Globo,
03/07/2015
Quando migrou da Bulgária para o
Brasil, em 1948, Licco Haim trouxe na bagagem um material que, décadas depois,
revelou-se um tesouro histórico: filmes que mostram o dia a dia de judeus em um
campo de trabalhos forçados na 2ª Guerra Mundial.
Judeu nascido na Áustria, Licco morava
na Bulgária, que na época era aliada da Alemanha nazista. Em 1941, foi enviado
para o campo de Lakatnik, a 40 km da capital, Sófia. Lá, participou da
construção de uma estrada junto com outros judeus, ciganos e minorias
discriminadas. Anos depois, migrou com a família para o Brasil, onde morou por
54 anos, até sua morte.
Fã de fotografias e filmes, Licco
tinha uma câmera, algo incomum na época, e com ela registrou a sua rotina e a
de outros prisioneiros.
As imagens, redescobertas pela família
no ano passado, mostram cenas como os presos quebrando pedras, afiando
ferramentas, explodindo dinamite, pegando sua ração de comida ou fumando e
escalando montanhas nos momentos de folga (veja trechos no vídeo acima).
De acordo com o Museu da Memória do Holocausto
dos EUA, que recebeu os filmes como doação, a gravação tem grande valor
histórico por ser uma das poucas no mundo feitas sob a ótica de um prisioneiro,
e não do regime que controlava o campo.
Não se sabe como Licco conseguiu
captar as imagens dentro do local. Uma das hipóteses é que os próprios guardas
tenham pedido que ele levasse a câmera para filmar cerimônias oficiais e ele
aproveitou a oportunidade para gravar outros momentos do cotidiano.
Após
seis meses, ele foi dispensado do campo de trabalhos forçados por suas
habilidades com mecânica, necessárias para o país naquela época. Sete anos
depois, quando a Bulgária já era comunista, migrou para o Brasil com a família
e morou em São Paulo até 2002, quando morreu.
Os
filmes perderam qualidade e ficaram incógnitos por muito tempo, já que a
família não sabia exatamente do que se tratava. “Ele trouxe para o Brasil, o
que significa que dava importância ao material. Mas depois disso nunca mais deu
bola e raríssimas vezes tocou no assunto”, conta seu filho, Salvator Haim.
Em 2014, quando o sobrinho dele, Ilko
Minev, escreveu um romance baseado na história do tio, a família redescobriu as
latas com os filmes. “Não conseguimos ver o conteúdo, porque a lâmpada do
projetor queimou. Foi o que preservou, porque esses filmes antigos se desgastam
cada vez que são vistos. Eles estavam dentro de uma mala e não sabíamos o que
fazer com eles”, conta Ilko.
Por sugestão de um amigo, a família
levou os filmes para o museu em Washington, que os recuperou, remasterizou e
usou como objeto de pesquisa.
Segundo Ilko, os diretores do museu
tiveram uma surpresa quando perceberam do que se tratava o material. “Foi
emocionante. Não esperávamos a recepção que tivemos. Aí que nos demos conta de
que nossos filmes tinham um valor extraordinário”, afirmou.
Ao G1, Lindsay Zarwell, que trabalha
no Arquivo de Filmes Steven Spielberg, pertencente ao museu, afirmou que as
gravações de Licco são valiosas para o acervo da instituição e para ajudar a
reconstruir a história dos judeus na Bulgária.
“Filmes assim são poderosos não apenas
por seu significado histórico, mas também porque chamam a atenção para a vida
das pessoas comuns. É importante capturar a história de indivíduos para revelar
a verdade sobre os horrores do Holocausto na esperança de um futuro mais
justo”, diz.
Os filmes de Licco estão sendo
incorporados a um arquivo do museu que inclui entrevistas do diretor Steven
Spielberg com sobreviventes de campos de concentração e por isso foi batizado
com seu nome.
Nazismo, comunismo e vinda ao
Brasil
Licco Haim mudou-se com o pai da
Áustria para a Bulgária aos 18 anos. Entendido de mecânica, prosperou no ramo
automobilístico até sua empresa ser confiscada pelo governo antissemita e ele
ser enviado para o campo de trabalhos forçados, como quase todos os outros
homens judeus.
Graças a uma ponte que aparece nas
filmagens, os familiares conseguiram localizar onde ficava o campo. A estrada
construída pelos prisioneiros existe até hoje. Na Bulgária, esses campos –
inicialmente administrados pelo exército do país e depois pelos alemães – não
eram de extermínio, como em outros países.
“Foi um regime duro, mas a intenção
não era exterminar. Era explorar, mas não matar. Por isso a Bulgária começou e
terminou a guerra com o mesmo número de judeus: cerca de 50 mil”, conta Ilko,
que é búlgaro e veio para o Brasil já adulto, em 1970, por perseguições
políticas do regime comunista.
Depois de ser liberado do campo, Licco
conseguiu recuperar a empresa, mas ela foi tomada novamente em 1948, quando a
Bulgária já era comunista. “Aí ele desistiu e resolveu ir embora de lá”, conta
Salvator.
Após passar pela Suíça e pela França,
Licco, a mulher, a sogra e o filho (que na época tinha dois anos) pediram visto
para vários países. Resolveram vir para o Brasil, onde o documento saiu
primeiro. Entre sair da Bulgária e chegar ao Brasil a família levou seis meses.
Em São Paulo, Licco trabalhou em companhias
de automóveis e depois fundou a própria empresa metalúrgica. Tinha vários
hobbies: escalar, velejar e jogar xadrez eram alguns deles.
Ele e a mulher adoravam morar aqui.
“Ai de quem falasse mal do Brasil”, afirma Salvator. "Eles se consideravam
brasileiros."
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