quarta-feira, 8 de julho de 2015

[SGM] Anthony Beevor: Hollywood falsifica a Segunda Guerra Mundial

Juan Fernández

El Periódico, 21/06/2015


Em desespero, como alguém que coloca um desafio final para o destino que o aguarda, Hitler lançou um ataque feroz no final de 1944 sobre as florestas nevadas das Ardenas, na Bélgica, para tentar virar a maré da guerra. Essa batalha, finalmente ganha pelos aliados, provocou níveis de violência jamais vistos na Frente Ocidental. O historiador britânico Antony Beevor, considerado um dos maiores especialistas em Segunda Guerra Mundial, conta agora em detalhes as histórias desta pequena tragédia gigante que matou mais de 160.000 pessoas e colocou em cena os piores instintos desumanos em ambos os lados. Em Ardennes 1944 (crítica), existem bons e maus em todos os lugares.

O senhor escreveu sobre Stalingrado, o desembarque na Normandia, a queda de Berlim... Por que considerou a batalha das Ardenas digna de um livro?

Este combate foi o equivalente no Ocidente ao cerco de Stalingrado. Ambas são as batalhas mais brutais que aconteceram na guerra. Pelas condições meteorológicas nas quais se desenvolveram, no inverno mais cruel, e pelo grau de atrocidades que se cometeram. As Ardenas trouxe ao Ocidente a crueldade que havia existido no Leste Europeu. De fato, a Waffen SS colocou em prática as técnicas de terror que havia experimentado em solo soviético.

A que se deve tal loucura?

Diante da superioridade aérea aliada, Hitler pensou que sua única cartada seria usar o terror como arma de guerra para espalhar o pânico entre os soldados e desmoralizar o inimigo. Joachim Peiper, o coronel que dirigiu a primeira divisão Panzer que avançou sobre a Bélgica, se dedicou a fuzilar civis desde o primeiro minuto. Antes, na frente oriental, havia comandado o Batalhão Lança-Chamas, conhecido porque ateava fogo nas vilas pelas quais passava. Esse espírito sanguinário nunca havíamos visto na frente ocidental.

Surtiu efeito?

Não, porque Hitler voltou a cometer um de seus tradicionais erros de cálculo. Desta vez, subestimou os soldados norte-americanos. Ainda que muitos tenham fugido, outros resistiram em seus postos e bloquearam o avanço alemão, permitindo a Eisenhower trazer reforços e começar a reconquista. Hitler acreditava que o pânico causado pela crueldade extrema poderia derrubar o inimigo, mas às vezes o terror tem o efeito contrário e estimula a resistência.

Estrategicamente, a jogada de Hitler tinha sentido?

Nenhum. De fato, seus generais se posicionaram contra. O ataque das Ardenas foi uma fantasia construída sobre um mapa. O problema de Hitler foi que nunca esteve na frente de batalha. Dirigia a guerra movendo peças sobre um tabuleiro em seu bunker, como se fosse um jogo. Do ponto de vista militar, suas decisões eram desastrosas e isto o sabiam os Aliados. Por isso, cancelaram a Operação Foxley, destinada a assassiná-lo [1]. Pensaram que ganhariam a guerra mais rápido tendo Hitler à frente do exército alemão.

Sua investigação põe em foco um aspecto que se fala pouco: nas Ardenas se cometeram crimes em ambos os lados.

Durante a reconquista, os americanos conduziram fuzilamentos de prisioneiros e crimes comuns que logo foram deixados de lado. Respondiam à crueldade usada pelos alemães, mas não tinham justificativa. Se matava gente por vingança e outras vezes por conveniência, para não ter que transportar feridos. Nunca saberemos quem efetuou mais fuzilamentos indiscriminados, se os alemães ou os americanos, mas isto ocorreu em ambos os lados.

Por que os EUA nunca reconheceram esses crimes?

Nesse país se cultivou o mito de uma participação limpa e bondosa na Segunda Guerra Mundial. Teve a ver com o impacto que causou a experiência do Vietnã, que foi reconhecida como uma guerra moralmente suja. Isto potencializou a mentalidade americana no desejo de ver a Europa como uma guerra boa. Mas, por que uma guerra boa? Não creio que elas existam.

Não é porque ela foi libertada pelos Aliados?

Seu objetivo era louvável, sem dúvida. Tratava-se de libertar a Europa da ocupação nazista e, neste sentido, foi uma boa missão. Mas para alcançá-la, seus soldados cometeram uma variedade de atos abomináveis que não se deseja reconhecer, nem se quer investigar. É uma pena que os historiadores americanos sejam guiados por esse mito e não tenham se atrevido a se aventurar nas zonas mais sombrias da participação de seu exército na guerra, que não era.

Menos ainda o tem feito as produções de guerra de Hollywood.

Os filmes de Hollywood e a realidade da guerra são completamente incompatíveis. O cinema americano somente busca contar histórias a partir de arquétipos sem matizes. O herói, o covarde, o mau, o bom... Mas seu respeito à verdade dos fato é nulo.

É impossível encontrar um filme de guerra que siga rigorosamente os fatos em termos históricos?

Poderia numerar alguns títulos aceitáveis: A Batalha da Argélia, produção ítalo-argelina de 1966, e Cartas de Iwo Jima, de Clint Eastwood. Mas Hollywood nunca este interessada em fazer filmes sobre a Segunda Guerra Mundial que fossem fieis à realidade. O curioso é essa indústria detectou há tempos uma demanda do público para ser entretido e educado e, para atendê-lo, dedicou-se a vender seus filmes como se estivessem baseados em fatos reais, quando na verdade não é bem assim. Hollywood falsifica a história descaradamente.

Mas o público os toma como verdadeiros.

Vivemos numa era pós-literária. Agora, a imagem em movimento é a que reina e o conhecimento sobre nosso passado é adquirido, majoritariamente, através do cinema e TV. Hollywood emprega o argumento falso de que com estes filmes faz um trabalho didático, mas não está certo. O terível é a capacidade das pessoas em acreditar em qualquer coisa. Quando saiu O Código da Vinci, uma agência de pesquisas fez um trabalho na Grã-Bretanha e descobriu que metade do país acreditava firmemente que a história do livro era real.

Imagine quando saiu o filme...

Nunca esquecerei o que ouvi em filmes. Minha mulher e eu resistimos a ver a adaptação cinematográfica do livro, mas finalmente aceitamos acompanhar nossa filha. Recordo que do nosso lado havia um casal e, ao acabar o filme, o rapaz se levantou e disse para sua acompanhante: “A verdade é que te faz pensar.” Eu queria gritar. Como historiador, tudo isso é muito deprimente.

Seus livros tentam combinar o relato dos acontecimentos com a narrativa de testemunhas humanas. É a melhor maneira de contar história?

Creio que sim, cobrindo todos os aspectos. Em meu caso, tendo sido romancista antes de ser historiador me influenciou na hora de construir meus livros. Fico satisfeito que os relatos sejam visuais, que o leitor possa imaginar os cenários. Somente assim pode se tornar compreensível às gerações mais jovens, nascidas na era pós-militar, os horrores de uma guerra que teve lugar aqui mesmo, há apenas 70 anos.

Alguns detalhes são especialmente sangrentos e duros. Onde é a linha do que pode ser contado e o que é melhor ser mantido em segredo?

É muito difícil. No meu livro sobre a queda de Berlim levou muito em conta esse detalhe porque houve crueldades que gostaria de contar, como suicídios de crianças e mulheres e estupros selvagens que podiam ser considerados pornografia pura. Por isso, procuro contar com a opinião de outras pessoas. Minha principal conselheira é minha esposa, que lê primeiro o texto que escrevo.

A Batalha das Ardenas contém alguma reflexão útil para a atualidade?

Na Europa existe a tendência a crer que somente a interação na União Europeia pode nos livrar de outra guerra. Creio que não está certo. O único meio que nos previne de outra guerra é a democracia, porque um regime democrático nunca lutará contra outro igual. Mas forçar a integração pode ter o efeito contrário. O renascimento do nacionalismo verificado ultimamente em países como França, Finlândia ou Hungria o demonstra claramente. De qualquer forma, a Europa de 1944 e a de agora, felizmente, não tem nada a ver uma com a outra.

Nota:

[1] Operação Foxley foi um plano de assassinato de Adolf Hitler idealizado em 1944 pelo SOE (Special Operations Executive) britânico mas nunca levado adiante. Historiadores acreditam que o atentado seria realizado entre 13-14 de julho de 1944, durante uma das visitas de Hitler à Berghof, sua residência e quartel-general em Obersalzberg,Berchtesgaden, nos Alpes Bávaros, sul da Alemanha.



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