.
Essas
novas tecnologias obrigaram generais e comandantes a testar métodos em pleno
conflito , enviando centenas de soldados para missões impossíveis e letais,
como a conquista de trincheiras bem guarnecidas e bem armadas ou de morros e
colinas, pontos privilegiados para a visibilidade da artilharia. No exército
britânico, um jargão se criou entre as tropas para descrever a situação: “Leões
comandados por asnos”.
Essas
batalhas, que figuram no rol das mais violentas da história da humanidade,
tinham em comum um elemento de base: o sofrimento humano descomunal. Um dos
diagnósticos mais frequentes entre soldados era a sensação de perda da condição
humana. Em 10 de julho de 1916, um ano e meio antes de sua morte no campo de
batalha, o sargento francês Marc Boasson escreveu:
“Eu mudei
terrivelmente. Não queria lhe contar nada da horrível fadiga que a guerra
engendrou em mim, mas você me força. Eu me sinto esmagado, diminuído, (…) estou
pobre e nu por causa das emoções desmesuradas, das experiências
desproporcionais à resistência humana. Algo está dando errado, uma perda
generalizada. Eu sou um homem esmagado”.
À sua
noiva, o soldado Henri Fauconnier diria em carta datada de 17 fevereiro de
1917: “É assustador depender tanto do meio em que estamos. Mady, não é com um
ser humano que você se casará”, advertiu.“Às vezes eu sou um monstro, às vezes
uma planta, às vezes um mineral. Nunca um ser humano.”
Nas trincheiras, morte, miséria e
memória
Andrei Netto
Em uma guerra marcada pela
multiplicação do poderio de fogo e pelas perdas em massa, fossas insalubres
colocaram inimigos frente a frente durante quatro anos, simbolizando o horror
do conflito. Hoje, elas dão voz à tragédia.
A
2.ª ofensiva de Champagne programada pelo general francês Joseph Joffre para
obrigar o exército alemão a recuar na região de Marne estava em seus últimos
preparativos quando o subtenente Arthur
Charles Leguay, de 37 anos, recrutado em Le Mans e matriculado sob o
número 1.657 no 2.º Batalhão de Caçadores a Pé, desembarcou na estação de trem
de Vitry-le-François em 15 de setembro de 1915. Onze dias depois, de sua
trincheira, sob a luz de velas, ele escreveu à sua mulher, Madeleine: “Parece
que seremos encarregados de perseguir o exército alemão e que receberemos ordem
de não parar até a margem do Reno. Quer dizer que queremos o sucesso completo”,
disse o poilu (membro da infantaria francesa), completando em tom otimista: “No
momento em que escrevo, as baterias de artilharia pesada bombardeiam o terreno
para deslocar as tropas inimigas. Todos estão sorridentes”.
O ataque ao qual Leguay se referia
teve início às 4h45 de 30 de setembro de 1915. Seu objetivo era tomar o
vilarejo de Ripont e posições alemãs próximas às colinas de Main de Massiges,
em Champagne. Ao seu término, o balanço da operação do lado francês indicava
797 baixas, 159 mortos – incluindo 17 oficiais – e 683 feridos. Além deles,
havia 182 desaparecidos, entre os quais o subtenente. A Madeleine, um de seus
colegas de tropa escreveu: “Não posso dizer que ele esteja morto, mas o viram
cair ferido”. Como cerca de 700 mil combatentes jamais foram encontrados na 1.ª
Guerra Mundial, Leguay poderia ter sido condenado a jamais ser localizado. Em
meio ao conflito, corpos desapareciam por completo, desintegrados por granadas
de obus ou soterrados por explosões nos arredores. Mas sua sina foi diferente.
Sua ossada acabaria encontrada por acidente em 16 de maio de 2012, 97 anos mais
tarde, junto à sua trincheira, onde também estavam sua placa de identificação,
os estilhaços de obuses que o mataram e seu capacete, perfurado.
Seus restos mortais e pertences
testemunham o horror da guerra nas trincheiras e nas “no man’s lands” (“terras
de ninguém” entre as posições inimigas) da Europa, onde 56% dos soldados
acabavam mortos ou feridos, além de tantos outros doentes físicos ou mentais em
razão das condições do conflito.
Enterrar
os cadáveres na 1.ª Guerra Mundial não raro não era possível em um conflito
marcado por trincheiras inimigas separadas em geral por 100 ou 200 metros, mas
que poderiam estar frente a frente, distantes 20 metros, como ocorreu em Vimy,
na França. “Às vezes, entre uma trincheira alemã e uma francesa, era possível
ouvir as vozes, ouvir o ruído dos talheres durante as refeições, ouvir o
soldado inimigo limpar sua arma. Havia toda uma vida que acontecia nas
trincheiras”, conta Alexis Guilbert,
militar de elite francês e estudioso da 1.ª Guerra Mundial. Essa vida, que
também podia se passar nos quilômetros de galerias subterrâneas da região de Aisnes utilizadas pelos
soldados, resumia-se a esperar o momento fatal do ataque. “Os assaltos eram
extremamente letais. Quando uma seção completa saía da trincheira, alemães e
franceses alinhavam suas metralhadoras e logo não havia mais nada. Regimentos
inteiros desapareciam por nada.”
Dessa
forma, um em cada dez combatentes morreu na 1.ª Guerra Mundial, grande parte
das vezes abandonado em condições degradantes, sem oferecer às famílias
condições para um sepultamento digno. No campo de batalha, não raro a única
opção era cavar covas rasas e provisórias ou abandonar os cadáveres à espera de
um bombardeio que também desse fim aos agonizantes, com frequência deixados à
própria sorte entre as trincheiras inimigas. Não bastasse a expectativa sombria
de cada soldado, os excrementos, ratos, infestações de insetos, barro, umidade,
chuva e frio glacial se uniam ao pesadelo, provocando epidemias como
disenteria, cólera ou tifo, doenças de pele, gangrenas nos pés e infecções das mais
variadas, em uma época na qual a medicina ainda não contava com antibióticos.
Ao martírio físico, somava-se uma tortura psicológica: o risco que cada militar
corria de se tornar um “gueule cassé”, ou “cara quebrada” – o deformado. Para
diagnosticar esse terror, os médicos da Grande Guerra chegaram a criar um
diagnóstico: a “obusite”, hoje reconhecida como uma manifestação de estresse
pós-traumático.
Assim eram a vida e a morte nas
trincheiras e em campos de batalha de regiões como a belga Ypres ou as francesas
Somme e Verdun, segundo os testemunhos dos próprios soldados, deixados em
milhões de cartas trocadas entre os fronts de guerra e as famílias dos
envolvidos. “Nem nos surpreendemos mais com as condições de vida artificiais,
quase injustificáveis, que não se assemelham a nada de nossa vida e de nossos
pensamentos de outrora”, escreveu em 1918 o tenente André Pézard, mais tarde
autor de Nous Autres à Vauquois, obra na qual descreve a ofensiva que devastou
a cidade de Vauquois, na França.
Sob quatro horas de bombardeios, ele anotou: “Em meio a uma desordem incurável,
esperamos impotentes, sem imaginar nada, sem esperança de nada, o fim de algo
que nos pediram para suportar. Nós existimos, apenas isso. Não somos humanos”.
Além de cartas, imagens e fotografias
– os primeiros registros modernos de um conflito armado de grande amplitude –
descrevem a inutilidade dos assaltos contra as trincheiras inimigas e o absurdo
de bombardeios, que chegavam a matar 90% dos homens.
Durante décadas, em todos os fronts da Europa, esforços materiais foram empreendidos para apagar os vestígios dessas trincheiras, verdadeiras cicatrizes do conflito. Hoje, entretanto, um movimento inverso está em curso. Em diferentes pontos do continente, galerias utilizadas por aliados ou pelos impérios centrais são preservadas ou mesmo reabertas, em uma forma de recriar a memória do conflito. Trincheiras intactas ou reconstituídas podem ser encontradas em antigos campos de batalha emblemáticos, como as trincheiras de Yorkshire, na Bélgica, ou de Chemin des Dames e Verdun, na França. Entre as duas frentes francesas, por exemplo, situa-se Massiges, um grupo de colinas que formava a fortaleza natural no vale do Rio Aisne. Essa região, estratégica para a artilharia de ambos os lados, dava ao exército que a dominasse uma visão panorâmica sobre cerca de 30 quilômetros de campos de batalha em diferentes direções. Perdê-la significaria para os franceses a provável conquista de Paris pelos alemães. Para defendê-la ou conquistá-la, 4 mil homens morreram por dia só entre agosto e setembro de 1914, no início do conflito. Sepultados em fossas coletivas ou em túmulos isolados, grande parte dos soldados, como Leguay, jamais foi identificada. Antes abandonada, a área da colina foi adquirida por cinco moradores do vilarejo de 50 habitantes, que reconstituíram as galerias de Massiges, transformando-as em um dos mais bem conservados sítios da guerra do país.
O resultado do trabalho é que dezenas de soldados desconhecidos, franceses e alemães, vêm sendo encontrados. Entre eles está o poilu Albert Dadure, morto em 7 de fevereiro de 1915, aos 21 anos, e localizado 97 anos depois, graças ao trabalho do arqueólogo Yves Desfossés e do antropólogo Michel Signoli, do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS) da França. “Fazer esse trabalho me fez entender que não podemos compreender essa guerra com os nossos conceitos de hoje em dia. Eram sistemas de pensamento diferentes”, entende Pierre Labate, ex-militar do programa de armas nucleares da França e hoje prefeito de Massiges e um dos proprietários da área da colina. “Quando vemos a amplitude do sacrifício… Isso seria inadmissível hoje.”
Para Jean-Pierre Mainsant, outro dos
cinco proprietários da área, a reconstituição das trincheiras é uma homenagem
às famílias do vilarejo, que ainda hoje vivem “mergulhadas na guerra”, mas
também aos parentes de vítimas, identificadas ou não, que caíram nas colinas de
Massiges, longe de suas casas. “Nós sempre fomos banhados na guerra de 1914.
Nasci aqui, nascemos aqui. Sempre convivemos com famílias que vinham em
peregrinação”, recorda-se. Além de um estímulo à memória, diz Mainsant,
desenterrar o campo de batalha é uma forma de quebrar o silêncio que perdurou
por décadas na vida dos sobreviventes do conflito, a exemplo de seu avô, ao
lado de quem trabalhou por 50 anos como agricultor sem jamais ouvir uma palavra
sobre as batalhas. “Os que viveram à guerra de 1914”, diz ele, “não falavam do
assunto porque tinham vivido coisas tão inacreditáveis que não ousavam contar
porque sabiam que não acreditaríamos.”
A Revolução Tecnológica
Roberto Godoy
O poder de fogo industrial mudou de
vez os campos de batalha com seus aviões, canhões e metralhadoras. Nos mares, o
submarino pôs em risco os grandes encouraçados.
A
carruagem escura que circulava por Londres acompanhada por um pequeno comboio
de três ou quatro outras, quase sempre à noite, era um segredo aberto no fim do
século 19. A cidade mais importante do mundo sabia: a bordo, viajava a rainha
Vitória. Ia quase sempre a igrejas anglicanas, ao teatro ou a hospitais
beneficentes. Também saía para cumprir funções de monarca. Vitória adotara uma
vida discreta desde a morte do marido, Albert, em 1861, e também depois da
perda do filho Alfred, em 1889. Todavia, a rainha era uma guerreira.
Interessada na história militar,
acompanhou intensamente o conflito contra Zanzibar e a rebelião dos Bôeres, na
África do Sul. Naquele dia do outono de 1900, V itória estava sendo levada para
conhecer uma arma secreta.
O estaleiro Vickers, de
Barron-in-Furness, no litoral norte do país, havia levado para um dique da
marinha real, no Tâmisa, o primeiro protótipo do que, muito tempo depois, viria
a ser o Classe B. Segundo o historiador naval irlandês J. H. Ryan, “a nave
deveria provocar grande impressão: toda de metal, tinha a proa esguia, uma
torre pequena e suportes para um torpedo e uma mina de contato”. Vitória tinha
90 anos. Ouviu a exposição dos engenheiros, andou ao redor do navio e
sentenciou: “Que honra pode haver em atacar sem que seu inimigo possa vê-lo e
enfrentá-lo?”.
Ryan diz em seu livro, Victoria in War,
ainda em elaboração, que os recursos para o projeto foram reduzidos
dramaticamente pelo governo. A rainha morreria no ano seguinte. O Classe B só
viria a navegar anos mais tarde, pouco antes do começo da Grande Guerra. Os
alemães e seus submarinos desenvolvidos ao longo de uma década devastariam os
mares com as ações combinadas do pequeno U-3 e do grande U-139.
A
visão mesclada das referências morais do romantismo, que terminava, e do início
da era da tecnologia como referência de desenvolvimento talvez tenha sido a
peculiaridade militar da 1.ª Guerra Mundial. A tropa britânica marchava para o
combate vestindo grossas fardas de lã escocesa, camisa de tricoline e usando
gravata. Nos pés, as botinas de couro reforçado deixavam vazar para dentro os
pregos do solado depois de alguns dias de uso. Nas pernas, polainas de algodão.
O soldado, todavia, poderia estar
armado com um fuzil Lewis, de 7.7 mm. Desenhado nos Estados Unidos, o Lewis foi
provavelmente a primeira metralhadora leve da história. Atirava em rajadas
usando um carregador rotativo. Tinha poder de fogo inédito. Os mais modernos
rifles de combate da época eram semiautomáticos, acionados por ferrolho – um
pequeno avanço em relação aos modelos de tiro singular.
O conflito de 1914 a 1918 é o primeiro
da história no qual a engenharia de armamentos e a tecnologia militar tiveram
emprego intensivo e extensivo. Se o advento do avião como vetor de ataque era
previsível desde os experimentos bem-sucedidos do brasileiro Santos Dumont –
por meio da agilidade de seu melhor projeto, o Demoiselle, de 1907, e dos dirigíveis
usados como estação de observação –, o advento do supercanhão francês Creusot, de 134 toneladas, deslocado sobre
trilhos, surpreendeu: as granadas de até 700 quilos que disparava atingiam os
alvos a distâncias de 16 quilômetros com erro estimado em apenas poucos metros.
A chegada do tanque mudou o campo de batalha. A proposta de um foco móvel de
fogo pesado, blindado, dotado de metralhadoras mais um ou dois canhões e capaz
de avançar em terreno irregular alterava doutrinas, consolidava a tese da
guerra de movimento e, mais adiante, tornaria obsoleto o conceito da cavalaria.
O nome – tank, em inglês – aparecia pintado nas grandes caixas de madeira nos
quais eram embalados antes de serem transportados por trem, como se fossem
grandes tanques de armazenamento de líquidos.
O inventário da inovação técnica nos
arsenais da Grande Guerra é imenso, diversificado, bem-sucedido e supera os
limites dos tópicos populares. O sincronizador entre a hélice dos primeiros
aviões de combate e as metralhadoras de bordo, cujos tiros deveriam passar
entre as pás, fez do inventor, o holandês Antony Fokker, um homem rico. Os pilotos dos aviões só se comunicavam com
o pessoal de terra por meio de bandeiras e luzes coloridas a curta distância.
Especialistas americanos desenvolveram um sistema de radiotelégrafos capaz de
orientar todo o tráfego aéreo em um raio de 200 quilômetros – as primeiras
torres de controle. Em 1913, pesquisadores das marinhas americana e inglesa
apresentaram um Vant – veículo aéreo não tripulado. Espécie tosca de drone, era
lançado a partir de uma rampa metálica e podia percorrer 90 km em uma só
direção levemente ajustada por uma bússola elétrica.
Na frente de batalha, a engenharia
militar dedicou-se à construção de trincheiras que, além de algum tipo de
saneamento, servissem também à instalação de cabos para comunicações e redes de
energia. O benefício reduziu o índice de mortes por doenças decorrentes do
ambiente insalubre das primeiras valas e inaugurou a integração de serviços de
campanha. A eficiência da luta noturna cresceu com a munição traçadora que emite um pulso luminoso, indicando sua
trajetória.
No oceano, imponência. O primeiro
porta-aviões construído para servir de vetor de aeronaves embarcadas, o
britânico HMS Furious, entrou em ação em agosto de 1917. Num longo convés de
voo de respeitáveis 200 metros, abrigava 50 biplanos, armados com bombas de 50
quilos e um torpedo. As frotas navais passaram a operar em novembro de 1916
dois sistemas decisivos: o hidrofone, que aumentaria enormemente a capacidade
da luta antissubmarina e, na mesma linha, as cargas de profundidade – bombas
subaquáticas detonadas por sensores que mediam uma combinação de distância
vertical e pressão da água.
No front de Ypres, o mundo conhece a
guerra química
Andrei Netto
Uso de gases mortais, como o mostarda,
começou no fim da tarde de 22 de abril de 1915, nos campos de guerra da
Bélgica. Quase cem anos depois, vestígios ainda contaminam o solo e a água.
Granadas de projéteis químicos seguem sendo localizadas.
O front das tropas francesas da 45.ª e
da 87.ª divisões em Langemark-Poelkapelle, na Bélgica, vivia um intervalo sem
combates por volta das 17 horas de 22
de abril de 1915. A tarde de sol primaveril e temperaturas acima do
normal da véspera havia dado lugar à de um céu cinzento, cortado por um avião
da força aérea francesa que fazia o trabalho mais importante: castigar com
bombardeios as posições da Alemanha na região. A grande questão do dia não era
sobreviver, mas reorganizar as trincheiras, caóticas, e prepará-las para a
continuidade dos combates na “saliência
de Ypres” – o ponto mais feroz da ofensiva alemã em território belga.
A calma só foi quebrada por uma brisa
que soprava de leste e por uma fumaça estranha, esverdeada, opaca e espessa
proveniente das trincheiras alemãs, que ia do solo a 10 metros de altura e se
dirigia às posições francesas. “A nuvem avançava em nossa direção, empurrada
pelo vento. Começamos a nos retirar, perseguidos pela fumaça”, relatou em seus
registros militares o tenente Jules-Henri Guntzberger. Nesse momento de pânico
crescente, Guntzberger viu seus homens caírem um a um. Alguns se levantavam,
retomavam a marcha de recuo e caíam de novo, cada vez mais desesperados para chegar
à segunda linha de trincheiras.“Uma vez lá, os soldados desabavam e não paravam
de tossir e vomitar.”
O desespero e a incompreensão tomaram
conta das hostes francesas. Às 17h20, na sede de comando de Elverdinghe, o
coronel Henri Mordacq recebeu um telefonema do front. O relato era assustador:
uma nuvem tóxica estava sufocando soldados e oficiais, que partiam em retirada,
abandonando o front. Correndo em direção à posição atingida, Mordacq cruzou com
combatentes que se diziam envenenados. “Por todo lado, havia pessoas fugindo,
correndo como loucas, sem direção, gritando por água, cuspindo sangue, alguns
atirando-se ao chão e fazendo esforços desesperados para respirar”, descreveu o
coronel, em seus registros. Estima-se que 5 mil soldados franceses morreram sem
que nenhum disparo de arma de fogo tivesse sido feito, a maior parte asfixiados
e afogados nas secreções dos próprios brônquios. Outros 15 mil foram
intoxicados, com diferentes graus de sequelas, envenenados e sofrendo
hemorragias internas e externas e destruição dos tecidos pulmonares. Eles
haviam sido as vítimas do primeiro ataque de grande amplitude de uma nova
tecnologia criada para a 1.ª Guerra Mundial: as armas químicas.
Indignados com o ataque, França e
Grã-Bretanha denunciaram a covardia da guerra empreendida pelas forças armadas
da Alemanha, que violava as convenções de Haia de 1899 e 1907 proibindo o uso
de gases asfixiantes ou tóxicos em artefatos bélicos. Berlim argumentou que a
França fora o primeiro país a usar armas químicas – granadas de lacrimogêneo,
empregadas desde agosto de 1914 – e justificou a decisão de continuar a
utilizá-las alegando que os textos da convenção se referiam a armas e
explosivos, mas não a contêineres com gases, como os usados em Ypres. O
resultado foi o pior possível: os diferentes lados em conflito imaginaram poder
derrotar assim o inimigo entrincheirado, tirando a guerra que já se estendia
por nove meses do impasse.
A partir de então, os exércitos em
luta se lançaram a uma corrida às armas de destruição em massa, com o objetivo
de aumentar o poder devastador dos gases – o que o químico francês Victor Grignard, prêmio Nobel de
Química de 1912, conseguiu ainda em 1915, com a introdução do fosgênio, mais
letal, incolor e mais difícil de detectar. Um total de 36,6 mil toneladas do
produto foi empregado na guerra, a metade por alemães.
Aos poucos, o arsenal químico se
banalizou. Desprotegidos contra os gases, 56 mil russos morreram em ataques
alemães no front leste do conflito. Mas as tropas da Entente (aliança militar
entre França, Rússia e Inglaterra) também não se furtaram a usá-las, em
especial as francesas, mas também americanos e britânicos, que em setembro do
mesmo ano foram vítimas de seu próprio estoque de cloro na batalha de Loos.
Com a consciência do risco, tentou-se
proteger os soldados. Uma das estratégias iniciais era urinar sobre lenços, usados
sobre as vias respiratórias, enquanto na retaguarda iniciava-se a confecção das
primeiras máscaras antigás,
rudimentares. O resultado está registrado em algumas das mais assustadoras
imagens da Grande Guerra: a de combatentes cobertos com máscaras de pano, cujas
formas terrificantes se tornaram um dos símbolos da loucura destrutiva na
Europa no início do século 20.
Meses depois do ataque de Ypres, no
final de 1915, os exércitos de Alemanha, França e Reino Unido distribuíram
máscaras mais eficazes a seus combatentes: a Gummimaske, a M2 e a Large box respirator representaram um
avanço importante na proteção dos soldados. Graças a elas, o impacto das mortes
causadas pelas armas químicas foi marginal em meio ao cataclismo da 1.ª Guerra
Mundial. Dados do estado-maior do Reino Unido indicam que, após a tomada de
medidas de redução do impacto do gás, apenas 3% dos soldados atingidos morriam,
outros 2% se tornavam inválidos e a maioria, em torno de 70%, tinha condições
de retornar aos combates em até seis semanas.
Mas o impacto psicológico das armas de
destruição em massa foi destruidor entre militares e também entre civis. Anos
depois do fim da guerra, pais de família que haviam sobrevivido aos conflitos
padeciam de sequelas, que encurtavam suas vidas, às vezes por casos severos de
asma, em outros por incidência de câncer de esôfago.
Ainda hoje a lembrança desses soldados
mortos, imortalizados no quadro Gassed,
do pintor americano John Singer Sargent, em 1918, é reverenciada por seus
familiares, como uma forma de tributo por seu sacrifício. “Meu bisavô morreu
quatro anos depois de ter sido intoxicado pelo gás”, conta Charles Saint Vanne,
prefeito de Ornes, uma das cidades que desapareceram após o conflito, mas que
seguem existindo em termos legais. “Os alemães haviam utilizado gás em um dos
combates e ele foi uma vítima tardia, sofrendo de sequelas anos após a guerra.
Zelar pela memória do conflito e de pessoas como ele é um dever de memória que
tenho em relação aos meus ancestrais.”
Terras agrícolas também foram
inutilizadas por substâncias usadas na guerra química. Em Verdun, na França, em
meio à floresta plantada sobre os
campos de batalha, há zonas de acesso proibido em que a vegetação não
cresce, porque o solo ainda está contaminado. O local foi apelidado pela guarda
florestal de “Praça do Gás”. Ali, após o armistício, 200 mil granadas de obus
não detonadas no conflito foram inutilizadas. Em 2004, um estudo da
Universidade Johannes-Gutenberg, de Mainz, da Alemanha, e do Escritório
Nacional de Florestas, da França, indicou a presença intensiva de metais
pesados como cobre, chumbo e zinco, que se somam a arsênico e perclorato de
amônia, dois componentes dos sistemas de detonação das granadas. A concentração
varia de mil a 10 mil vezes a do meio ambiente e só três vegetais resistentes
conseguem sobreviver – o que explica a ausência de árvores no entorno, fechado
ao público desde 2012.
Segundo organizações ambientalistas
europeias, a Praça do Gás da França é apenas um dos múltiplos sítios de terras
e lençóis freáticos contaminados por armas químicas na Europa. Há dois anos,
populações de 500 cidades e vilarejos do norte da França foram advertidas a não
consumir água em razão da elevada presença de perclorato de amônia. Os locais
correspondiam a fronts da 1.ª Guerra Mundial.
Consciente do problema, desde o final
da guerra, em 1918, o governo francês proibiu o cultivo em regiões que foram
contaminadas, criando as “zonas vermelhas”. Nelas, estão os trechos com maior
probabilidade de presença de granadas que jamais explodiram na guerra – cerca
de 15% do total – e ainda não foram encontradas. Desse universo, 2%
correspondem a armas químicas que continuam expostas à natureza, em especial
gás mostarda, fosgênio e difosgênio. Um campo militar na cidade de Suippes, em
Marne, na França, serve de depósito para 200 toneladas de granadas que ainda
precisam ser destruídas, em uma usina que entrará em operação em 2016.
Graças à mobilização internacional, em
1925 foi assinado o Protocolo de Genebra, proibindo a utilização de gás em
artefatos bélicos, assim como a produção e a estocagem de armas químicas –
ameaça que no entanto ainda não acabou.
Ypres, cidade devastada pelos
combates, tornou-se um dos pontos de memória mais importantes sobre o horror da
destruição em massa. Prova disso foram as cerimônias realizadas na cidade em 26
de junho pelos 28 chefes de Estado e de governo da União Europeia, reunidos em
cúpula na cidade. “A principal mensagem que fica dessa guerra”, diz o
historiador Dominiek Dendooven, pesquisador do Flanders Fields Museum, o maior
da cidade,“é a importância das decisões tomadas pelos dirigentes europeus em
1914, o sentido de responsabilidade política que deveria ter prevalecido e
teria permitido evitar essa guerra”.
Nas cidades-mártires, um conflito sem
fim
Andrei Netto
Ypres, Verdun e Reims ressurgem das
cinzas, que ainda marcam a vida de seus habitantes. Douaumont, Louvement,
Craonne e Vauquois não tiveram a mesma sorte: são os vilarejos fantasmas da 1.ª
Guerra Mundial.
Todos os dias, às 20h, não importa o
que aconteça, soldados do corpo de bombeiros de Ypres, na Bélgica, fecham a
Avenida Frenchlann no trecho sob o Memorial de Mennenpoort, a Porte de Menin.
Então os sinos soam: trata-se do "Last Post", momento no qual os 35 mil
habitantes da cidade, queiram ou não, recordam-se dos 54.896 soldados da
Grã-Bretanha e de outros países da comunidade de nações britânicas mortos em
batalha. Seus nomes estão gravados ali, assim como uma homenagem aos 34.984
outros cujas identidades jamais foram conhecidas.
Eles representam as centenas de
milhares de combatentes que tombaram nos campos da região de Flandres na
tentativa de conter o avanço das tropas da Alemanha no front oeste e a ameaça
de ocupação da França na 1.ª Guerra Mundial. A cerimônia é repetida desde 2 de
julho de 1928 e só foi interrompida pelo domínio da Alemanha nazista durante a
2.ª Guerra Mundial, voltando a ser realizada na noite da liberação da cidade
por tropas da Polônia.
A atmosfera à noite pode ser pesada na
cidade, mas essa foi a homenagem decidida por seus moradores no momento em que
seus sobreviventes optaram por reconstruí-la das cinzas. Como Reims e Verdun,
na França, e Przemysl, na Polônia, Ypres é uma das centenas de cidades-mártires
da 1.ª Guerra Mundial na Europa. Ao longo do conflito, pequenos e grandes
centros urbanos europeus foram riscados do mapa, mas não da memória. Alguns
foram reconstruídos e hoje são prova da tenacidade de seus povos em apagar os
traços da guerra.
Esse é o caso de Ypres. Quando projetou
o monumento, o arquiteto britânico Reginald Blomfield escolheu uma das portas
pelas quais os soldados que defendiam a cidade partiam para o front de Menin,
onde enfrentavam as tropas alemãs. Como as demais portas, o local foi muito
castigado pelos bombardeios inimigos. Mas toda a cidade sofreu: em apenas três
semanas na 2.ª Batalha de Ypres, em 1917, mais de 4 milhões de obuses foram
lançados na região – o suficiente para arrasar as paisagens urbana e rural de
Flandres.
“Britânicos como Winston Churchill,
por exemplo, queriam que as ruínas fossem mantidas como estavam, como um
memorial para a história da 1.ª Guerra Mundial. Mas as pessoas que viviam aqui
queriam retomar suas vidas. Então houve uma grande decisão a ser tomada”,
explica o historiador Pieter Trogh, pesquisador do Museu de Flanders Fields, de
Ypres. “Decidiram reconstruir da mesma exata forma que a cidade tinha antes da
guerra. O que você vê hoje é de alguma forma um símbolo maior de ressurreição.
Duas guerras mundiais afetaram a região, mas eles quiseram dizer: você pode
destruir nossa cidade, ou você quis destruí-la, mas isso não será o fim. Nós
vamos retomar nossas vidas e transformá-las em um símbolo contra a guerra.”
Em Ypres, a decisão da primeira
geração de habitantes pós-conflito foi de esquecê-lo, ou ao menos superá-lo,
como em Reims, na França. Hoje, a capital da região da Champagne tem 180 mil
habitantes e uma vida acadêmica, cultural e econômica pujante. Mas não foi
sempre assim no século 20. Dominar a cidade fora um dos objetivos do exército
alemão na busca da conquista de Paris. Foram 1.051 dias de bombardeios sem que
as tropas inimigas tenham colocado os pés no perímetro urbano, como acontecera
em Lille. O custo patrimonial da defesa de Reims, entretanto, foi colossal. O
símbolo da destruição, na memória dos habitantes, é a catedral da cidade, onde
antigamente eram coroados os reis da França. Hoje, a própria igreja é símbolo
da reconstrução de uma cidade pulsante.
“Quando a Grande Guerra acabou, em
novembro de 1918, das 14 mil casas da Reims pré-guerra, não havia mais de 60
habitáveis. A catedral estava gravemente deteriorada”, lembrou em conferência o
historiador Jean-Jacques Becker, presidente e decano do Centro de Pesquisa
Histórica da Grande Guerra, de Perrone, na França. “Reims foi um caso singular.
Foi a única cidade da França com mais de 100 mil habitantes – 113 mil no último
censo antes da guerra – destruída dessa forma pela guerra.”
Já em Verdun, outra das
cidades-mártires da Europa, epicentro da guerra entre 21 de fevereiro e 9 de
dezembro de 1916, a reconstrução não foi a prioridade, mas sim a memória. Nos
campos de batalha da região, nada menos do que 714.231 pessoas morreram – dos
quais 362 mil franceses e 337 mil alemães –, em um saldo trágico de 70 mil
mortos por mês de combate. Pela região, passaram nada menos do que 70% dos
poilus, os soldados da França, o que tornou a batalha um verdadeiro emblema da
resistência ao inimigo. Além disso, fez com que todo o país tivesse a noção
precisa da tragédia em curso nos vilarejos da região, varridos do mapa pela
força destruidora da artilharia.
Foram os casos de Douaumont e
Louvement, vilarejos rurais situados no que ficou conhecido como os campos de
batalha de Verdun. Para lembrar suas vítimas, o governo da França considera-os
desde outubro de 1919 como existentes, mas com zero habitante. São os
vilarejos-fantasmas da guerra, ou as “cidades mortas pela França”.
Situado nas imediações do Forte de
Douaumont, ponto estratégico pelo qual dezenas de milhares de soldados perderam
a vida, Douaumont, próximo da fronteira com a Alemanha, hoje é um campo verde
com uma sucessão infinita de crateras abertas pela chuva de obuses. Sobre a
vegetação, restam ruínas de construções e pequenos marcos que indicam onde
existiam casas e viviam seus moradores, pessoas simples como Jean-Baptiste
Dupuis, Onésime Paquin ou Jules Hildebrand, pedreiros, ou Jean-Nicolas Dabit,
fabricante de sabão.
A poucos quilômetros de distância,
Louvement tem ainda mais restos de sua vida de 100 anos atrás. Entre o mar de
crateras, há trechos de paredes inteiras desabadas durante as explosões, cacos
de telhas, resquícios de fundações e encanamentos abertos. Sobre os entulhos, a
natureza se reconstitui, cobrindo o cimento e a pedra com limo. No lugar de
todos esses vilarejos-fantasmas, balançam hoje árvores de 20, 25 metros de
altura. Elas foram plantadas pelo Escritório Nacional de Florestas (ONF) em
13,4 mil hectares de terras onde um dia viveram 6.953 proprietários e suas
famílias, evacuadas durante a passagem do furacão de chumbo da Grande Guerra.
Embora sejam mais frequentes nos
campos de Verdun, vilarejos-fantasmas se espalham por grande parte do Norte e
Nordeste da França. Suas existências estão indicadas por placas ou pequenos
monumentos, como o obelisco que indica “Aqui
existiu Ailles”, única reminiscência do vilarejo desaparecido entre 1914
e 1918. Charles Saint Vanne é prefeito de uma dessas vilas extintas, a de
Ornes. “Nosso vilarejo foi inteiramente destruído durante a guerra, em 1916, no
mês de fevereiro”, conta. “Os habitantes foram evacuados, obedecendo à ordem de
abandonar o local. Quatro casas foram reconstruídas após a guerra, mas o que
resta em geral são as ruínas.”
Outros poucos vilarejos tiveram a
chance de reviver. É o caso de Vauquois, em Verdun, destruído por se localizar
em um morro, excelente ponto de observação militar na época, ou ainda de
Craonne, no Chemin des Dames dizimada por ter tido o azar de existir em frente
ao Planalto de Califórnia, justo entre as trincheiras alemãs e francesas. Ambas
voltaram à vida, reconstruídas a algumas dezenas de metros das vilas originais,
mas vivem sob a perpétua memória da devastação provocada pela guerra. “Nos
espíritos das pessoas daqui”, explica Virginie Keiser, diretora da Citadela de Verdun,
“de alguma forma a guerra ainda está acontecendo”.
O Primeiro Tiro
Marcelo
Godoy
Na noite de 28 para 29 de julho de
1914, as águas do Danúbio foram sacudidas em Belgrado por estilhaços de
granadas de artilharia. Eram austro-húngaras e haviam sido lançadas horas
depois de Viena declarar guerra ao pequeno reino sérvio. Os generais que
planejaram a ação pensavam ter começado o que seria a terceira guerra
balcânica. De fato, o chefe do estado-maior austríaco, Conrad von Hötzendorf,
confiante no apoio alemão, acreditava poder acertar as contas com a Sérvia em
três meses, confinando o conflito ao Sudeste europeu, assim como acontecera nas
duas disputas anteriores que haviam envolvido, em 1912 e em 1913, a Bulgária, a
Romênia, o Império Otomano, a Grécia, Montenegro e a mesma Sérvia.
Mas a presença de um dos grandes
poderes europeus nesse cenário e o sistema de alianças que ligava as potências
do continente mudariam tudo dessa vez. A Rússia decretou a mobilização geral de
seu exército no dia 30 para proteger a Sérvia, sua aliada. Em 1.º de agosto, a
Alemanha, que apoiava os austríacos, declarou guerra à Rússia. A França, aliada
dos russos, decidiu reunir seus soldados no mesmo dia. No dia 3, a Alemanha
declarou guerra à França e deu um ultimato à Bélgica: dar livre passagem aos
alemães. O governo belga negou o pedido - o rei Alberto I decidiu resistir. O
país acabou invadido no dia 4. A violação de sua neutralidade fez a
Grã-Bretanha declarar guerra à Alemanha.
Os
austríacos que lançaram as bombas em Belgrado naquela noite de verão
terminariam o ano de 1914 com 957 mil baixas em suas forças, entre mortos,
desaparecidos e prisioneiros. Foram repelidos pelos russos na Galícia (atual
Polônia) e, depois de tomar Belgrado em 2 de dezembro, expulsos da cidade pelos
sérvios no dia 13. Seus exércitos deixaram para trás um rastro de 4 mil civis
assassinados na Sérvia - os soldados seguiram as ordens de generais que
consideravam, "em um país habitado por uma população inspirada por um ódio
fanático, toda bondade de coração fora de questão". O conflito balcânico
que imaginavam começar se transformara rapidamente em europeu e, pouco tempo
depois, envolveria o planeta: a 1.ª Guerra Mundial.
A Guerra no Leste
Marcelo
Godoy
Em janeiro de 1914, o czar Nicolau II
se encontrou com Théophile Delcassé, o embaixador francês em São Petersburgo.
Conversaram sobre um possível conflito na Europa: “Não vamos deixá-los pisar em
nossos pés e, dessa vez, não será como na guerra no Oriente: a nação nos
apoiará”, disse o czar. Nicolau II pensava no perigo de uma nova revolução,
como a que ocorrera na Rússia em 1905,
depois da derrota do país na Guerra Russo-Japonesa.
Os exércitos de Nicolau II se
dividiram em agosto de 1914. Dois deles se dirigiram à Alemanha, invadindo a
região da Prússia Oriental. Em Gumbinnen, no dia 20, eles bateram os alemães,
que se retiraram em meio a colunas de refugiados. O governo de Berlim pensava
que o czar precisaria de 40 dias para mobilizar seus homens. Surpresos com a
rapidez russa, decidiu trazer da França dois corpos de exército, enfraquecendo
as forças que invadiam aquele país. “Sem Gumbinnen, jamais teria havido a
vitória do Marne”, escreveu o historiador francês Marc Ferro. A derrota no
Marne impediu a vitória alemã em 1914.
Na Prússia, Gumbinnen provocou a
mudança do comando alemão no Oriente. Os generais Paul von Hindenburg e Erich
Ludendorff assumiram a situação e manobraram suas forças de tal forma que
conseguiram cercar o 2.º Exército russo em Tannenberg. Foi a maior vitória
alemã da guerra. Seguiu-se depois o impasse, com os exércitos imóveis
entrincheirados um diante do outro durante o inverno.
Mais ao sul, na região da Galícia
(atual Polônia), austríacos e russos mobilizaram milhões de homens desde a
fronteira da Romênia até a Alemanha. A sorte da guerra na região mudaria
rapidamente, mas o ano terminaria com um desastres austríacos. Eles perderam a
fortaleza de Lemberg e 150 mil de seus homens estavam cercados em outra
fortaleza, a de Przemyls (no sul da atual Polônia). O começo da guerra
significou para os russos a perda de 1 milhão de soldados e de outro 1,26
milhão para os austro-húngaros. A incapacidade bélica do exército de Viena fez
os alemães terem certeza de que estavam “acorrentados a um cadáver”: a
monarquia austríaca dos Habsburgos.
Batalha do Marne
Marcelo Godoy
O jovem Yves Congar tinha dez anos e
vivia em sua Sedan, na França, perto da fronteira da Alemanha, quando escreveu
em 29 de julho de 1914: “Eu consigo pensar sobre a guerra. Gostaria de ser
soldado e lutar”. Congar se tornaria um dos mais influentes teólogos da Igreja
no século 20. Dominicano, foi consultor do Concílio Vaticano 2.º e se tornaria
cardeal em 1994, um ano antes de sua morte.
Depois da Bélgica, os alemães
invadiram a França. Sedan foi uma das cidades ocupadas e saqueadas pelo invasor
– o pai de Congar foi tomado como refém pelos alemães como prevenção à resistência
da população. Os exércitos alemães se dirigiam à região de Paris, um setor
defendido apenas pelos 100 mil homens da Força Expedicionária Britânica e pelo
5.º Exército francês. Contra eles, marchavam três exércitos alemães.
Os aliados foram batidos em Moons, Le
Cateau, Maubege e retiravam-se em direção a Paris. Os alemães atingiram a
região do Rio Marne. Não sabiam que o marechal francês Joseph Joffre ordenara a
disposição de uma nova tropa, o 6.º Exército, para defender a capital francesa.
Soldados foram transferidos de trem da fronteira com a Alemanha a tempo de
salvar a França. O contra-ataque começou no dia 5. Sobre essa situação,
escreveu o general francês Ferdinand Foch: “Minha direita está ruindo, minha
esquerda está recuando. Excelente. Ataco com meu centro”.
Às 9h02 de 9 de setembro, o 2.º
exército alemão recebeu uma das mais dramáticas ordens da guerra: retirar. Uma
brecha entre ele e o 1.º exército alemão se havia aberto e colocava em risco
toda a frente. O mais impressionante da decisão foi ela ter sido tomada por
delegação. De fato, foi o tenente-coronel Richard Hentsch quem a determinou
como enviado do chefe de estado-maior alemão, general Helmuth von Moltke, para
avaliar a situação. Para o historiador inglês Max Hastings, a derrota alemã no
Marne foi a “virada, o momento decisivo da 1.ª Guerra Mundial”.
A Queda de Przemyls
Marcelo Godoy
O grande cerco de Przemyls começou em
17 de setembro de 1914. A cidade-fortaleza mantida pelo Império Austro-Húngaro
na Galícia (atual Polônia) contava com uma guarnição de cerca de 150 mil
homens. Era a chave das defesas do império dos Habsburgos diante dos Montes
Cárpatos e acabou envolvida pela maré russa que tomou a região depois que o
exército de Viena foi derrotado perto de Tarnopol, obrigando os alemães a correr
em ajuda de seus aliados.
No fim de 1914, o avanço alemão em
direção a Varsóvia havia obrigado os russos a levantar o cerco à cidade. Era 9
de outubro. E foi por pouco tempo. Com o fracasso da ação alemã, os austríacos
também tiveram de se retirar em 26 de outubro, deixando mais uma vez a
cidade-fortaleza sitiada. Ali perto, no Rio Vístula, o filósofo Ludwig
Wittgenstein acompanhou o drama da retirada.
Wittgenstein deixara Cambridge e se
alistara no exército austro-húngaro. Foi designado para um barco-patrulha. A
guerra o decepcionou rapidamente. A começar pelos colegas da tripulação. O
filósofo descobriu que “compartilhar uma grande causa (a guerra) não
enobrece a humanidade”. “Os russos estão em nosso encalço”, escreveu no diário.
“Trinta horas sem dormir”, anotou. Ele e seus colegas se retiraram para
Cracóvia.
Przemyls passou todo o inverno
cercada. Trinta mil civis compartilhariam o destino dos militares. No começo de
1915, a falta de comida levou ao abate de 13 mil cavalos do exército – na
época, o transporte militar era largamente dependente da força animal. Em 23 de
janeiro, os austríacos lançaram uma ofensiva para tentar libertar a cidade. Ela
fracassou assim como a tentativa seguinte, em 27 de fevereiro. Em 22 de março,
a guarnição austríaca se rendeu. Cento e dezenove mil soldados tornaram-se
prisioneiros russos.
Os russos ficariam ali poucos meses.
Em maio, os alemães e austríacos começaram uma grande ofensiva. Em julho,
Przemyls foi reconquistada. Em agosto, os russos se retiravam de Varsóvia e do
restante da Polônia.
O Caminho para Loos
Marcelo Godoy
O escritor e poeta inglês Robert
Graves contou em suas memórias como
sobreviveu nas trincheiras da frente ocidental desde que se alistara em 1914.
“Eu me mantive de pé e vivo bebendo cerca de uma garrafa de uísque por dia.”
Graves foi um dos soldados que participaram da grande ofensiva aliada no
Artois, na França, entre setembro e outubro de 1915.
O velho exército imperial inglês de
antes da guerra havia sido consumido no fim de 1914 na 1.º Batalha de Ypres, no
sul da Bélgica. Reconstituído com os voluntários que chegaram aos quartéis cantando
It’s a Long Way to Tipperary, música-símbolo dos homens de
uniforme cáqui, o exército inglês teve de cavar trincheiras a exemplo dos
outros combatentes da frente ocidental para sobreviver. Do outro lado do arame
farpado da terra de ninguém (espaço entre as trincheiras inimigas), os alemães
cavaram mais fundo.
No começo do ano, uma primeira
ofensiva inglesa fracassara em Neuve-Chapelle. Em maio, os ingleses atacaram
novamente. O alvo era a Crista de Aubers, no Artois. Ao mesmo tempo, os
franceses tentaram conquistar outra área elevada na mesma região, a de Vimy. Os
ataques só acrescentaram mais algumas dezenas de milhares de nomes às listas
dos mortos nos campos de honra
publicadas pela imprensa inglesa.
Chegava o dia 25 de setembro. Os
ingleses usaram seus engenheiros para colocar minas embaixo da linha de
trincheiras alemãs. Iam explodi-las no momento em que o avanço de seus soldados
começasse. Durante quatro dias, a artilharia martelara as defesas alemãs. Por
fim, abriu centenas de cilindros com o gás cloro, mas o vento contrário fez com
que o veneno fosse parar nas linhas inglesas.
Quando deixaram as trincheiras no dia
25, os ingleses pensavam que haveria pouca resistência. Avançaram de peito
aberto em direção aos alemães, que saíram de seus abrigos profundos cavados nas
trincheiras e assumiram os postos em suas metralhadoras a tempo de provocar um
massacre. Dos 15 mil britânicos que se lançaram ao ataque, 8 mil foram mortos
ou feridos no primeiro dia. A batalha durou até 14 de outubro. Custou 60 mil
baixas aos ingleses e 30 mil aos alemães.
Jihad
Marcelo Godoy
O prédio
em estilo barroco, ao lado do Bósforo, abrigava a embaixada alemã em
Constantinopla. Seu titular era o barão Conrad von Wangenhein, um amigo do
kaiser Guilherme II, com excelentes relações com o governo dos jovens turcos, o
grupo político que se rebelara contra o sultão Abdul Hamid II em 1908 – ele
acabou exilado e substituído pelo irmão, Maomé V, em 1909. Em agosto de 1914, o
alemão recebeu em seu gabinete o embaixador americano, Henry Morgenthau, e fez
uma revelação: o Império Otomano entraria na guerra do lado da Alemanha, mas o
que importava mesmo era “o mundo muçulmano”. Mais do que ganhar um aliado, os alemães
contavam em transformar a conflagração em uma jihad, uma guerra santa que
sublevasse o Islã contra os russos, ingleses e franceses.
As
previsões do embaixador começaram a se cumprir em 29 de outubro de 1914. Navios
turcos bombardearam quatro portos russos no Mar Negro. Em 2 de novembro, a
Rússia declarou guerra à Turquia e foi seguida no dia 5 pela Grã-Bretanha e
pela França. No dia 14, o xeque Ul-Islam, em nome do sultão Maomé V, decretou a
jihad. Havia 270 milhões de muçulmanos no mundo em 1914, dos quais 140 milhões
viviam sob o mando franco-russo-britânico. Contra esses países, o sultão
esperava lançar o “fogo do inferno”.
Mas os
jovens turcos tinham outros planos. Mobilizaram suas melhores tropas para
invadir o Cáucaso, na Rússia, em vez de lançá-las em direção à Índia – a joia
da coroa britânica – ou o Canal de Suez, no Egito, então protetorado britânico.
Sem botas e casacos de inverno, o exército turco enfrentou - 31°C e congelou na
Batalha de Sarikamish. O desastre levou à perda de 75 mil homens.
A derrota
provocou pânico. Os armênios – cristãos que viviam na região – foram
transformados em bode expiatório. O governo turco decidiu deportá-los,
provocando a maior crise humanitária da guerra. É impossível calcular quantos
armênios morreram. As estimativas vão de 1,3 milhão a 2,1 milhões. O chamado
pela guerra santa fracassou. Nenhum movimento de resistência muçulmano nasceu
do decreto de jihad turco.
Por fim,
em 25 de abril, franceses, ingleses, australianos e neozelandeses desembarcaram
na Península de Gallipoli, no Estreito dos Dardanelos. Ficaram lá até 1916 e o
ataque – concebido por Winston Churchill, então primeiro lorde do almirantado
inglês para levar à derrota da Turquia – transformou-se em mais um dos
desastres militares da guerra. Cento e dez mil turcos e aliados morreram na
campanha. Outros 200 mil ficaram feridos.
Fratelli D'italia
Marcelo
Godoy
Quem dá mais? Essa é a pergunta que
pode definir a política em relação à guerra do primeiro-ministro italiano
Antonio Salandra. Ele mesmo a chamava em 1915 de “sacro egoísmo”, ao indagar
qual dos dois lados da guerra poderia assegurar mais ganhos territoriais à
Itália em troca de seu apoio. A entrada da Itália na guerra está intimamente
ligada ao chamado irredentismo, movimento que buscava unir debaixo do governo
de Roma todas as regiões habitadas por italianos. Como a maioria delas estava
sob domínio austro-húngaro, não era difícil prever qual lado receberia seu
apoio. E assim foi: a Itália, que antes da guerra era aliada da Alemanha e do
Império Habsburgo, as chamadas potências centrais, declarou guerra à
Áustria-Hungria em 23 de maio.
Milhares de italianos e filhos de
italianos ao redor do mundo se mobilizaram para lutar pelo país. De São Paulo
partiu em 1915 o jovem Amerigo Rottelini. Nascido em 1894, ele era filho do
jornalista Vitaliano Rottellini, dono do jornal Fanfulla, editado em italiano
na cidade. Amerigo se tornou tenente do exército real italiano e morreu em 24
de agosto de 1917, quando conduzia um assalto com seus soldados. Em São Paulo,
o comendador Ermelino Matarazzo fundou o Comitatto Pro Patria, para reunir
doações em dinheiro, alimentos e roupas para os soldados italianos e seus
familiares – esforço que lhe valeu o reconhecimento do governo italiano.
Quatro quintos da fronteira italiana
com os austríacos eram constituídos de montanhas de até 3 mil metros de
altitude cobertas de gelo e neve no inverno. Explosões ali podiam facilmente
provocar avalanches. E os italianos atacaram nos Alpes da região do Trentino e
no Vale do Rio Isonzo, perto do Mar Adriático. Só nas quatro batalhas do
Isonzo, em 1915, 54 mil italianos morreram e pouco terreno foi conquistado. Um
novo impasse com os exércitos imobilizados em trincheiras surgia na Europa.
O Ano de Verdun
Marcelo Godoy
Quem não
viu esses campos de morte jamais terá a menor ideia deles. Em Verdun, os mortos
não contavam. Nem se enterravam. Da lama inescapável à sede infinda, o ambiente
tornava improvável que a vida de um soldado durasse mais de 15 dias na frente
de batalha.
“Quando a
gente chega, os obuses chovem em toda parte e a cada passo. Apesar de tudo, é
necessário avançar. A gente deve se contorcer para não passar sobre um morto
coberto no fundo da trincheira. Mais longe, vários feridos recebem curativos,
outros são levados em macas para retaguarda. Uns gritam, outros gemem. Vê-se os
que não têm mais pernas; outros estão sem a cabeça e permanecem várias semanas
no chão”, escreveu em uma carta um soldado da 65.ª Divisão de Infantaria
francesa, em julho de 1916. A luta ali só terminaria em dezembro.
Para a
França, 1916 é o ano de Verdun, o ano da batalha que o estado-maior alemão
planejou para sangrá-la até o fim. O plano era atacar a histórica fortaleza e
forçar o inimigo a contra-atacar até esgotar suas forças. O assalto alemão
começou em 21 de fevereiro. Um conjunto de 1,2 mil canhões disparou em uma
frente de 20 quilômetros de extensão. O avanço inicial alemão foi avassalador.
O Forte de Douaumont, o coração do sistema defensivo de Verdun, caiu às 3h30 do
dia 25.
A
cidade só não caiu por causa da determinação francesa. O general Philippe
Pétain assumiu o comando. A estrada que ligava Verdun a Bar-le-Duc se
transformou na Via Sacra. O tráfego ali não parava, dia e noite. O que parecia
ser a véspera da vitória alemã se transformou em mais uma batalha de atrito, um
moedor de carne e de materiais. E assim foi até que os franceses
contra-atacaram. No dia 21 de outubro, os marroquinos e a infantaria colonial
retomaram Douaumont. Na noite de 2 para 3 de novembro, foi a vez da reconquista
do Forte de Vaux. Em 15 de dezembro, a última ofensiva francesa assegurou mais
cinco fortificações e fez 11,3 mil prisioneiros. As baixas alemãs chegaram a
337 mil – dos quais 143 mil mortos –, enquanto as francesas atingiram 377,2 mil
– 162,4 mil mortos.
O Massacre do Somme
Marcelo Godoy
Um general que participara de sessões
espíritas na qual conversara com o espírito de Napoleão e pensava poder se
comunicar com Deus era o homem que os ingleses encontraram para comandar seu
exército em 1916. Assim era Douglas Haig, conta o historiador inglês John Keegan.
No dia 1.º de julho de 1916, ele lançou seus homens no vale do Rio Somme contra
as defesas alemãs – alguns dos abrigos inimigos tinham mais de dez metros de
profundidade e eram impenetráveis para qualquer projétil de artilharia
britânica.
Pior do que as defesas alemãs foi a
inépcia do comando. Em alguns setores, nem mesmo o arame farpado que separava
os ingleses dos alemães foi destruído e isso significava a morte para qualquer
soldado que tentasse atacar o oponente. Dos 100 mil ingleses que subiram o topo
de suas trincheiras para avançar contra o inimigo, 19.240 morreram e outros
38.230 ficaram feridos ou desaparecidos no primeiro dia da ofensiva.
Os ingleses insistiram nos ataques nos
meses seguintes. E lançaram mão de uma grande inovação na história das guerras.
Em Flers, no dia 15 de setembro, eles levaram 32 Mark I para a frente de
batalha. Eram monstrengos que se deslocavam lentamente e carregavam dois
canhões de 57 mm e quatro metralhadoras. Eles surpreenderam os alemães, mas
ainda levaria algum tempo até que esse invento se tornasse decisivo nos campos
de batalha.
Depois disso, a chuva se encarregou de
deixar o terreno do Somme intransitável. Até que em 18 de novembro as operações
na região foram suspensas. Um balanço de perdas é difícil de se fazer. Hew
Strachan, outro notável historiador inglês da 1.ª Guerra, calcula em 650 mil as
baixas alemãs – incluindo aí feridos leves – e 614 mil dos aliados, das quais
420 mil foram britânicas. Tudo isso para a conquista de poucos quilômetros de
terra e pelo sonho de abrir uma brecha na linha inimiga e, assim, pôr um fim à
guerra.
O General e o Monge
Marcelo
Godoy
Gregory
Rasputin era um monge que acreditava que podia resolver problemas das mulheres
com casamentos conturbados mantendo com elas relações sexuais. Suas crenças e
escândalos pareciam pôr em risco a segurança do próprio estado russo ainda mais
quando sua influência sobre a czarina Alexandra o permitia fazer e desfazer
ministros. A mulher de Nicolau II acreditava que Deus enviara o monge, pois só
ele parecia cessar os sofrimentos do herdeiro do trono, seu filho Alexei, que
era hemofílico.
Rasputin era contra a guerra e tentou
fazê-la parar ou limitar seus efeitos, mesmo durante as batalhas vitoriosas. O
místico se tornara um estorvo para nobres e militares, entre eles Aleksei
Brussilov, o mais competente entre os generais russos da 1.ª Guerra. Em 4 de
julho de 1916, apoiado por quase 2 mil canhões, ele lançou a ofensiva que
levaria seu nome na região da Galícia (atual Polônia). Tinha 200 mil homens
para lutar contra 150 mil austro-húngaros. Em pouco tempo, Brussilov abriu um
brecha nas defesas inimigas e fez mais de 100 mil prisioneiros. Alemães e
austríacos tiveram de trazer tropas da França e da Itália para detê-lo, mas
suas vitórias continuaram em agosto e setembro. Os combates haviam provocado
quase 2 milhões de baixas nos dois lados quando o monge aconselhou a czarina a
pedir a Nicolau II que acabasse com a ofensiva, o que foi feito.
A decisão fez de Brussilov um
conspirador. Ele se juntou ao grupo de civis e militares que pretendiam prender
a czarina, depor o czar e entregar o poder ao seu primo, o grão-duque Nicolau
Nicolaievitch. Depois da Revolução de Fevereiro, que deporia a monarquia em
1917, Brussilov comandou os exércitos russos até agosto, quando foi substituído
após o fracasso da ofensiva lançada pelo governo provisório de Alexander
Kerensky. No fim de sua vida, Brussilov viveria aposentado em Moscou e apoiaria
o esforço de guerra soviético em 1920 no conflito com os poloneses. Morreu em
1924.
Um Plano Infalível
Marcelo Godoy
Os aliados tinham tudo planejado. Os
ingleses atacariam da direção norte, no Artois, para o oeste enquanto os
franceses avançariam do sul, no Chemin des Dames, em direção ao norte. O
movimento criaria duas grandes pinças para cercar os alemães na região do Rio
Somme, que formava uma saliência na frente de combate. Mas, dias antes de os
ataques começarem, o inimigo se retirou da área que deveria ser envolvida pelo
avanço aliado, deixando a ala esquerda da ofensiva francesa na região do Rio
Aisne sem oposição.
“A conclusão lógica era adiar toda a
operação”, escreveu o historiador inglês Hew Strachan. Mas os aliados decidiram
o contrário. E um dos motivos para isso foi salvar a Rússia. “Não esqueçam que
o exército francês está fazendo preparativos para uma grande ofensiva, e o
exército russo tem o dever de honrar a sua parte nisso”, escreveu o embaixador
francês em Petrogrado, Maurice Paléologue, ao governo provisório daquele país
em 13 de março.
A retirada alemã diminuíra a frente de
combate que seu exército devia cuidar. Durante meses, seus homens haviam
escavado uma grande fortificação, conhecida como Linha Hindenburg, e ali se
abrigaram à espera dos aliados. Mesmo assim, os ingleses atacaram na região de
Arras em uma frente de 24 quilômetros onde o inimigo ainda se mantinha firme.
Eles reuniram 2,7 milhões de projéteis de artilharia com espoletas rápidas, que
explodiam quando a bomba tocava no solo, aumentando seu impacto e cortando
facilmente o arame farpado.
Durante todo o inverno, tropas canadenses
foram treinadas para se acostumar com o terreno que deveriam conquistar. Os
soldados avançaram logo atrás do fogo da artilharia, que fazia uma barragem
logo adiante. Por volta das 13 horas de 9 de abril, eles haviam avançado 3,5
quilômetros e capturado as colinas conhecidas como Vimy Ridge. Os alemães
trouxeram reforços. Em pouco tempo, barraram o avanço aliado. Mais um plano
para resolver o impasse da guerra de trincheiras começava a atolar.
A Morte nos Flandres
Marcelo Godoy
Durante um ano, engenheiros ingleses
cavaram a 25 metros de profundidade galerias em direção à Crista de Messines,
na Bélgica. Vinte e quatro túneis foram abertos. Debaixo dos profundos abrigos
das trincheiras do inimigo, os britânicos depositaram 500 mil quilos de
explosivos. Com a exaustão de franceses e russos, Londres foi obrigada a fazer
sua ofensiva sozinha. A escolha da marinha e do exército foi atacar nos
Flandres, no sul da Bélgica, a fim de avançar até as cidades costeiras de
Ostend e Zeebrugge, acabando com as bases que os alemães criaram para seus
submarinos naquele país.
Eram 3h10 de 7 de junho quando 19
detonações das gigantescas minas criaram “rosas com pétalas carmim ou enormes
cogumelos de fogo e terra, que subiram para o céu”, escreveu o historiador John
Terraine em The Road
to Passchendaele. Dez mil soldados alemães foram soterrados pelas
explosões que, de tão fortes, chegaram a ser ouvidas no sul da Inglaterra. O
bombardeio que se seguiu foi terrível. Dois mil canhões causaram outras 15 mil
baixas no inimigo. Por volta da meia-noite, toda a região leste da crista
estava nas mãos dos britânicos. Era o começo da campanha de Passchendaele, a
pequena cidade belga que se transformaria em sinônimo de perdas inúteis e da
futilidade da guerra.
Para o general William Robertson,
chefe do estado-maior imperial, os ingleses estavam voltando aos seus velhos
princípios. “Em vez de planejar romper a frente inimiga, nosso objetivo é
dobrar o exército inimigo, o que significa lhe infringir perdas mais pesadas do
que as que sofreremos.” Com a crista em suas mãos, britânicos, canadenses e
australianos avançaram em direção ao Planalto Gheluvelt. Mas, no fim de agosto,
pouco avanço havia sido feito. Mesmo assim, a ofensiva seguiu adiante.
A chuva era contínua. A lama era tanta
que só se conseguia caminhar por cima de passarelas de madeira. Mulas afundavam
até afogar em buracos abertos por explosões que estavam cheios de lama e água.
Era impossível para a equipe de um canhão atirar com rapidez e precisão – cada
vez que os tiros eram feitos, a bateria afundava no solo.
Em novembro, quando a ofensiva foi
suspensa, os ingleses contavam 275 mil baixas – 70 mil delas eram mortos. Ao
todo, os aliados perderam cerca de 500 mil homens. Mais do que os 380 mil de
seus inimigos. O plano de Robertson fracassara.
Adeus as Armas
Marcelo
Godoy
A 11.ª Batalha do Rio Isonzo em agosto
causou 166 mil baixas para os italianos. Desde que a guerra começara, seu
comandante, o general Luigi Cadorna, planejava atingir o Porto de Trieste, no
Adriático. Sob domínio austro-húngaro, a maioria da população tinha origem
italiana. Dois anos depois, os homens de Cadorna haviam avançado apenas um
terço do caminho – só em 10 de agosto de 1916, eles haviam capturado a cidade
de Gorizia.
Ao mesmo tempo em que avançavam palmo
a palmo, o número de deserções crescia – passara de 2.137 em abril de 1917 para
5.471 em agosto. Duas brigadas se amotinaram. Até o implacável Cadorna – 750
soldados italianos foram fuzilados durante a guerra, o maior número entre todos
os exércitos em conflito – reconhecia que seus homens precisavam de repouso.
Faltou combinar com os alemães e os
austríacos. No dia 24 de outubro, depois de um breve bombardeio, eles avançaram
na região do Alto Isonzo. "Quanto mais longe penetrávamos em terreno
hostil, menos preparadas estavam as guarnições para a nossa chegada e mais
fácil era a luta", escreveu o então tenente Erwin Rommel, que mais tarde
seria o mais famoso marechal alemão da 2.ª Guerra Mundial. Em pouco tempo,
seguiu-se uma enorme debandada italiana. Ernest Hemingway a retratou no livro Adeus às Armas.
Soldados atiraram em oficiais que
tentavam impedi-los de fugir ou se render. Em semanas, o exército italiano
perdeu quase 700 mil homens, dos quais 40 mil foram mortos e 280 mil capturados
pelo inimigo. As deserções atingiram 350 mil. Greves gigantescas estouraram em
Milão e em Turim. Uma demonstração antiguerra na primeira cidade foi reprimida
à bala, deixando 41 mortos e 200 feridos. Foi preciso reforço inglês e francês
para impedir a derrota total. Cadorna foi destituído e substituído por Armando
Diaz. Mais folgas, melhores rações, tratamento menos severo e, principalmente,
o fim das ofensivas pacificaram o exército que aguentou em junho de 1918 a ofensiva
austríaca no Rio Piave.
Após o fracasso inimigo, os italianos
decidiram que era chegada a hora de atacar novamente. Em 24 de outubro,
iniciaram a ofensiva do Monte Grappa ao Adriático. No dia 27, eles atravessaram
o Piave e os soldados austríacos se recusaram a contra-atacar. No dia seguinte,
a Checoslováquia se declarou independente do Império Habsburgo. No dia 29, os
croatas e sérvios decidiram se separar de Viena e foram seguidos no dia 31
pelos húngaros. O exército imperial, que perdera mais de 500 mil homens,
deixara de existir. No dia 3, os italianos desembarcaram em Triste e no mesmo
dia um armistício foi assinado. A guerra chegava ao fim nessa parte da Europa.
A Última Ofensiva
Marcelo Godoy
O jovem tenente Ernst Jünger saltou na
primeira trincheira. Virando-se de costas depois de invadi-la, ele se deparou
com um oficial inglês, que trazia a túnica desabotoada, de onde pendia a
gravata por meio da qual ele o agarrou e o jogou em um parapeito de sacos de
areia. Atrás dele, a cabeça grisalha de um major surgiu e gritou: "Abata
esse cachorro". Tenente das Sturmtruppen, as tropas de assalto alemãs,
Jünger conta em seu livro Tempestades
de Aço o que se seguiu. "Alguém pensaria estar em meio a um
naufrágio", escreveu. Os ingleses fugiam por todo lado. "Eu apertava
como em um sonho o gatilho de meu revólver, mas fazia tempo que eu não tinha
mais balas no tambor. Um homem ao meu lado jogava granadas entre os
fugitivos."
Os alemães voltaram a atacar na frente
ocidental em 21 de março de 1918. Desde 1916, não faziam isso. A saída da
guerra da Rússia e da Romênia permitiu a Berlim transferir tropas para a França
e lançar um grande ataque antes que a presença do exército americano na Europa
mudasse definitivamente a balança de forças da guerra. Era, portanto, a última
chance de vitória de Berlim.
Naquela manhã, Jünger conta que o
combate foi liquidado em um minuto. "Os ingleses saltaram fora de suas
trincheiras e batalhões inteiros fugiram pelos campos." Transformaram-se
em alvo fácil para o inimigo e em pouco tempo os campos se coalharam de corpos.
Os soldados alemães haviam avançado após cinco horas de bombardeio, muito pouco
para os padrões da guerra. A neblina permitiu que as Sturmtruppen se
aproximassem das metralhadoras inglesas sem ser notadas. Das 38.512 baixas
inglesas no primeiro dia da ofensiva alemã, 21 mil eram de soldados feitos
prisioneiros. Os ataques alemães produziram um avanço que não se via desde 1914
– foram 64 quilômetros em direção ao Rio Somme.
O
primeiro ataque, batizado como Michael, terminou em 5 de abril. Quatro dias
depois, o general Erich Ludendorff lançou o segundo, chamado Georgette. Dessa
vez, o alvo era a área dos Flandres, na Bélgica. Apenas 19 quilômetros foram
conquistados. O próximo ataque alemão foi a Operação Blücher, lançada em 21 de
maio no Chemin des Dames. Os alemães chegaram a ficar a 90 quilômetros de
Paris, que bombardearam com sua artilharia. Mas foram detidos por americanos e
senegaleses em Chateau Thierry. Juntos os dois lados perderam aproximadamente
800 mil homens. Pressionado pela fome e pela debacle de seus aliados, a
Alemanha de Guilherme II não aguentaria muito tempo mais.
A vitória aliada começou no Bosque de Belleau, no Marne. Os franceses recuavam diante do ataque alemão e cruzaram com os recém-chegados marines. “É melhor vocês recuarem”, disse um oficial francês ao capitão Lloyd Willlians. “Recuar? Raios, nós acabamos de chegar”. O contra-ataque dos fuzileiros navais americanos entrou para a história da corporação. Era 4 de junho de 1918. Os americanos começavam a chegar em grande número à frente de combate na Europa.
Pouco mais de um mês depois, o general Charles Mangin, conhecido como Açougueiro, lançou seu exército – o 10.º francês – adiante em Villers-Cotterets. O bombardeio começou às 4h35. A infantaria avançou atrás da barragem da artilharia acompanhada por centenas de tanques leves Renault FT17. Armados com um canhão de calibre 37 mm e com uma metralhadora, os tanques levavam uma guarnição de dois homens e transpunham rampas de até 45° de inclinação e valas de até 1,8 metro de largura. A uma velocidade de 7 quilômetros por hora, eles ajudaram a levar franceses e americanos de volta até Soissoons, no Vale do Aisne.
Os aliados começaram a expulsar o
exército de Berlim da França. Exaustos, os alemães viram o total de seus homens
cair de 5,1 milhões para 4,2 milhões depois da ofensiva da primavera. Eles
haviam produzido pouquíssimos tanques – o gigante A7V. Dependiam principalmente
dos veículos ingleses e franceses capturados. Seus inimigos reuniram perto de
Amiens 530 tanques ingleses e 70 franceses para atacar no dia 8 de agosto ao
lado de soldados canadenses e australianos. O sucesso foi gigantesco. Em quatro
dias, os alemães tiveram de recuar até a região que ocupavam no começo do ano.
“Foi o dia negro do exército alemão”, disse o general Erich Ludendorff.
Depois disso, uma sucessão de
ofensivas aliadas levou os alemães a procurar a paz em outubro. Derrotado, o
exército germânico recuou para suas fronteiras. No dia 26 de outubro,
Ludendorff, que rejeitava a negociação de paz, foi forçado a renunciar. A
revolução batia às portas de Berlim. O kaiser foi obrigado a renunciar. O
armistício entre os alemães e os aliados foi assinado em um vagão ferroviário
em 11 de novembro, em Compiègne, na França.
A Guerra de Versões Continua
Andrei Netto
Os Sonâmbulos,
livro lançado pelo historiador australiano Christopher Clark, relança o debate
sobre as responsabilidades pelo início da 1.ª Guerra Mundial. Para ele, a
Sérvia e sua ambição nacionalista estão no centro da explicação – e não a
Alemanha.
Às 10h43 de 31 de julho de 1914, o
embaixador da França em São Petersburgo, Maurice Paléologue, enviou um telegrama ao Conselho de Ministros da França.
Em um texto seco e sucinto, o diplomata informou que o imperador da Rússia,
Nicolau II, havia ordenado a mobilização das tropas de seu país, em resposta à
declaração de guerra da Áustria-Hungria à Sérvia, sua aliada, três dias antes.
“A Rússia mobilizou suas tropas”, escreveu.
Por razões desconhecidas, a
correspondência só chegaria ao Conselho de Ministros em Paris quase dez horas
mais tarde, após outro despacho, dessa vez vindo de Viena, que informava sobre
a mobilização das tropas da Áustria-Hungria contra a Rússia – uma reação ao
primeiro ato hostil de São Petersburgo. Ao tomar conhecimento da iniciativa
bélica dos austríacos, o governo francês não hesitou em afirmar em sua
propaganda: a mobilização do exército da Áustria-Hungria comprovava a
responsabilidade do país pelo início da guerra contra a Rússia e, por extensão,
contra seus aliados do Ocidente.
A verdade, no entanto, era a inversa.
A troca de telegramas, a ordem em que foram divulgados em Paris e o fato de que
o texto foi falsificado a seguir – com o acréscimo da frase “A Rússia mobilizou
suas tropas em decorrência de informações sobre as mobilizações austríaca e
alemã” – são um dos tantos vestígios documentais do esforço de cada um dos
países envolvidos em manipular a verdade e culpar o outro pelo início da 1.ª
Guerra Mundial, mesmo antes de os combates eclodirem. Essa obsessão pela
responsabilidade da guerra, decisiva nas negociações de paz e na redação do
Tratado de Versalhes, em 1919, é ainda hoje uma veia aberta na Europa. Cem anos
mais tarde, historiadores continuam a debater: afinal, de quem é a culpa pela
tragédia?
A controvérsia no mundo acadêmico em
torno do artigo 231 do Tratado de Versalhes, que responsabilizava a Alemanha,
já alimentou mais de 25 mil livros e artigos, mas jamais foi de fato encerrada
nesses 100 anos. Mais grave: por muito tempo, ela envenenou as relações
internacionais, em especial na Europa. Em 2013, essa ferida aberta ganhou uma
nova interpretação pela publicação do livro Os
Sonâmbulos – Verão 1914: Como a Europa marchou para a guerra (The Sleepwalkers),
de autoria do historiador australiano radicado na Grã-Bretanha Christopher
Clark, professor da Universidade de Cambridge. Para o especialista em Prússia e
Alemanha, a culpa do conflito foi, antes de mais nada, de “sonâmbulos” – uma
metáfora para os líderes políticos e diplomatas incapazes de parar as engrenagens
de uma guerra que se anunciava sanguinária desde o início do século.
A polêmica reaberta por Christopher
Clark, entretanto, não está na responsabilização do mundo político, quase um
consenso entre historiadores, mas no fato de que sua obra recoloca a Sérvia, a
instabilidade dos Bálcãs e o atentado de Sarajevo de 28 de junho de 1914 no
epicentro dos acontecimentos. Ao longo do século que passou, acadêmicos que se
debruçaram sobre a questão viram no atentado em si, cometido pelo jovem
nacionalista sérvio Gavrilo Princip contra o arquiduque Francisco Ferdinando,
apenas um fraco pretexto na decisão da Áustria-Hungria de declarar a guerra e
esmagar as ambições regionais da Sérvia.
Baseado em um trabalho de pesquisa em
fontes primárias em arquivos de Paris, Londres, Viena, Berlim, Moscou, Belgrado
e Haia, Clark chega à conclusão de que o fanatismo nacionalista sérvio, somado
à ofensiva de potências europeias, como a Itália, contra territórios sob
domínio do Império Otomano, tiveram papel crucial na eclosão do conflito. Por
extensão, ao apontar o dedo sobre a Sérvia, o historiador lança luzes sobre o
papel dos aliados desse país, Rússia e França à frente, minimizando a
importância das ambições imperialistas da Áustria-Hungria e da Alemanha.“Clark
reverte essa perspectiva e diz: 'A Sérvia organiza uma política de potência,
sai vitoriosa das guerras balcânicas de 1912 e 1913 e tem um projeto político
de reunificar todos os eslavos do sul, que existem entre os
austro-húngaros'", explica o historiador francês Joseph Zimet, diretor da
Missão do Centenário da 1.ª Guerra Mundial. “O grande problema é que a
Bósnia-Herzegovina, povoada de 55% de sérvios, é anexada pela Áustria-Hungria.
Christopher Clark afirma que foi a Sérvia queprovocou a 1.ª Guerra Mundial.
Explicar
a 1.ª Guerra Mundial vem sendo uma tarefa hercúlea de historiadores ao longo de
décadas. Mas esse esforço resultou em alguns consensos: o início do século 20
era um tempo de corrida armamentista e militarismo exacerbado, de
nacionalismos, imperialismos, disputas territoriais e jogos perigosos de
alianças e inimizades internacionais entre novas e velhas potências econômicas
e industriais. Guerras eram vistas não como tragédias a serem evitadas a todo
custo, mas como um instrumento político legítimo de coerção a ser empregado
sempre que necessário para reordenar o equilíbrio de poder no continente. Esse
cenário geopolítico tenso aproximava algumas e opunha outras superpotências da
época – França, Alemanha, Áustria-Hungria, Itália, Grã-Bretanha e Rússia. Em
uma era marcada pelo colonialismo, o jogo de forças não se limitava à Europa,
mas se estendia às colônias e aos protetorados espalhados pela África, pelo
Oriente Médio e pela Ásia. Daí à guerra mundial bastou uma fagulha.
Nesse
cenário, os movimentos nacionalistas da Sérvia exerceram de fato um papel
desestabilizador, como admitiram as obras do jornalista Luige Albertini e de
historiadores como Pierre Renouvin, Fritz Fischer, Annika Monbauer, John Röhl,
Stefan Schimidt, Jean-Jacques Becker, Gerd Krumeich ou Jay Winter,
especialistas em 1.ª Guerra Mundial. Desse movimento extremista, participavam
grupos como Mão Negra – apoiador do Jovem Bósnia, ao qual Princip pertencia –,
alguns dos quais com forte presença no interior do Estado sérvio. Para a
historiadora bósnia Vera Katz, pesquisadora do Instituto de História da Universidade
de Sarajevo, o atentado não passou de uma gota d’água.“As grandes potências,
como Grã-Bretanha, Alemanha, Rússia, França, estavam preparadas para a guerra.
Havia tantas crises no mundo, como no Marrocos, no Japão e na Rússia, questões
sobre o Império Otomano, conflitos entre Rússia e otomanos… Creio que foi
apenas uma faísca para o começo.”
Prova de
que a região dos Bálcãs – um cruzamento entre ortodoxos, católicos e muçulmanos
e entre o Ocidente e o Oriente em plena Europa – era um barril de pólvora
haviam sido a crise na Bósnia de 1908 e as guerras balcânicas entre Sérvia,
Grécia, Montenegro e Bulgária contra o Império Otomano, em 1912, e entre a
Bulgária e seus ex-aliados, em 1913. Ao final desses conflitos, escreve Clark,
o equilíbrio geopolítico da região estava alterado, mas a Rússia desprezou as
preocupações da Áustria-Hungria com a situação na península. “Para a
Áustria-Hungria, as guerras dos Bálcãs modificam radicalmente a situação.
Sobretudo revelam que Viena está isolada e as chancelarias estrangeiras não
compreendem nada da interpretação que os austríacos fazem dos eventos.”
Segundo
Clark, a aliança entre Rússia e França se aprofundou também em torno dos Bálcãs
em 1912, pelas mãos do então chefe de governo francês Raymond Poincaré, que se
solidarizou com o imperador russo Nicolau II ao afirmar que “toda conquista
territorial efetuada pela Áustria-Hungria romperia o equilíbrio europeu e
afetaria interesses vitais da França”. O aumento da sinergia militar entre
russos e franceses ajuda a explicar por que em 37 dias a Europa partiu de um
assassinato político de importância limitada – o de Francisco Ferdinando – a
uma guerra generalizada que tomaria conta do continente.
O
problema da obra de Clark, segundo seus críticos, é sobrevalorizar a importância
da Sérvia e do atentado e minimizar a determinação da Alemanha para que a
guerra acontecesse. Essa “determinação” se tornou uma convicção da maior parte
dos especialistas no assunto em 1961, quando o historiador alemão Fritz Fischer
lançou Os Objetivos de Guerra da Alemanha Imperial 1914-1918, livro em
que diz haver uma filiação direta entre a guerra franco-prussiana em 1870, a
1.ª Guerra Mundial e a 2.ª Guerra Mundial, causada por uma elite industrial
conservadora da Prússia com militares e meios políticos, todos com o intuito de
afirmar a superpotência alemã contra seus adversários na Europa e empreender
uma política imperialista agressiva na Europa do Leste, na África e no Oriente
Médio.
O
argumento das Teses de Fischer se baseou em documentos de Defesa e diplomacia
da Alemanha que mostram a existência de planos de guerra, como o Plano
Schlieffen, existente desde 1905, o Conselho de Guerra de 1912, quando se
cogitou o início das hostilidades por medo do rearmamento da Rússia, ou ainda o
Programa de Setembro, de 1914, no qual o governo do chanceler Theobald von
Bethemann Hollweg fez projetos de anexação e de domínio de territórios da
Europa e da África – a Mitteleuropa e a Mittelafrika –, atendendo às
reivindicações dos diferentes grupos de interesse da sociedade alemã.“Fischer
comete a meu ver um grave erro: ele estabelece essa espécie de fio que iria de
Bismarck a Hitler, com Guilherme II no meio. Seria um fio lógico que levaria a
Hitler. Ao afirmar isso, Fischer diz algo que eu considero completamente falso”
diz o historiador Frédéric Manfrin,
diretor de História da Biblioteca Nacional da França (BnF) e comissário da
exposição Été 1914, em cartaz em Paris.“Já Clark tem um gosto claro pela
Prússia, sobre a qual ele fez seus estudos. Ele vai longe demais na tese da
inocência alemã e o papel que dá à Sérvia é bem discutível.”
A opinião
de Manfrin reverbera a de outro historiador, o alemão Gerd Krumeich, professor
emérito da Universidade Henrich-Heine, de Düsseldorf, autor de um livro em que
reflete sobre as responsabilidades da guerra, Fogo na pólvora – Quem detonou
a guerra de 1914?. Krumeich relembra uma das teses do historiador francês
Pierre Renouvin, de 1932, segundo o qual não há “responsabilidade unilateral”
pela guerra, mas reafirmou, em recente entrevista ao jornal Le Monde:
“Os dois
campos encheram pouco a pouco o barril de pólvora durante os anos precedentes,
mas é incontestável que foram os alemães que colocaram o fogo”.
Em meio à
polêmica centenária, uma constatação de Clark parece bem aceita por todos: “Não
há arma do crime nessa história, ou na verdade há uma para cada personagem
principal”, escreve ele. “Visto por esse ângulo, a detonação da guerra não foi
um crime, mas uma tragédia.”
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