Carla Aranha
Era o fim. A fumaça e o fogo se espalharam pelo
campo de batalha, e logo se misturou no ar um cheiro de suor, sangue e corpos
queimados. Os cadáveres de 20 mil soldados romanos, dos 30 mil que haviam
participado da luta, se espalhavam inertes pelo chão. O imperador Valenciano,
que pessoalmente comandara o embate, também desapareceu naquele dia, 9 de
agosto de 378, sem deixar vestígios. De acordo com relatos de sobreviventes,
ele foi queimado vivo pelo inimigo. Os godos tinham vencido de maneira
espetacular. O episódio, um divisor de água na história de Roma, ficou
imortalizado como a Batalha de Adrianópolis (que aconteceu na região da atual
Turquia). Nunca mais o mundo seria o mesmo. Cem anos depois, entraria em
colapso a maior força política e militar de todos os tempos, o Império Romano
do Ocidente – seu território se estendia da Itália ao norte da África e ao
Oriente Médio.
Alguns anos antes da batalha, os godos já haviam penetrado na Turquia,
saqueando cidades e provocando o caos. No ano de 378, pretendiam derrubar as
portas de Adrianópolis, próxima a Constantinopla (atual Istambul), a capital do
Império Romano do Oriente. Esse braço da administração imperial havia sido
criado em 330 para facilitar o controle dos territórios na Europa Oriental, no
norte da África, Turquia, Síria e Iraque.
Os romanos acreditaram que, como no passado, seria fácil derrotar os
bárbaros. Então, como sempre, extrairiam um tratado de paz e teriam mais um
reino-cliente, que compraria mercadorias fabricadas em Roma e cederiam guerreiros
para lutar nas legiões quando fosse necessário. Mas eles não contavam que os
godos não estariam sozinhos. Ao lado deles, para surpresa do imperador
Valenciano, combatiam os temíveis hunos e os alanos.
Por trás da estrondosa vitória de 378 houve mais, entretanto,
do que o fator surpresa. O desenvolvimento social, econômico e social das
tribos bárbaras e sua convivência durante séculos com os costumes romanos
explicariam, em grande parte, o sucesso na Batalha de Adrianópolis e nas
campanhas seguintes. Em suma, causas externas, e não internas, seriam os
principais responsáveis pelo desmoronamento da grande potência. Essa visão,
sustentada pelo prestigiado historiador inglês Peter Heather, da Universidade
de Oxford, contradiz as antigas versões sobre a queda do Império Romano. Sim,
tudo aquilo que você aprendeu. Corrupção, colapso da economia e crise política?
Esqueça, afirma Heather em seu livro The Fall of the Roman Empire – A New
History of Rome and the Barbarian (“A Queda do Império Romano – Uma Nova
História de Roma e dos Bárbaros”, sem tradução).
Para Heather, a economia romana estava bem, a corrupção era algo
corriqueiro (e não era mais acentuada no final do império do que em seu início)
e as trocas de imperadores, que realmente existiram nos séculos 4 e 5, não
seriam motivos suficientes para explicar o colapso de Roma, fato que permanece
como um dos maiores mistérios da Antiguidade. Afinal, perguntam-se até hoje os
historiadores, como foi possível que rudimentares tribos bárbaras invadissem
Roma? A resposta, para Heather, está em dois pilares: as migrações de grandes
grupos bárbaros na Europa Oriental a partir do século 3 e a crescente
sofisticação política, econômica e social de povos como os godos e vândalos.
A tese, como seria de se esperar, suscita polêmicas. Para Richard
Saller, historiador da Universidade de Chicago e um dos maiores especialistas
do mundo em Roma antiga, o raciocínio de Heather não é muito convincente. “A
queda do Império Romano é uma questão muito grande e complicada para ter só uma
explicação. Se a economia e o poderio militar de Roma estivessem crescendo, os
ataques militares dos inimigos poderiam ter sido repelidos”, analisa. Heather,
por sua vez, sustenta que os povos bárbaros mudaram, adotando uma organização
política e uma nova inteligência que levaram a batalhas como a de Adrianópolis.
“Além disso, não é possível afirmar que a economia de Roma estivesse mal. Foram
tomadas, isso sim, medidas emergenciais para que mais legiões pudessem ser
financiadas para vigiar as fronteiras no Oriente, então ameaçadas”, diz
Heather.
Tudo havia começado, segundo o historiador inglês, com os bem-sucedidos
ataques persas às forças romanas estacionadas no Oriente, no século 3. Pela
primeira vez, os árabes representavam um obstáculo ao poderio do império.
Segundo Heather, a origem do problema estava na própria dinâmica da hegemonia
imperial. As repetidas vitórias das legiões na região causaram uma crise de
poder nas lideranças do atual Irã, até que, no final do século 3, uma nova
dinastia emergiu, os sassarianos. Eles marcharam sobre a Mesopotâmia (na região
do atual Iraque) com muito mais eficiência do que seus antecessores, os
arsacid. “O aparecimento de um super-rival foi um grande choque”, diz Heather
em seu livro. E Roma precisava reagir.
Tempos de inflação
O grande desafio era mandar mais tropas para o Oriente, mas sem se
descuidar das fronteiras da Europa, que desde o século 2 sofria ataques dos
bárbaros. Mas era preciso criar recursos para financiar os reforços militares
que protegeriam a região da Mesopotâmia. A solução foi desvalorizar a moeda,
para ter mais dinheiro – aparecia aí, pela primeira vez de que se tem notícia,
a inflação – e aumentar os impostos. Outra medida foi confiscar os recursos
gerados pelas cidades – antes, os fundos podiam ser administrados pelos
governadores locais. Os ajustes foram eficazes: em 298, os sassarianos
finalmente foram derrotados.
E a economia não ficou em frangalhos depois disso? Para os adeptos da
tese de que Roma caiu por causa de reveses econômicos e políticos, sim. Um dos
defensores dessa interpretação é o historiador italiano Giovanni Cipriani, da
Universidade de Lecce. “Criou-se a inflação, os camponeses ficaram mais pobres
e antigos aliados de Roma, como os francos, não tinham mais tanto interesse em defender
o império”, afirma Cipriani.
Segundo Heather, não foi bem assim. As províncias
romanas, como as atuais França e Espanha, viviam na época um boom, com uma
agricultura florescente e importações crescentes de artigos romanos, como
cerâmicas, vidros, jóias. Por isso, a vida econômica do império não teria
sofrido uma mudança tão grande a ponto de minar suas estruturas.
Para Heather, a grande questão é que, no século 4, a Europa vivia uma
revolução sem precedentes. Grandes migrações ocorriam no continente, motivadas
pelos avanços dos temidos hunos, uma tribo nômade originária da Mongólia que
passou a procurar novas terras na Europa Central, expulsando os grupos de ali
viviam. Ninguém sabe ao certo por que os hunos resolveram deixar sua terra
natal. Uma hipótese é que eles tenham sido atraídos pela riqueza das vilas
próximas às fronteiras do Império Romano, que se beneficiavam da necessidade de
vender alimentos para as tropas romanas e fornecer serviços em geral.
Por onde passavam, os hunos espalhavam o terror. Eles faziam uma
guerra-relâmpago, matando o maior número possível de pessoas em um curto espaço
de tempo. Não contentes, saqueavam tudo o que viam pela frente. À primeira
notícia de que os hunos estavam se aproximando, os povos em seu caminho fugiam
apavorados. “Os alanos escaparam, empurrando os godos, que foram cair em cima
dos romanos”, resumiu uma fonte da época, o bispo Ambrósio, de Milão.
Algumas vezes, as lideranças mais fortes desses grupos faziam alianças
com os hunos, como na Batalha de Adrianópolis. De qualquer forma, o contato com
os mongóis, se por um lado trazia medo, por outro ensinou às tribos européias
novas táticas de guerra. E, para a felicidade delas, a necessidade de dobrar os
resistentes persas tinha deixado as fronteiras da Europa menos guarnecidas. O
Império Romano como um todo havia se voltado mais para o Oriente do que para o
Ocidente. Os generais na Europa se viram sem liderança, e teve início uma
anarquia militar que durou 50 anos, até meados do século 4. “Mas observa-se que,
mais uma vez, tratava-se de problemas de ordem externa, e não interna”, diz
Heather.
Bárbaros sofisticados
Para o azar dos romanos, nos últimos dois séculos os bárbaros haviam se
sofisticado, e muito – para os historiadores, incluindo Heather, isso aconteceu
em grande parte devido a uma convivência de séculos com Roma. Eles ainda eram
analfabetos, mas já tinham lideranças fortes e certa coesão política – no
passado, as tribos dificilmente se entediam entre si. No plano econômico,
haviam descoberto novas técnicas agrícolas que aumentaram a produtividade,
gerando riqueza. Além disso, as trocas comerciais com o Império Romano
trouxeram ainda mais recursos. Uma elite se formava, pela primeira vez. E ela
estava sedenta de autonomia política e independência total em relação às forças
romanas.
“Os imperadores resistiram durante dois ou três séculos, mas depois não
conseguiram mais segurar os bárbaros”, diz Heather. Nem todos especialistas
concordam com essa teoria. Para Richard Saller, da Universidade de Chicago, se
a economia do Império Romano estivesse em melhor estado – sem inflação e
pesados impostos –, talvez houvesse uma possibilidade mais concreta de
contra-atacar. “Mas, no século 5, já estava decretado o destino de Roma”,
afirma.
Para atingir seu objetivo, as tribos partiram para a guerra, e para
valer, freqüentemente fazendo alianças entre si – outro fato inédito. Os piores
ataques foram comandados por líderes vândalos, alanos, suevos e godos, entre os
anos de 405 e 408. Eles invadiram as fronteiras junto ao rio Danúbio e
conquistaram a Espanha, a França e a Bélgica, então províncias romanas. Os
hunos também não deram trégua, obrigando as legiões a combatê-los
sistematicamente na região das atuais Áustria, Croácia, Hungria e Eslovênia.
Nesse cenário, um grupo de godos conseguiu invadir Roma em agosto de 410,
saqueando-a completamente por três dias. “O mundo romano estava abalado em suas
fundações”, escreve Heather em sua obra.
Segundo o historiador, mesmo que quisessem as províncias não poderiam
revidar. Novamente, acredita Heather, o problema era gerado muito mais fora do
que dentro dos limites do Império Romano. Essa tese é controversa. Para outros
estudiosos do tema, os povos dominados, por estarem descontentes com a política
imperial, não resistiram tanto assim aos ataques. “Foi tudo muito rápido. E
posso dizer que na França, por exemplo, já havia um desejo por autonomia, tanto
é que alguns anos mais tarde se formaram os feudos e as monarquias locais”, diz
o italiano Cipriani.
O Império Romano dava seu último suspiro no Ocidente. No Oriente, com
sua capital na Turquia, sobreviveria até 1453, quando os turcos otomanos tomam
Constantinopla. Emblematicamente, foi um líder meio huno, meio germânico,
Odoacro, que em 4 de setembro de 476 colocou o Império Romano de joelhos. Ele
obrigou o imperador Rômulo Augusto a renunciar, com consentimento da
administração da outra ponta do império, em Constantinopla, e passou a ser o
governador da Itália. Os romanos deixam de ser os donos do Ocidente. Foi o fim
da maior civilização que já havia existido. “E, com certeza, não por decadência
dos romanos”, afirma Heather. “Mas sim graças a uma enorme força exterior que
era impossível combater.”
A vida em Roma do século 5
Como uma grande metrópole de hoje, a Roma do século 5 era uma
cidade pulsante, com 1 milhão de habitantes, repleta de palácios, templos e
locais de diversão. Depois de um dia de trabalho, um romano típico ia dar uma
espiada em uma das lutas no Coliseu. Até o final do Império Romano, no ano 476,
o anfiteatro funcionou a todo vapor. Inaugurado por volta do ano 80 a.C.,
comportava até 55 mil espectadores. Calcula-se que 200 mil gladiadores tenham
morrido ali. O Coliseu ficava no coração da cidade, ao lado do Fórum, onde se
desenrolava a vida política, econômica e jurídica de Roma. O ritmo agitado do
Fórum tinha como contrapartida as termas, onde a elite, formada por proprietários
de terra e membros do governo, iam espairecer. A primeira delas, a de Caracala,
foi construída no ano 217, e a de Diocleciano, em 298. Esses prédios
grandiosos, muitas vezes com decoração primorosa, abrigavam não só o local para
banhos, mas também bibliotecas, bares, barbeiros, ginásios para a prática de
esportes e até galerias de arte. Depois de ler, conversar e se exercitar nas
termas, o cidadão romano contava com o conforto de ter água corrente em casa –
um luxo raro em outras partes do mundo. Mesmo no Brasil, no século 18, os
moradores do Rio de Janeiro, então capital do país, tinham de percorrer longos
caminhos para buscar água nos rios e fontes. Em Roma, já no ano 312 a.C., era
inaugurado o primeiro aqueduto, o Aqua Appia, que levava água de fontes
naturais de colinas próximas até a cidade. A vida religiosa também era
importante em Roma, e os imperadores não hesitavam em mandar erguer templos. O
mais famoso deles era o Panteão, com suas colunas de 43 metros de altura e o
piso de mármore colorido. Inaugurado no ano 118 pelo imperador Adriano, o
edifício sobreviveu aos ataques dos bárbaros e aos estragos do tempo. Os
governantes também não pensaram duas vezes em fazer estradas pavimentadas por
onde passavam as tropas. A primeira delas, aberta em 310 a.C., foi a Via Appia,
onde até hoje estão as marcas das bigas romanas. Era por lá que as legiões
entravam na cidade depois de uma batalha vitoriosa. Como a Via Appia, outros
testemunhos da Roma antiga, como o Coliseu, as termas de Caracala, o Panteão e
partes do Fórum, todos ainda de pé, ajudam a contar uma história que, quase 2
mil anos depois, ainda é fascinante.
Quem eram os bárbaros?
Os antigos romanos consideravam bárbaros todos os povos que
viviam fora do limite do império. “Eles não sabiam ler, escrever e levavam uma
vida simples”, diz Peter Heather. Havia vários desses grupos espalhados pela
Europa, como os suevos, vândalos, ostrogodos, visigodos, francos, alanos e
hunos. Estes últimos eram considerados os mais letais de todos os bárbaros. Seu
maior chefe foi Átila. Após sua morte, em 453, os hunos foram dominados por
outras tribos e desapareceram.
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