quinta-feira, 13 de agosto de 2015

O Moderno e o Medieval

Kate Wiles




A palavra “medieval” é frequentemente tratada como sinônimo de depravação, ilegalidade e brutalidade. Em particular, as ações recentes do Estado Islâmico (EI) e seu tratamento de prisioneiros têm sido chamadas de “medievais” por jornalistas, comentaristas e blogueiros. Mas por que nós fazemos isso e é justo?

O uso de medieval desta forma tem sido extensamente discutido, e não é diferente de orientalismo. Isto é, a criação de um “outro” para contrastar a identidade de alguém (o moderno versus o medieval, ou “Ocidente” versus “Oriente”) e, por meio do contraste, celebrar nosso progresso observado ou diferença de um modo que é frequentemente também exótico. Como Clare Monagle e Louise D´Arcens disseram, “Quando comentaristas e políticos descrevem o Estado Islâmico como “medieval”, eles estão colocando a organização oportunamente fora da modernidade, na esfera da irracionalidade.” É um ato de distanciamento, uma separação do “nós” do “eles”, que os remove de nossa atual definição de humanidade e sociedade, e nos exime de qualquer tipo de associação com suas ações.

A segregação de um grupo ou um período não é, de forma alguma, um fenômeno recente; bárbaro, independentemente de sua origem ser ou não uma piada às custas de oradores de língua estrangeira (bar-bar-bar), tem sido usado detrativamente em sânscrito, grego, latim e inglês para distanciar uma comunidade de seus vizinhos e, para os anglo-saxões, wealh significa tanto um estrangeiro (agora “galês”) quanto “escravo”. Reciprocamente, como Roberta Frank disse:

Homens letrados medievais, como suas contrapartes modernas, podiam algumas vezes ser mais ansiosos para recuperar os ritos coloridos e crenças populares frondosas de seus ancestrais pagãos.

Este fenômeno está encapsulado no rito místico de “sangrando como águia”[1], a morte ritualista de um inimigo partindo suas costelas e dispondo-as como se parecessem as asas de uma águia. Os reis ingleses Ælla[2] e Edmund supostamente foram vítimas, entre outros. O mito existe desde o século XII quando um reavivamento antiquário na Europa setentrional ocidental popularizou a lenda dos Vikings selvagens. Foi neste ponto que mito do guerreiro nórdico também se estabeleceu. Apesar de aparecer em várias fontes como o Gesta Danorum de Saxo[3] e as sagas de Ragnar Loobrok, o “sangrando como águia” é provavelmente uma má interpretação de uma metáfora poética. Apesar da falta de evidência para apoiá-lo, o mito persiste desde o século XII até hoje, em grande parte porque ele embeleza tão perfeitamente nossa percepção daquela época como violenta, ilegal e desnecessariamente brutal.

Enquanto o “sangrando como águia” pode ter sido um mito, a tortura certamente foi um fato do período medieval, apesar de sua legalidade e aplicação variar grandemente através da Europa. Por exemplo, o Crônica Anglo-Saxã descreve os barões rebeldes de Estevão no século XII torturando pessoas por dinheiro, mas a lei comum inglesa no período medieval tardio tornou ilegal maltratar um prisioneiro antes que ele fosse considerado culpado.

Até o século XIII, a tortura foi usada pelo Estado e pela Igreja na perseguição da justiça: provação por fogo ou por água sob a supervisão de um padre foi usada para determinar a culpa. A extração da prova por provação foi então substituída pelo julgamento por júri. Sob este sistema, a tortura foi tornada ilegal porque ela tornou-se desnecessária. A pena de morte poderia ser aplicada sem a necessidade de uma evidência confessional que a tortura poderia fornecer.

Enquanto era ilegal na Inglaterra, ela ainda era usada no continente como um meio de extrair prova. Algumas vezes, ela objetivava seguir o modelo clássico nos aspectos práticos assim como ideologia: Aristóteles acreditava que confissões conseguidas por tortura não eram confiáveis – compreensivelmente – e assim muito frequentemente o objetivo era interromper a tortura antes que as confissões fossem feitas, ou se aquilo não fosse possível, permitir à vítima recuperar-se antes de reconfessar. Devido à sua ilegalidade na Inglaterra, Eduardo II foi muito resistente às ordens papais para a investigação dos Cavaleiros Templários por heresia e no final eles foram torturados de acordo com a “lei eclesiástica” ao invés da lei inglesa. Uma vez considerados culpados, eles foram queimados vivos como hereges.

O fogo foi usado de várias formas, queimando os pés, ou aquecendo botas de ferro ou dispositivos tais como barras para serem seguradas. Outros métodos medievais de tortura incluíam posições desconfortáveis – um método aprovado em 2003 por Donald Rumsfeld – e esfolamento, que foi comumente associado a mártires como São Bartolomeu (o santo patrono dos produtores de pergaminho, encadernadores e outros profissionais que dependem da remoção da pele da carne). Exibições públicas de tortura e punição sendo exigidas também eram comuns, mas não eram apresentações terríveis destinadas a excitar e horrorizar: Sean McGlynn sugeriu que elas agiam como “garantia que a justiça estava sendo feita para proteger a sociedade”.

A tortura foi certamente difundida ao longo do mundo medieval. Seu uso era regulado pela Igreja e lei estatal como um meio de demonstrar culpa, de determinar a culpa e de forçar a punição, mas sua legalidade e aplicação mudavam dependendo de vários fatores incluindo país, data, Igreja, Estado, ideologia e contexto político. Não havia nenhum sistema unificado de tortura medieval: para alguns era abominável; para outros contra a Igreja e para outros ainda era uma ferramenta a ser usada pela Igreja. Ela tinha aplicações legais, eclesiásticas, morais e mercenárias.

Nem a tortura ficou restrita ao período medieval. Os gregos e romanos usaram a tortura, e o início do período moderno estava cheio de provações: torturas, caça às bruxas, afogamento. Mas é o período medieval o mais associado com isso porque ele se encaixa com nossa visão daquele tempo como cruel e ilegal.

Apesar da realidade da tortura medieval, comparações com o EI não são feitas para serem etimologicamente equivalentes. Ao invés disso, eles estão evocando o mito unidimensional do medievalismo: de guerreiros selvagens, bárbaros e sangrando como águia, um mito que nos torna civilizados e modernos, totalmente absolvidos de qualquer conexão com estas ações.

Nota:

[1] Blood-Eagling em inglês.

[2] Æ, æ é uma letra vogal que deriva de uma ligadura de a com e, mas que hoje é considerada uma letra por si só no dinamarquês, feroês, islandês e norueguês. Nas línguas em que é usado atualmente, o æ tem os seguintes sons:
·       Em dinamarquês, possui vários sons dependendo do contexto fonêmico. Entre os sons que pode possuir, estão [ɛ], [æ] (antes de r) e [ɑ] (depois de r)
·       Em faroês, possui o som [ɛa] quando longo e [a] quando curto.
·       Em islandês, possui o som [ai]
·       Em norueguês, possui o som de [æ]
·       Em javanês, possui o som de [ui]
·       Em latim existem várias pronúncias possíveis. Na pronúncia eclesiástica, æ é pronunciado como "é", por exemplo, se pronuncia Cæsar (César) como "Tchésar".
[3] Gesta Danorum é um livro do século XII sobre a história de autoria do historiador medieval Saxo Grammaticus (literalmente "Saxão, o Gramático"). Trata-se da obra literária mais ambiciosa do período medieval na Dinamarca, e é até hoje uma fonte essencial para a sua história. Também é um dos documentos escritos mais antigos sobre a história da Estônia e da Letônia.



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