terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

[SGM] Sangue, suor e gelo: A campanha dos brasileiros na Segunda Guerra

Márcio Sampaio de Castro


Enquanto o rigoroso inverno se aproximava dos Apeninos, que corta a Itália de norte a sul, o Alto Comando aliado estabelecia uma meta: a cidade de Bolonha deveria ser conquistada de qualquer jeito até o Natal. Para eles, o ano de 1944 havia sido bastante positivo no cenário europeu. No leste, os soviéticos avançavam rápido e já combatiam próximos à fronteira alemã. No oeste, ingleses e americanos haviam finalmente conseguido realizar o desembarque na costa francesa, abrindo uma terceira e decisiva frente de combate contra o Reich. Conquistar Bolonha significaria manter sob pressão intensa o inimigo na península italiana, ao sul do território nazista.

Por outro lado, a abertura da frente francesa havia desfalcado o 5º Exército norte-americano no front italiano, comandado pelo general Mark Clark, e a presença de uma divisão inteira como a FEB era bem-vista pelos americanos, uma vez que o avanço pelas montanhas italianas exigiria um grande sacrifício, com a perda de muitos homens. Em novembro, a divisão expedicionária brasileira estava praticamente completa, o que teoricamente a habilitava a ser empregada no esforço para romper a “Linha Gótica” alemã em direção a Bolonha.

Mas o abismo entre o treinamento recebido pelos brasileiros e a realidade da guerra também se fazia presente, como lembrou o veterano Newton Lascaléia, em depoimento ao historiador César Maximiano. “As únicas montanhas que eu tinha visto, de longe, no Brasil, foram o Pico do Jaraguá, em São Paulo, e o Pão de Açúcar, no Rio de Janeiro. De repente, me vi lá dentro da cordilheira apenina no meio daquela vastidão de elevações enormes, enfrentando o começo de um inverno rigoroso. No nosso treinamento nunca se falou em montanha.”

Preparados ou não, os pracinhas foram escalados no final de novembro para atacar, ao lado dos norte-americanos, um conjunto de elevações que tinham como pontos principais o Monte Belvedere e o Monte Castelo. Aos brasileiros, cabia conquistar este último.

25 quilos nas costas

Para se ter uma ideia, em média, cada soldado carregava 25 quilos de equipamentos. Nos deslocamentos morro acima deveriam procurar abrigo atrás das rochas, uma vez que a vegetação havia sido devastada pelos intensos bombardeios. E, como se isso não bastasse, no caminho eles deveriam livrar-se das minas – que, dependendo do tamanho, poderiam arrancar um membro ou mesmo desintegrar um homem –, dos bombardeios e das temíveis “Lurdinhas”, as eficientes metralhadoras alemãs, capazes de cortar um inimigo ao meio com apenas uma rajada.

Ao término da subida pela encosta do morro, os que conseguiam se aproximar das fortificações, casamatas e porões guarnecidos pelos alemães eram recebidos por uma bem-montada linha de metralhadoras, que também recebeu um apelido dos soldados: o “corredor da morte”, criado para impedir qualquer ataque frontal. Do alto do morro os defensores podiam controlar qualquer movimentação inimiga, tornando impossível o fator surpresa.

Essas desvantagens obrigaram os aliados a usar o expediente da queima de óleo diesel para dificultar a visão que os alemães tinham de todos os acessos aos cumes das elevações ocupadas por eles. “Na região de Monte Castelo tínhamos 24 horas de noite. O tempo todo tudo escuro por causa da fumaça”, conta o jornalista Joel Silveira, correspondente dos Diários Associados na campanha brasileira.

Uniformes brasileiros durante a Segunda Guerra Mundial

Ataque frustrado

A ideia de tomar o Monte Castelo foi frustrada no primeiro ataque, em 24 de novembro, por uma falha na combinação entre brasileiros e norte-americanos. O apoio de tanques, manobrados por estes, e artilharia mostrou-se insuficiente e os homens da infantaria que tentavam subir a elevação logo perceberam que seriam uma presa fácil para a chuva de chumbo que os alemães despejaram com seus morteiros, canhões e metralhadoras. Aos atacantes cabia se defender não só dos tiros que vinham do próprio Castelo, mas também da barragem montada nos morros vizinhos, ainda que os americanos tivessem conquistado o Bevedere, localizado ao lado. Resultado: vitória alemã.

Cinco dias depois seria lançado um novo ataque, apenas com brasileiros. Foi a investida mais devastadora para a FEB. Foram empregados batalhões dos três regimentos, mas a expulsão dos norte-americanos do Monte Belvedere, seguida por um obstinado contra-ataque alemão, apanhou os pracinhas bem na subida. Transformados em alvos, contabilizariam ao final da batalha 195 baixas, entre mortos, feridos e desaparecidos. Muitos dos corpos só seriam resgatados meses depois.

Em meados de dezembro, as condições do inverno europeu já se faziam presentes na montanha que vinha se convertendo em um mito para os pracinhas. A cobertura aérea, tão necessária para apoiar uma investida morro acima, era inviável. O nevoeiro que impedia a decolagem dos caças-bombardeiros também dificultava o apoio da artilharia. Mesmo assim, o comando decidiu tentar mais uma vez. Entretanto, após a perda de mais 145 homens, a ordem de retirada foi emitida. O inverno, que tanto havia castigado os homens de Hitler nas planícies soviéticas, seria uma arma importante para imobilizar seus inimigos nas montanhas italianas.

No Natal de 1944, após as fracassadas tentativas de tomada do Monte Castelo, a FEB pôde vivenciar um pouco daquilo que fora a Primeira Guerra Mundial. Sem a possibilidade de contar com um apoio preciso da aviação, por causa das nevascas, que também atolavam os tanques e convertiam as estradas em lodaçais intransponíveis até para a infantaria, a divisão brasileira se viu confinada aos foxholes (tocas de raposas) cavados no solo pedregoso e que cumpriam o papel de trincheiras.

“Pé de trincheira”

As ações militares naquele período limitavam-se aos duelos entre as artilharias, que castigavam até o quartel-general da FEB, localizado na cidade de Porreta Terme, a 30 quilômetros da linha de frente, e as patrulhas. Nelas, grupos que variavam de cinco a 30 homens tinham a incumbência de estabelecer algum contato com o inimigo, monitorando suas posições e deslocamentos. Mas o grande adversário dos soldados naquele período era o frio, que podia chegar a 20 graus centígrados negativos. “O forte vento dos Apeninos trazia consigo a neve que se desprendia do solo, açoitando os rostos dos homens, a ponto de esfolar a pele e tamborilando os capacetes de aço como chuva de granizo sobre a capota de um carro. O frio era rigoroso a ponto de tornar insensíveis as mãos dos soldados após um curto tempo de vigilância num foxhole”, conta o ex-tenente José Gonçalves em suas memórias de guerra. A isso se somava um terror comum na frente européia naquele período: o chamado “pé de trincheira” – a gangrena nos pés dos soldados, causada por umidade no sapato, que tinha como conseqüência a amputação dos membros inferiores.

Com o degelo no início de fevereiro, o comando aliado retomou o antigo projeto de alcançar Bolonha e as ricas cidades do vale do rio Pó, como Milão e Turim, o mais rápido possível. Para isso, foi montada a operação Encore (Retomada), uma ação conjunta de todas as forças disponíveis na península italiana para asfixiar as unidades nazi-fascistas. A FEB tinha novamente sob sua incumbência tomar o traumático Monte Castelo. Nas três tentativas do ano anterior, os brasileiros haviam sofrido centenas de baixas, o que servira para abalar o moral da tropa. A quarta tentativa não poderia falhar de forma alguma. Segundo relatou o falecido jornalista Joel Silveira, que acompanhou os combates in loco, “o general Mascarenhas de Morais, comandante das forças brasileiras na Europa, resolveu desacatar as orientações do comando norte-americano e empregou todas as unidades que tinha a sua disposição para o ataque”. Tomar Castelo tornara-se uma questão de honra, e o que os pracinhas não haviam conseguido em três meses, concluíram em pouco mais de 12 horas no dia 21 de fevereiro. O fantasma fora, finalmente, exorcizado.

A vitória serviria não só para espantar fantasmas, mas também para empurrar a divisão brasileira para uma série de conquistas através das últimas elevações antes do rio Pó. Uma dessas batalhas, a de Montese, ficaria conhecida como a mais violenta travada pelos brasileiros na Itália.

A tomada de Montese

No dia 16 de abril, o jornalista Egydio Squeff, correspondente de guerra do jornal O Globo, enviaria o seguinte texto para a redação: “Escrevo de dentro de Montese destruída. Montese já não existe. Nenhuma casa ficou intacta e só agora podemos avaliar o efeito terrível causado pelos disparos de artilharia. Montese é uma cidade deserta, envolta em ruínas. Em suas casas destroçadas, as manchas de sangue assinalam a violência da batalha com que os alemães a defenderam”. Mais adiante, continuou: “Procurei em vão encontrar um habitante de Montese. Só deparei com portas destroçadas, leitos vazios, cômodos em desordem. Penso que, desde que começou a batalha pela sua posse, a população abandonou a cidade. Os brasileiros venceram os nazistas, entre os quais se achavam muitos prussianos, num combate verdadeiramente épico, depois de encontro de ruas, de casa em casa, onde ficaram mortos e feridos muitos combatentes nossos.”

Após a batalha de Montese, gradativamente, a FEB começou a descer os Apeninos. A missão agora era impedir que os alemães cruzassem o rio Pó e pudessem se reorganizar nos Alpes. Com lances de destreza e esperteza, que contaram até com a participação de um padre italiano como intermediário para negociar com o comando inimigo, as forças brasileiras conseguiriam finalmente cercar os alemães na região de Fornovo, no final do mês de abril. Num processo de rendição que duraria três dias, quase 15 mil alemães se entregariam à divisão expedicionária. A guerra acabava ali para os dois lados.


Os anjos do campo de batalha

Criada por decreto no ano de 1944, a Capelania Militar enviou para a Europa 30 sacerdotes católicos e dois pastores evangélicos, todos voluntários. O papel deles era oficiar missas e cultos na retaguarda, prestando assistência individual quando requisitados por um integrante da tropa. Eles foram importantes para consolar os pracinhas na dura realidade da guerra.

Outro ponto de apoio para os brasileiros foi o Serviço de Saúde. Ao todo, o serviço recebeu 186 profissionais de saúde, dos quais 67 eram enfermeiras. A exemplo de todos os envolvidos na frente de combate, as enfermeiras, que tinham entre 18 e 36 anos, enfrentaram as dificuldades dos alojamentos de campanha, o frio e, principalmente, o contato diário com o sofrimento de jovens soldados, que em muitos casos acabaram por perder a visão ou os membros. A presença feminina foi um fator importante para que os feridos se sentissem reconfortados num momento de extrema privação e dor.

Conquista heroica

A ordem para avançar em direção a Montaurigula veio por telefone, no dia 12 de abril de 1945. Se não encontrasse resistência, o 3º Batalhão do 11º Regimento de Infantaria da FEB deveria seguir dali para as colinas de Montese, pequena cidade ocupada pelas tropas do exército alemão no norte da Itália. Fortemente armada, a patrulha da FEB formada por 21 homens partiu às 9h e, depois de passar sem resistência por Montaurigula, seguiu para Montese. No caminho, depararam com uma colina alongada, de onde retiraram 82 minas de um campo, e logo encontraram as primeiras posições de defesa. Depois de intensos combates, foram vencendo a resistência alemã e, na noite de 14 de abril, já haviam dominado as encostas a sudoeste da cidade com a ajuda de outros dois pelotões. A capacidade defensiva da infantaria inimiga também estava quebrada, mas a luta entrou madrugada adentro. Apesar da grande quantidade de alemães em Montese, a artilharia das forças da Wermacht descarregou naquela noite cerca de 2 800 tiros.

Na manhã do dia 15, ainda sob forte fogo inimigo, os brasileiros finalizaram a tomada da cidade. Os homens da FEB romperam as linhas alemãs nos últimos contrafortes dos Apeninos, mas a tomada de Montese lhes custou muito caro. Foi a batalha mais sangrenta para nossas tropas desde a Guerra do Paraguai, com um saldo de 426 baixas, entre mortos, feridos e desaparecidos. Duas semanas depois, a guerra na Itália chegaria ao fim. Em homenagem aos brasileiros, Montese construiu o Museu Militar da Força Expedicionária Brasileira, no interior de um castelo do século 12.


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