Eduardo
Szklarz
Todos os dias, a violência sectária faz novas vítimas. Por trás dos
números que permeiam as notícias recentes, contudo, existe um conflito
histórico que remonta às primeiras gerações de muçulmanos.
Tudo começou com uma desavença política, que sofreu
uma transformação gradual nos séculos seguintes. Os dois lados adquiriram
diferenças teológicas, colecionaram ressentimentos e hoje protagonizam um
confronto geopolítico.
O sucessor de Maomé
Para entender a disputa entre xiitas e sunitas é
preciso voltar ao século 7, quando Maomé fundou o Islã. Segundo a tradição
muçulmana, os seguidores do Profeta deixaram a idolatria para seguir Alá, o
deus único. Maomé foi perseguido em Meca, sua cidade natal, e migrou para
Medina – onde fundou a primeira comunidade islâmica (a umma). Lá, tornou-se um
líder religioso, político e militar. E as revelações divinas feitas a ele
ficaram registradas no Corão, o livro sagrado dos muçulmanos.
Maomé nunca deixou claro quem seria seu sucessor.
Quando morreu, em 632, a comunidade muçulmana tinha um belo abacaxi nas mãos.
Como seria escolhido o novo líder? Que funções ele teria? Quanto duraria o
mandato? Assim, surgiram dois grupos antagônicos. “O primeiro, minoritário,
preferia reservar a honra da linhagem profética à família de Maomé. Seu
pretendente era Ali ibn Abi Talib, genro do Profeta, casado com sua filha
Fátima”, diz o historiador Peter Demant, autor de O Mundo Muçulmano. “Para a
segunda corrente, porém, qualquer fiel poderia ser candidato, desde que fosse
aceito por consenso pela comunidade.”
O grupo menor formava o Shiat Ali, ou “partido de Ali”. Seus seguidores
ficaram conhecidos como xiitas. A facção majoritária foi chamada de sunita (do
termo Ahl al Sunna, “o povo da tradição”). Em meio à emergência de escolher um
novo líder, o círculo íntimo dos seguidores do Profeta elegeu Abu Bakr, velho
companheiro de Maomé. Abu Bakr usou o título de califa (khalifa khalifa), uma
palavra árabe que combina as ideias de sucessor e representante. Os sunitas
aplaudiram a escolha, mas o xiitas protestaram: eles insistiam que Ali era
o candidato legítimo.
Pouco antes de morrer, em 634, Abu Bakr apontou
Umar ibn Al-Khatab como seu sucessor. As tropas de Umar expandiram o domínio do
Islã pela península arábica, Egito, Síria, Palestina, Mesopotâmia e parte do
Cáucaso. Em seu leito de morte, Umar nomeou um conselho para decidir quem seria
o terceiro califa. E o escolhido foi Uthman ibn Affan, membro de uma família
grã-fina de Umaya, em Meca. Uthman derrotou a Pérsia e ampliou ainda mais os
domínios do califado, mas os conflitos internos minaram seu governo. As tribos
nômades o identificavam com os privilégios dos aristocratas que Maomé havia
combatido. A crise desbancou para uma guerra civil e rebeldes muçulmanos
assassinaram Uthman em 656, abrindo espaço para que Ali – o preferido dos
xiitas – se tornasse califa. “Quando Ali finalmente assumiu, as divisões eram
profundas demais para que ele conseguisse impor sua autoridade”, diz Demant.
Ali foi morto 5 anos depois – também pelas mãos de um opositor. Os xiitas
apoiaram a posse de Hassan, filho de Ali, mas o jovem cedeu ante a oposição de
Muawiya ibn Abu Sufyan, governador da Síria. Muawiya fundou então a primeira
dinastia de califas: a dos omíadas, sunitas. Os sunitas reconheceram o reinado
dos 4 primeiros califas – os Reshidun (“os retamente justos”). Para os xiitas
só o reinado de Ali foi legítimo.
A mutação do conflito
Nos séculos seguintes, a divisão passou a incluir
também agravos e diferenças teológicas. E essas mudanças começaram a tomar
forma em 680. Foi quando Hussein, filho caçula de Ali e neto de Maomé, comandou
uma rebelião xiita para impedir que o califa omíada Yazid assumisse o trono.
Hussein foi degolado e seus aliados acabaram mortos na Batalha de Karbala, no
atual Iraque. “O tratamento dado a Hussein motivou ressentimentos entre os
xiitas. A celebração de seu assassinato durante a Ashura (o décimo dia do mês
de Muharran) se tornou um período emotivo no qual a comunidade xiita
compartilha seu sofrimento”, diz Yvonne Haddad, professora de História do Islã
na Universidade de Georgetown.
A tragédia também ajuda a entender por que os
xiitas valorizam tanto a noção de martírio. Segundo Haddad, a principal
distinção entre os grupos vem de sua visão de mundo. Sunitas acreditam que o
Corão é a palavra eterna de Deus que coexistia com Ele antes da Criação. Já
para os xiitas, o Corão foi criado no tempo e passou a existir quando Deus se
revelou à humanidade. Isso faz toda a diferença na maneira como eles leem o
livro sagrado. “Xiitas consideram que precisam ser guiados para interpretar o
Corão na vida diária, pois o livro depende da época e do lugar. Assim, precisam
um imã (líder religioso) para ajudá-los a entender a mensagem do Corão”, diz
Haddad. “Os sunitas, por sua vez, acreditam que a palavra de Deus é a mesma e
vale para qualquer tempo e lugar. Portanto, as opiniões dos clérigos sunitas
não são tomadas muito seriamente. E aqueles que clamam por um retorno às
interpretações originais são levados muito a sério. Sunitas tendem a ser mais
doutrinários.”
Os dois grupos também seguem diferentes coleções de
Hadith, as narrativas sobre atos e palavras do Profeta. Isso porque cada lado
confia em narradores diferentes. Sunitas preferem aqueles que eram próximos de
Abu Bakr, enquanto os xiitas confiam nos que pertenciam ao grupo de Ali. Aisha,
por exemplo, é considerada uma fonte importante pelos sunitas e desprezada
pelos xiitas por ter lutado contra Ali.
Aqui é possível fazer uma comparação com o cisma cristão, pois ele
também deriva de um embate sobre a autoridade religiosa. Católicos
defendiam que a Igreja tinha o poder de definir o que é o cristianismo,
enquanto os protestantes deixavam essa decisão na mão dos indivíduos. No caso
do cisma muçulmano, a discussão é um pouco diferente. Sunitas creem que a autoridade
está calcada na tradição, isto é, nas práticas do Profeta e de seu círculo
íntimo tal como eles a definiram.
Já para os xiitas a autoridade está nas “fontes de
emulação” – os líderes supremos da hierarquia religiosa xiita, como os
aiatolás. Sunitas também consideram que o imã é simplesmente a pessoa que
lidera a congregação, como o pastor dos cristãos. Já para os xiitas, o termo
Imã (com letra maiúscula) assumiu um significado totalmente diferente. Ele se
refere aos verdadeiros sucessores espirituais do Profeta Maomé, começando por
Ali. Os xiitas veem os Imãs como uma espécie de santos – o que para muitos
sunitas é uma verdadeira heresia.
Além disso, os xiitas cultivam uma expectativa
messiânica sobre a vinda do Mahdi (Redentor), o que não se observa tanto na
outra corrente. Ou seja: os sunitas são ancorados no passado, ao passo que os
xiitas são mais experimentadores e olham mais para o futuro. O título de
aiatolá, aliás, é bastante recente. E – veja só que ironia – acaba reproduzindo
no Islã xiita a estrutura do clero cristão. “Os líderes do Irã já dotaram seu
país dos equivalentes de um pontificado, de um colégio de cardeais, um conselho
de bispos e, principalmente, de uma inquisição, coisas que eram todas alheias
ao Islã”, diz o historiador britânico Bernard Lewis, da Universidade de
Princeton, EUA. “É possível que acabem provocando uma Reforma.”
Assassinos: os avós dos terroristas
O martírio é uma noção fundamental entre as seitas
xiitas. Mas nenhuma delas levou a ideia tão a sério quanto a Ordem dos Assassinos,
que espalhou o terror na Pérsia e na Síria nos séculos 11 e 12. Seus
integrantes eliminavam gente graúda: monarcas, ministros, generais e religiosos
– do bando rival, claro. “O inimigo era o sistema político, militar e religioso
sunita. Os assassinatos eram planejados para aterrorizá-lo, enfraquecê-lo e,
finalmente, derrubá-lo”, diz o historiador Bernard Lewis no livro “Os
Assassinos”. Executar a vítima significava um ato de devoção e envolvia um belo
ritual. Segundo os relatos do explorador Marco Polo, que esteve na Pérsia em
1273, os chefes da seita ofereciam haxixe aos jovens convocados para matar –
daí o nome Haxaxin, que depois derivou para Assassinos. A droga lhes dava um
gostinho antecipado das delícias do Paraíso.
É que nenhum deles esperava sair vivo da missão.
“Depois de matar, os Assassinos não tentavam fugir nem cometiam suicídio. Eles
esperavam morrer na mão dos inimigos”, diz Lewis. Sempre usavam a adaga em vez
de veneno ou armas de arremesso, o que tornava a operação muito mais arriscada.
Atacavam em mesquitas, mercados ou palácios, agiam sob absoluto sigilo e muitos
se vestiam de mulher para garantir o sucesso da emboscada. O fundador da seita
teria sido o persa Hassan i-Sabah, conhecido como Velho da Montanha. Ele teria
recrutado os primeiros Assassinos depois de se converter ao ramo ismaelita do
xiismo no século 11 – época em que o Oriente Médio foi invadido pelos cruzados.
Disputa virou geopolítica
Atualmente, os sunitas representam cerca de 90% do
Islã e os xiitas, 10%. A velha rixa é travada por governos cujos interesses vão
além da tradição religiosa. “O que vemos hoje é um conflito geopolítico”, diz o
escritor Reza Aslan, especialista em história do Islã. Para ele, há dois polos
de influência no mundo islâmico: Arábia Saudita (sunita) e Irã (xiita). “Vemos
diversos grupos fundamentalistas, como o sunita Al Qaeda, que acusa os xiitas
de infiéis. Mas de onde vem a Al Qaeda? Da Arábia Saudita, que enxerga o Irã
como a principal ameaça”, diz.
O conflito é alimentado com o dinheiro do petróleo.
O Irã patrocina grupos terroristas xiitas, como o libanês Hezbollah. A
monarquia saudita fomenta uma versão extremista sunita, o wahhabismo, ensinado
em escolas e mesquitas ao redor do mundo. “O wahhabismo exerce uma influência
tremenda sobre a diáspora muçulmana”, diz Lewis. “Em países não-islâmicos não
existe controle sobre o que é ensinado nessas escolas. Há um ensino muito mais
extremo em colégios muçulmanos da Europa e da América que na maioria dos países
islâmicos.”
O Iraque virou palco perfeito para o embate entre
os polos muçulmanos. Desde a retirada das tropas americanas do país, em
dezembro, a violência sectária explodiu com atentados quase diários. A maioria
xiita deseja vingar as atrocidades do ditador Saddam Hussein, um sunita. O Irã apoia
as milícias xiitas. Os sauditas e a Al Qaeda atuam no campo rival. A dinâmica
se repete pelo Oriente Médio. No Barein, por exemplo, a maioria xiita se rebela
contra rei Hamad, que é sunita. Na Síria, principal aliada do Irã, a Primavera
Árabe motivou uma rebelião contra o regime alauíta, da minoria xiita.
Segundo as Nações Unidas, os confrontos já
produziram mais de 9 mil mortos no país. Isso não significa que o conflito seja
mais violento hoje. Nos primeiros séculos do Islã, houve guerras massivas. “Nos
séculos 7 e 8, os omíadas construíram um império sunita. E quem não fosse
sunita era massacrado”, diz Aslan. “No século 8, os abássidas assumiram o
poder. Eles descendiam de Maomé através de Fátima (filha do Profeta e mulher de
Ali). Eram xiitas. E seu império massacrou sunitas.”
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