A
palavra “medieval” é frequentemente tratada como sinônimo de depravação,
ilegalidade e brutalidade. Em particular, as ações recentes do Estado Islâmico
(EI) e seu tratamento de prisioneiros têm sido chamadas de “medievais” por
jornalistas, comentaristas e blogueiros. Mas por que nós fazemos isso e é
justo?
O
uso de medieval desta forma tem sido extensamente discutido, e não é diferente
de orientalismo. Isto é, a criação de um “outro” para contrastar a identidade
de alguém (o moderno versus o medieval, ou “Ocidente” versus “Oriente”) e, por
meio do contraste, celebrar nosso progresso observado ou diferença de um modo
que é frequentemente também exótico. Como Clare Monagle e Louise D´Arcens
disseram, “Quando comentaristas e políticos descrevem o Estado Islâmico como
“medieval”, eles estão colocando a organização oportunamente fora da
modernidade, na esfera da irracionalidade.” É um ato de distanciamento, uma
separação do “nós” do “eles”, que os remove de nossa atual definição de
humanidade e sociedade, e nos exime de qualquer tipo de associação com suas
ações.
A
segregação de um grupo ou um período não é, de forma alguma, um fenômeno
recente; bárbaro, independentemente de sua origem ser ou não uma piada às
custas de oradores de língua estrangeira (bar-bar-bar), tem sido usado
detrativamente em sânscrito, grego, latim e inglês para distanciar uma
comunidade de seus vizinhos e, para os anglo-saxões, wealh significa tanto um
estrangeiro (agora “galês”) quanto “escravo”. Reciprocamente, como Roberta
Frank disse:
Homens
letrados medievais, como suas contrapartes modernas, podiam algumas vezes ser
mais ansiosos para recuperar os ritos coloridos e crenças populares frondosas
de seus ancestrais pagãos.
Este
fenômeno está encapsulado no rito místico de “sangrando como águia”[1], a morte
ritualista de um inimigo partindo suas costelas e dispondo-as como se
parecessem as asas de uma águia. Os reis ingleses Ælla[2] e Edmund supostamente
foram vítimas, entre outros. O mito existe desde o século XII quando um
reavivamento antiquário na Europa setentrional ocidental popularizou a lenda
dos Vikings selvagens. Foi neste ponto que mito do guerreiro nórdico também se
estabeleceu. Apesar de aparecer em várias fontes como o Gesta Danorum de
Saxo[3] e as sagas de Ragnar Loobrok, o “sangrando como águia” é provavelmente
uma má interpretação de uma metáfora poética. Apesar da falta de evidência para
apoiá-lo, o mito persiste desde o século XII até hoje, em grande parte porque
ele embeleza tão perfeitamente nossa percepção daquela época como violenta,
ilegal e desnecessariamente brutal.
Enquanto
o “sangrando como águia” pode ter sido um mito, a tortura certamente foi um
fato do período medieval, apesar de sua legalidade e aplicação variar
grandemente através da Europa. Por exemplo, o Crônica Anglo-Saxã descreve os
barões rebeldes de Estevão no século XII torturando pessoas por dinheiro, mas a
lei comum inglesa no período medieval tardio tornou ilegal maltratar um
prisioneiro antes que ele fosse considerado culpado.
Até
o século XIII, a tortura foi usada pelo Estado e pela Igreja na perseguição da
justiça: provação por fogo ou por água sob a supervisão de um padre foi usada
para determinar a culpa. A extração da prova por provação foi então substituída
pelo julgamento por júri. Sob este sistema, a tortura foi tornada ilegal porque
ela tornou-se desnecessária. A pena de morte poderia ser aplicada sem a
necessidade de uma evidência confessional que a tortura poderia fornecer.
Enquanto
era ilegal na Inglaterra, ela ainda era usada no continente como um meio de
extrair prova. Algumas vezes, ela objetivava seguir o modelo clássico nos
aspectos práticos assim como ideologia: Aristóteles acreditava que confissões
conseguidas por tortura não eram confiáveis – compreensivelmente – e assim muito
frequentemente o objetivo era interromper a tortura antes que as confissões
fossem feitas, ou se aquilo não fosse possível, permitir à vítima recuperar-se
antes de reconfessar. Devido à sua ilegalidade na Inglaterra, Eduardo II foi
muito resistente às ordens papais para a investigação dos Cavaleiros Templários
por heresia e no final eles foram torturados de acordo com a “lei eclesiástica”
ao invés da lei inglesa. Uma vez considerados culpados, eles foram queimados
vivos como hereges.
O
fogo foi usado de várias formas, queimando os pés, ou aquecendo botas de ferro
ou dispositivos tais como barras para serem seguradas. Outros métodos medievais
de tortura incluíam posições desconfortáveis – um método aprovado em 2003 por
Donald Rumsfeld – e esfolamento, que foi comumente associado a mártires como
São Bartolomeu (o santo patrono dos produtores de pergaminho, encadernadores e
outros profissionais que dependem da remoção da pele da carne). Exibições
públicas de tortura e punição sendo exigidas também eram comuns, mas não eram
apresentações terríveis destinadas a excitar e horrorizar: Sean McGlynn sugeriu
que elas agiam como “garantia que a justiça estava sendo feita para proteger a
sociedade”.
A
tortura foi certamente difundida ao longo do mundo medieval. Seu uso era
regulado pela Igreja e lei estatal como um meio de demonstrar culpa, de
determinar a culpa e de forçar a punição, mas sua legalidade e aplicação
mudavam dependendo de vários fatores incluindo país, data, Igreja, Estado,
ideologia e contexto político. Não havia nenhum sistema unificado de tortura
medieval: para alguns era abominável; para outros contra a Igreja e para outros
ainda era uma ferramenta a ser usada pela Igreja. Ela tinha aplicações legais,
eclesiásticas, morais e mercenárias.
Nem
a tortura ficou restrita ao período medieval. Os gregos e romanos usaram a
tortura, e o início do período moderno estava cheio de provações: torturas,
caça às bruxas, afogamento. Mas é o período medieval o mais associado com isso
porque ele se encaixa com nossa visão daquele tempo como cruel e ilegal.
Apesar
da realidade da tortura medieval, comparações com o EI não são feitas para
serem etimologicamente equivalentes. Ao invés disso, eles estão evocando o mito
unidimensional do medievalismo: de guerreiros selvagens, bárbaros e sangrando
como águia, um mito que nos torna civilizados e modernos, totalmente absolvidos
de qualquer conexão com estas ações.
Nota:
[1]
Blood-Eagling em inglês.
[2]
Æ, æ é uma letra vogal que deriva de uma ligadura de a com e, mas que hoje é
considerada uma letra por si só no dinamarquês, feroês, islandês e norueguês.
Nas línguas em que é usado atualmente, o æ tem os seguintes sons:
· Em
dinamarquês, possui vários sons dependendo do contexto fonêmico. Entre os sons
que pode possuir, estão [ɛ], [æ] (antes
de r) e [ɑ] (depois de
r)
· Em faroês,
possui o som [ɛa] quando
longo e [a] quando curto.
· Em islandês,
possui o som [ai]
· Em norueguês,
possui o som de [æ]
· Em javanês,
possui o som de [ui]
· Em latim
existem várias pronúncias possíveis. Na pronúncia eclesiástica, æ é pronunciado
como "é", por exemplo, se pronuncia Cæsar (César) como
"Tchésar".
[3]
Gesta Danorum é um livro do século XII sobre a história de autoria do
historiador medieval Saxo Grammaticus (literalmente "Saxão, o
Gramático"). Trata-se da obra literária mais ambiciosa do período medieval
na Dinamarca, e é até hoje uma fonte essencial para a sua história. Também é um
dos documentos escritos mais antigos sobre a história da Estônia e da Letônia.
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