sexta-feira, 10 de julho de 2015

Esparta moldou os maiores guerreiros antiguidade

Fabio Marton

Aventuras na História, 22/08/2014



Os meninos eram apartados de casa quando faziam 7 anos. O Estado se encarregava de treiná-los como guerreiros. Não qualquer guerreiro. Eles seriam soldados espartanos, o militar mais capacitado, temido, odiado e perfeito da Antiguidade. Para quem assistiu à primeira parte de 300, ou a sequência que chegou aos cinemas este ano, 300 – A Ascensão do Império, os feitos dos esparciatas são bem conhecidos (ainda que com visual de história em quadrinhos). Mas qual era o segredo da cidade para forjar militares tão formidáveis? A origem da tradição talvez resida nas Leis de Licurgo, legislador provavelmente mitológico do século 8 a.C. que deixou um código não escrito determinando praticamente tudo na vida de um espartano.

Antes disso, a cidade era algo bem diferente da que conhecemos. Esparta é central na Ilíada, que narra a Guerra de Troia, por volta de 1200 a.C. Da cidade veio Helena, a esposa do rei Menelau que, ao ser raptada pelo príncipe troiano Páris, deu início ao confronto. “Achados arqueológicos atestam o amor pelo luxo, humor e mesmo frivolidade no período arcaico, que dificilmente relembram os sisudos e militaristas espartanos da imaginação antiga e contemporânea”, diz o historiador Nigel M. Kennell, do Centro de Estudos Helênicos e Mediterrâneos, em Atenas.

Por volta do ano 1000 a.C., a cidade foi conquistada pelos dóricos, que se consideravam descendentes do semideus Héracles (o Hércules romano). Eles estabeleceram uma monarquia dual, com reis de diferentes dinastias. “A dualidade levava a conselhos divididos, rivalidades dinásticas, ansiedades de sucessão, luta faccional”, diz Paul Cartledge, da Universidade de Cambridge. Os reis podiam não se bicar, mas não tinham muito poder. As decisões mais importantes eram tomadas por cinco éforos eleitos e pela gerúsia, formada por 28 cidadãos com mais de 60 anos – sempre com base nas Leis de Licurgo. E o principal tópico da legislação era que o cidadão de Esparta não trabalhava na terra, não praticava o comércio nem ganhava a vida como artesão. A única atividade nobre para um homem era a guerra. E eles passavam a vida treinando para ela.

Eles eram legendários porque, enquanto em outras cidades gregas as pessoas dividiam o tempo entre o treinamento militar e os afazeres cotidianos, a vida do espartano era focada no combate. O estado estava tão impregnado na vida privada que cabia à gerúsia decidir quais bebês deveriam viver (nas outras cidades, que também praticavam o infanticídio, a decisão cabia ao pai, não ao governo). Esparta era tão superior que a cidade não tinha muralhas. Não havia o que temer.

Missão suicida

O primeiro encontro militar entre espartanos e persas se deu na celebrada Batalha das Termópilas, entre 8 e 10 de setembro de 480 a.C., durante a segunda incursão persa à Grécia – a primeira foi repelida pelos atenienses, dez anos antes. Celebrizada, estilizada e romantizada no filme e nos quadrinhos 300, muito do que vem a partir daqui deve ser familiar para quem os viu, menos isto: os 300 espartanos lideravam 7 mil soldados. Somados à tropa de elite do rei Leônidas, havia mais 700 periecos, homens livres, mas sem direitos políticos, e 900 hilotas, escravos espartanos, que atuavam como arqueiros ou armados de fundas. Além de milhares de aliados de cidades como Tebas e Corinto. Periecos e hilotas eram os moradores encarregados das atividades que não cabiam aos esparciatas.

Era uma missão suicida e eles sabiam. Os 300 foram selecionados apenas entre os que já tinham filhos homens para passar seu legado. Do outro lado, havia no mínimo 70 mil persas, talvez até 250 mil, de acordo com estimativas modernas. O historiador mais influente do século 5 a.C., Heródoto, disse que eram 1,7 milhão.

Para frustração dos persas, a superioridade numérica não bastava. Termópilas era uma garganta com meros 100 m de largura. Por mais tropas que houvesse, elas eram forçadas a lutar com uma unidade de cada vez. Atirar flechas, sua tática favorita, era inútil: os espartanos levantavam os escudos, que tinham uma extensão de tecido para desviar flechas, e esperavam a chuva passar. Dienekes, um dos 300, foi informado que as flechas eram suficientes para tapar o sol. Saiu-se com uma das maiores tiradas do humor lacônico: “Melhor assim, combateremos à sombra”.

Homem por homem, os persas não tinham chance contra os espartanos, donos de melhores armaduras, lanças mais longas e escudos que protegiam melhor. Além de tudo, lutavam como ninguém. “Os espartanos usaram o tipo de tática que só um exército treinado e disciplinado poderia contemplar – falsas retiradas seguidas por uma súbita meia-volta e o massacre de seus perseguidores”, diz Carledge. Em três dias, os persas perderam 20 mil soldados, contra 2 mil no lado grego. Os números seriam muito maiores se um traidor grego, Efialtes, não tivesse indicado um caminho pelas montanhas. Num ataque em duas direções, os 300 e outros 1 200 aliados foram, enfim, massacrados.

Comportamento

Em tese uma derrota, a Batalha das Termópilas inspirou os vizinhos a resistir. “O fator moral no comportamento dos espartanos explica o sucesso final dos gregos”, diz Cartledge. O comportamento de um espartano era bastante curioso. Até os 30 anos, ele não tinha uma casa para chamar de sua. Morava com a tropa, em geral em barracos, na periferia da cidade ou em tendas de campanha – arqueólogos nunca encontraram nada parecido com um “quartel-general”, algo esperado para quem nasceu para guerrear. Segundo o historiador Scott Rusch, autor de Sparta at War (sem tradução), a razão é que eles eram apenas jovens cidadãos, ainda que focados no combate. Como não eram soldados, não fazia sentido viver em quartéis.

Em uma Esparta com poucas mulheres, submetidas a humilhações até na hora do casamento e que passavam boa parte do tempo longe dos filhos e dos maridos, a condição feminina era bem distinta se comparada a outras cidades gregas. Elas faziam exercícios ao ar livre, usavam pouca roupa e tinham senso de humor. Um ateniense perguntou a Gero, mulher do general Leônidas, por que as espartanas mandavam nos homens. “Por que somos as únicas que podem gerar homens”, respondeu. Elas podiam ter até casamentos poliândricos, se os maridos concordassem – como a geração de novos guerreiros era a prioridade, casamentos múltiplos tornaram-se um jeito de resolver o problema.


 Guerra fria

A guerra contra os persas uniu as cidades gregas, mas, com o invasor derrotado, restou saber o que fazer da Grécia após a vitória na Batalha de Plateias, em agosto de 479 a.C. A aliança entre Atenas e Esparta era precária. Durante o século 5 a.C., a Grécia se dividiu em dois campos. Ao lado de Atenas, ficaram as cidades democráticas da Liga de Delos. Com Esparta, as oligarquias da Liga do Peloponeso. Sem um inimigo externo, os modos de vida opostos entraram em confronto. Esparta era uma sociedade rigidamente oligárquica e tradicional, que rejeitava o comércio. Atenas era uma vibrante e democrática metrópole de comerciantes. Os espartanos haviam ajudado, por acidente, a instalar a democracia ateniense em 510 a.C., ao removerem o tirano Hípias do poder da cidade. Três anos depois, o novo regime foi instaurado, uma experiência radical e profundamente perturbadora para uma sociedade petreamente ligada à ordem, como Esparta.

As tensões começaram logo depois da guerra, quando os espartanos sugeriram que os atenienses seguissem seu exemplo e não reconstruíssem seus muros. Eles viram isso como uma tentativa de criar uma ameaça constante de forma a dominar a cidade, mantendo-a sob ameaça dos hoplitas espartanos. Sua recusa foi tomada como uma afronta. Em 465 a.C., um grande terremoto atingiu a Lacônia. Sentindo a fraqueza dos seus mestres, os hilotas iniciaram uma grande revolta. Atenas se dispôs a enviar um contingente de 4 mil hoplitas para ajudar seus ainda formalmente aliados. Então ocorreu o primeiro conflito ideológico direto.
“Devem ter sido intensos o choque e a surpresa dos atenienses ao descobrir que os ‘escravos’ hilotas não eram bárbaros, mas gregos com orgulhosas tradições”, afirma Paul Cartledge. Notando a relutância, os espartanos dispensaram seus aliados, o que gelou as relações entre as duas cidades.

Com uma série de episódios de hostilidade entre Atenas e os aliados de Esparta, em 431, um congresso da Liga do Peloponeso foi convocado para decidir pela guerra. De forma atípica, o rei Arquídamo II fez um discurso pedindo por paciência. O éforo Estelenides usou o estilo espartano típico: “Os atenienses são culpados de quebrar a paz, então vamos para a guerra!” A decisão ficou empatada. Estelenides propôs separar os votantes em duas alas. Sendo quem eram, nenhum espartano quis ser visto no lado da paz, e o “sim” ganhou por larga margem. Era o início da Guerra do Peloponeso.

No verão do mesmo ano, os espartanos estavam em frente aos muros que tanto odiavam. Esparta podia ser ainda a melhor força terrestre do mundo, mas não entendia nada de navios. Atenas era uma das maiores potências navais da época. O plano era simplesmente cercar a cidade até os atenienses morrerem de fome ou saírem para enfrentá-los. Nada disso aconteceu: com sua frota livre para fazer comércio, os atenienses simplesmente importaram alimentos.

A Guerra do Peloponeso se estenderia, com períodos de paz precária, por 35 anos, até o espartano Lisandro fazer uma espécie de pacto com o diabo. Buscando auxílio entre os persas, conseguiu que eles providenciassem uma frota naval para Esparta. Ainda que não conseguissem aniquilar os atenienses no mar, os espartanos fizeram um bloqueio naval. Com a fome ameaçando acabar com a cidade, em 404 a.C. Atenas se rendeu. Ao som de flautas tocadas por moças espartanas, os muros foram destruídos, assim como a democracia. No lugar foram colocados 30 tiranos, ditadores que respondiam à cidade vizinha.

O fim de uma era

A hegemonia espartana não duraria muito tempo. Um ano depois, os tiranos foram depostos e a democracia foi restaurada em Atenas. Em 395 a.C., eles estariam de volta ao combate contra Esparta na Guerra de Corinto, que terminou em empate. Mediando a paz, estava ninguém menos que o rei da Pérsia. A forma de guerrear estava mudando, e Esparta já não era mais tudo isso. “O Estado reacionário espartano estava menos pronto que as cidades-estados da época para adotar um número adequado de auxiliares e cavalaria, em grande parte porque sua infantaria era superior”, afirma o historiador militar Victor Davis Hanson, da Universidade Stanford. Mas essa superioridade estava em risco. O terremoto, as revoltas e as guerras haviam cobrado seu preço à população.

Havia apenas 400 esparciatas durante a Batalha de Leuctra, em 371 a.C., um dos muitos conflitos locais que se seguiram à Guerra de Corinto. Espartanos ainda podiam ser fortes, mas eram previsíveis. E o general Epaminondas, líder de Tebas, faria uso disso. Hoplitas colocavam suas melhores forças sempre à direita. Epaminondas formou uma coluna de 50 linhas com suas tropas mais capazes, e posicionou-as à esquerda, de forma a enfrentarem a elite espartana primeiro. Mil soldados morreram só nessa parte do combate. “No período da vida adulta de um homem, a cidade passou de líder indisputável dos gregos para um pequeno jogador na cena local”, diz o historiador Nigel Kennel. Pela primeira vez, os espartanos viram exércitos inimigos em suas fronteiras.

Além disso, um grande personagem entrava em campo. Os macedônios, sob Felipe II (382-336 a.C.), criariam um novo tipo de exército, baseado no uso combinado de infantaria e cavalaria. Esparta acabou deixada de lado por Felipe e seu filho, Alexandre, o Grande. Mas a Liga do Peloponeso foi extinta em 338 a.C., e todos os antigos aliados juntaram-se aos exércitos macedônicos, quando conquistaram a Pérsia.

Com Esparta isolada e acumulando derrotas no século 3 a.C., o rei Cleômenes III, que ascendeu ao trono em 236 a.C., estabeleceu reformas radicais, confiscando e dividindo as terras igualmente, transformando periecos em cidadãos e adotando um exército ao estilo macedônico. Confiante na modernização, começou a conquistar o entorno, a partir da cidade-estado de Argos, a única cidade da região a não se unir à Liga do Peloponeso. A Liga Aqueia, que reunia os ex-aliados de Esparta, reagiu unindo-se à Macedônia. Cleômenes foi derrotado na Batalha de Selásia, em 222 a.C.

Seguiram-se dez anos de vácuo no poder, até que, em 207 a.C., o tirano Nabis executou os membros das duas famílias reais, exilou ou matou os nobres resistentes e libertou os hilotas. De forma ainda mais subversiva, construiu muros em Esparta. Uma guerra internacional foi convocada contra ele, trazendo como aliada a nova potência internacional, Roma.

Em 189 a.C., a Liga Aqueia decidiu pôr fim à independência de Esparta. A cidade foi capturada no ano seguinte e as Leis de Licurgo, revogadas. Incorporada a Roma em 146 a.C., a cidade se tornaria atração turística para romanos ricos que queriam ver os hábitos bárbaros de seus habitantes. Triste fim para os melhores guerreiros da História.

O HOPLITA ESPARTANO - O segredo da vitória

Hoplitas eram soldados armados com lanças de 3 m, chamadas dory, e xiphos, espadas curtas para combate próximo. Eram munidos de um escudo, o hóplon, e uma armadura de bronze, a panóplia. Atuavam em colunas largas, com oito a 12 linhas de soldados, com os mais experientes à direita. A razão disso era que os homens se moviam instintivamente em direção ao escudo de seu parceiro, e os veteranos evitavam que a tropa toda se desviasse. As lanças podiam ser seguradas por baixo ou por cima, permitindo que um soldado das linhas de trás atacasse sobre os ombros dos companheiros. A combinação de armadura e escudo e a coesão da tropa os tornavam quase invulneráveis a um ataque frontal, fosse por flechas, espadas ou lanças.


Todas as cidades-estados gregas usavam hoplitas. O que tornava os espartanos especiais era o fato de serem soldados profissionais e exclusivos, com um espírito de ferocidade e companheirismo militar incutido desde a mais tenra idade, enquanto os outros eram comerciantes e artesãos que ocasionalmente pegavam em armas. Espartanos ou não, hoplitas pagavam pelas próprias armas e armaduras – quem não tivesse dinheiro ficava de fora. No caso de Esparta, era uma desgraça total: significava perder a cidadania e juntar-se aos periecos.

IMPÉRIO DA MODÉSTIA - Esparta não impressionava. As ruínas são exíguas

Os espartanos preferiam se referir às suas terras pelo nome da região, Lacônia ou Lacedemônia. Daí vinha a letra lambda – λ – em seus escudos. De acordo com as lendas gregas, Lacedemon era um filho de Zeus com a ninfa Taigete, que fundou um reino na Península do Peloponeso, uma vasta região que é ligada ao continente por um istmo de 6,3 km de largura. Ele batizou seu país em sua própria homenagem, e a capital, em honra à esposa, Esparta.

A cidade era formada por quatro vilas com uma acrópole central, onde havia o templo de Ártemis Órtia e o dedicado a Atena Calcieco. As ruínas são exíguas. “Não há sinais de edificações de nenhuma natureza, exceto os templos. O que faz muitos suporem que as construções eram de madeira”, diz a historiadora Maria Aparecida de Oliveira Silva, da USP. Até o reinado do tirano Nabis, não havia muros, uma manifestação da confiança que depositavam na ponta de suas lanças. O general ateniense Tucídides (460-395 a.C.) visitou a cidade e escreveu, profeticamente: “Suponha, por exemplo, que a cidade de Esparta se tornasse deserta e que apenas os templos e as fundações dos prédios sobrevivessem. As gerações do futuro achariam difícil acreditar que o lugar foi tão poderoso como representado”.



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