No início do século 18, o Japão era governado por
Tokugawa Tsunayoshi, bisneto de Tokugawa Ieyasu, um dos principais responsáveis
pela unificação do país e o primeiro xogum de seu clã. Tsunayoshi pouco
lembrava o bisavô, o destemido senhor da guerra que havia eliminado todos os
inimigos e submetido o país à força de sua espada. Livre de grandes
preocupações políticas ou militares, Tsunayoshi gastava seu tempo promovendo
estudos religiosos e incentivando a arte.
Guerreiros aposentados
Sem guerras para lutar, os samurais haviam perdido sua função
primordial. Os membros da corte levavam uma vida de luxo e ócio, e eram
freqüentes os casos de corrupção. Sem grandes realizações, Tsunayoshi seria
conhecido como o xogum cachorro, pois uma de suas medidas mais notáveis foi
estabelecer a pena de morte a quem matasse cães. Por ter nascido em um ano do
cachorro do horóscopo chinês, o xogum passou a protegê-los. A cidade de Edo, a
sede do governo, ganhou um imenso canil, que abrigava animais abandonados,
alimentados com arroz e peixe pagos pelo povo. Esse marasmo só seria quebrado
em 1701 por um incidente que entraria para a história dos samurais: a vingança
dos 47 ronins.
Tudo começou quando Tsunayoshi escolheu Asano Takuminokami Naganori, um
jovem daimiô de uma região rural do Japão, como um dos encarregados de entreter
os enviados da família imperial em Edo. Para exercer a nova função, Asano devia
ser treinado por um alto funcionário designado pelo xogunato, Kira Yoshinaka,
um especialista em cerimonial. Durante as aulas, Kira passou a humilhar Asano
constantemente, ridicularizando seu pouco conhecimento sobre questões de
etiqueta. Certo dia, Asano perdeu as estribeiras, desembainhou a espada e
avançou sobre Kira, ferindo-o na face, antes de ser contido pelos guardas.
Qualquer ato de violência nos recintos do Castelo de Edo era considerado
uma grave ofensa ao xogum. Por isso, Asano foi condenado a cometer suicídio,
praticando o ritual do seppuku, em março de 1701. Ele tinha 34 anos. Suas
terras foram confiscadas e seus samurais tornaram-se ronins, samurais sem um
senhor para servir.
O ardil dos samurais
Indignados com as circunstâncias do suicídio de Asano, 47 dos ronins
juraram vingar a morte de seu mestre. Liderados por Oishi Kuranosuke Yoshio,
ex-conselheiro de Asano, os ronins decidiram aguardar o momento oportuno para
atacar Kira, pois este, ciente da possibilidade de vingança, havia reforçado
sua segurança.
Para não despertar suspeitas, os ronins dispersaram-se e passaram a
viver como se tivessem abandonado completamente o código de conduta dos
samurais. Oishi, por exemplo, vivia em tavernas e cercado de prostitutas, o que
levou sua mulher a pedir divórcio.
Certo dia, Oishi estava caído na rua de tanto beber. Um samurai da
província de Satsuma que passava ali perto se enfureceu, ao ver o estado
degradante de Oishi. Além de estar largado na vida, aparentemente nada tinha
feito para se vingar da morte do senhor feudal a quem servira. O samurai chutou
o rosto de Oishi e cuspiu nele com desprezo. A cena foi testemunhada por
espiões de Kira, que vinha sendo informado sobre a rotina de Oishi. Kira
concluiu que nada tinha a temer e voltou à sua rotina.
Percebendo que Kira havia afrouxado sua segurança, os 47 ronins
decidiram entrar em ação. Já havia se passado um ano e meio desde a morte de
Asano. Na madrugada de 14 de dezembro de 1702, durante uma forte neve, os 47
guerreiros atacaram a mansão de Kira em Edo.
A grande desonra
Armados com espadas e arcos, eles se dividiram em dois grupos, um
liderado por Oishi, que atacou pelo portão principal, e o outro por Chikara, o
filho mais velho de Oishi. Um tambor começou a tocar e os dois grupos atacaram
simultaneamente, pegando os guardas de Kira desprevenidos. Em pouco tempo, os
ronins conseguiram eliminar vários guardas e controlar a situação. Mas onde
estava Kira? Nenhum sinal.
Ao vasculhar a casa, Oishi percebeu que a cama de Kira ainda estava
quente e, por isso, ele não poderia ter ido longe. Depois de nova busca, os
ronins descobriram uma passagem secreta que levava a um pátio, onde Kira havia
se refugiado com algumas mulheres e dois guardas.
Eles foram mortos pelos ronins, enquanto Kira se encolhia de medo. Oishi
verificou se o homem era mesmo Kira, pois ainda tinha no rosto a cicatriz do
ferimento causado por Asano. Oishi ajoelhou-se e, em respeito ao elevado grau
hierárquico de Kira, explicou-lhe que os guerreiros de Asano estavam ali para
se vingar da morte do mestre. Convidou Kira a morrer com dignidade, por
seppuku, oferecendo-lhe a adaga utilizada por Asano para se matar.
Kira, no entanto, nada disse e não parava de tremer. Oishi então deu
ordem a um dos ronins para que o decapitasse. Em seguida, os guerreiros levaram
a cabeça de Kira até o templo de Sengakuji, em Edo, e a ofertaram ao túmulo de
Asano.
Final "feliz"
Depois de cumprir o que haviam planejado, os 47 ronins entregaram-se às
autoridades. Conforme já esperavam, foram condenados à morte, por terem matado
um funcionário do governo e desafiado o poder do xogum. No entanto, em vez de
serem executados como criminosos, os guerreiros receberam o direito de cometer
seppuku, em reconhecimento à lealdade demonstrada ao antigo mestre. O seppuku
coletivo ocorreu em 4 de fevereiro de 1703. Os ronins foram sepultados no
templo de Sengakuji, ao lado do túmulo de Asano.
Ao tomar conhecimento de tudo, o samurai de Satsuma – o mesmo que havia
cuspido em Oishi na rua, por considerar que ele não agia como um verdadeiro
guerreiro – foi a Sengakuji para pedir perdão por seu equívoco. Ele também
cometeu suicídio e foi enterrado ao lado dos ronins.
Para o samurai Yamamoto Tsunetomo, autor de Hagakure, uma compilação de
pensamentos publicada em 1716, os ronins não agiram como verdadeiros samurais
ao esperar o momento adequado para atacar Kira. “E se, nove meses depois da
morte de Asano, Kira tivesse morrido de alguma doença? A resposta óbvia é: os
47 ronins teriam perdido a única chance que tinham de vingar seu mestre”,
escreveu Tsunetomo. Nesse caso, os ronins seriam lembrados como um bando de
bêbados e covardes, e o pior: teriam desonrado para sempre o nome do clã Asano.
Segundo Tsunetomo, os ronins deveriam ter atacado Kira logo após a morte de
Asano, mesmo que as chances de vitória fossem mínimas.
As críticas de Tsunetomo aos ronins não são a visão predominante no
Japão. A maioria dos japoneses considera os 47 ronins como heróis, exemplos de
coragem e lealdade. O templo de Segakuji, que fica na região central da atual
cidade de Tóquio, atrai até hoje milhares de peregrinos que vão reverenciar os
ronins. A ação desses guerreiros tornou-se ainda mais marcante porque foi uma
espécie de canto do cisne dos samurais. A partir de então, a classe social que
governava o Japão entraria em irreversível decadência.
O último ato
O
suicídio coletivo dos 47 ronins foi um dos episódios mais dramáticos na
história de um dos rituais mais controversos do código de honra samurai: o
seppuku. O primeiro guerreiro a cometer o suicídio ritual foi Minamoto
Yorimasa, em 1180, durante a Batalha de Uji, entre os clãs Minamoto e Taira.
Acuado pelos inimigos, Yorimasa preferiu se matar a se render. Ao longo dos
séculos, um sem número de samurais trilhou o mesmo caminho, tido como uma forma
honrosa de morrer. O seppuku (chamado de harakiri por aqueles que desprezam o
ritual) consiste em abrir o abdome com uma espada curta ou punhal. Era
praticado de forma voluntária – para não cair em mãos inimigas ou para assumir
a culpa de um fracasso – ou de forma compulsória – pelos condenados à pena de
morte. Quando possível, a morte era precedida por um ritual elaborado: o
samurai tomava banho, vestia trajes brancos para a ocasião, degustava seu prato
favorito e compunha um poema. Os instantes finais eram testemunhados pelos
amigos próximos. Um auxiliar postava-se atrás do samurai para dar um golpe
final com a espada – sem decapitar o suicida –, com o objetivo de abreviar sua
agonia.
O
seppuku como forma de punição judicial foi abolido pelo governo Meiji, em 1873,
mas o seppuku voluntário continuou a ocorrer. Durante a Segunda Guerra, vários
soldados japoneses preferiram o suicídio à rendição. Um caso contemporâneo
envolveu o escritor Yukio Mishima, líder de um grupo fanático de extrema
direita. Em 1970, Mishima cometeu seppuku no quartel-general das Forças de
Autodefesa do Japão, após tentativa frustrada de incitar um golpe de estado.
Embora a tradição do seppuku tenha
perdido força, sua motivação continua presente na sociedade japonesa. O Japão
tem a maior taxa de suicídio entre as nações desenvolvidas. Mais de 30 mil
japoneses se matam a cada ano – cinco vezes mais que as vítimas fatais de
trânsito. Segundo os especialistas, a incapacidade de lidar com o fracasso
explica boa parte dos suicídios, que atingem inclusive muitas crianças. A
diferença é que, hoje, os descendentes dos antigos samurais não usam mais a
espada – preferem morrer intoxicados com gás de cozinha ou atropelados por um
trem.
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